Todos já ouvimos falar dos chamados “líderes carismáticos”, uma expressão declinada da ideia de “autoridade carismática” que Max Weber popularizou no início do século passado. Muitos associamos a expressão à imagem de homens e mulheres a falaram às massas que reagem com exaltação e às vezes euforia. A representação que temos do carisma da liderança acaba por ser a de manipulação das populações no sentido das crenças, nem sempre as mais benignas, dos que estão nas luzes da ribalta.

Mas não é tudo. Há três pontos não totalmente esclarecidos por Weber, mas que convém lembrar: o primeiro é que a autoridade carismática aparece quando as instituições não conseguem dar resposta aos problemas que as populações enfrentam. Idealmente, se for benigna, a liderança carismática tem um prazo de validade – caso contrário transforma-se em autoritarismo, apoiado por “estruturas burocráticas”. Gandhi e Mandela são exemplos desta forma benigna de autoridade carismática. Ajudaram a construir instituições que os libertassem da liderança.

A segunda é que a legitimidade inicial do carisma não está só dependente dos dotes individuais do líder – que certamente têm que ter impacto – mas da mensagem que transmite. O líder carismático tem de ser capaz de perceber o que a população quer ouvir. Caso contrário, cai tudo por terra.

A terceira é que a autoridade carismática (como a legal e a tradicional, as outras categorias weberianas) é um “processo”. O seu sucesso está na forma como esta autoridade é institucionalizada e perpetuada no tempo. Mais uma vez, esta institucionalização tem que corresponder aos critérios de legitimidade vigentes (ou novos, em caso de rutura) aceites por uma parte significativa da população.

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Vem isto a propósito da inesperada autoridade carismática de Angela Merkel a semana passada. Desde o início da pandemia que a Europa estava paralisada. Primeiro, por não ter competências na área da saúde pública. Depois, pelo muito difícil entendimento nas questões da retoma económica. Há muito que a Alemanha é o único estado europeu que tem verdadeira capacidade de transformar o rumo das políticas da União – quando não é por tratado, mas isso é um processo de consenso legislativo que em nada se coaduna com emergências. Mas sempre escolheu não o fazer. Não liderou a crise do euro até não haver alternativa e escolheu opções profundamente conservadoras. Não liderou a crise dos refugiados. Tentou atabalhoadamente dar o exemplo e foi pior a emenda que o soneto. Tem-se recusado a enfrentar o problema institucional sério que a degradação das democracias húngara e polaca colocam à continuidade europeia nos seus valores essenciais.

Até à semana passada. Já se sabia que a França era o líder informal da solução da mutualização da dívida europeia pós-COVID, mas a grande surpresa foi a entrada inequívoca em cena da chanceler a anunciar, sem aviso prévio, que a Alemanha se uniria a Paris para propor a contração de um empréstimo de 500 mil milhões de euros em nome da União Europeia, a ser pago pelo fundo europeu para o qual os estados-membros contribuem proporcionalmente. A distribuição do empréstimo seria a fundo perdido e estaria dependente das necessidades de cada estado. Por outras palavras, Merkel avançou com a dívida europeia partilhada, sem reticências e com uma assertividade que não lhe costumamos conhecer. A Alemanha assumiu o papel de líder que tem vindo a recusar nas décadas recentes.

Os “quatro frugais” (a Áustria, a Dinamarca, a Holanda e a Suécia) torceram logo o nariz. Mas pode ser fácil contrariar países como França e Itália, mas é difícil dizer que não à Alemanha. Não só pelo seu poder material entre os 27 estados-membros, mas porque Berlim nunca antes (mal, do meu ponto de vista) puxou dos seus galões de potência. A imprensa internacional já vê cedências em muitas atitudes anteriormente irredutíveis.

Angela Merkel, a chanceler em fim de carreira política, a quem não reconhecíamos qualquer carisma, surpreendeu-nos a todos ao dar um passo próprio de uma líder carismática. Percebeu que a população precisava de acreditar no projeto europeu e numa crise económica o menos dramática possível; percebeu que as instituições não conseguiriam dar uma resposta adequada. E para a Europa ser capaz de voltar a prosperar, usou o seu poder pessoal e o peso do seu país para forçar uma decisão sem precedentes. Está quase tudo por definir, inclusivamente a institucionalização desta nova liderança. Mas a tornar-se uma realidade, a União Europeia encaminha-se para uma integração económica mais densa, que poderá incluir a harmonização fiscal.

E, talvez, mais importante, a concretizar-se a mutualização da dívida, o papel da Alemanha nas instituições também tenderá a transformar-se. Não sabemos o que vai acontecer. Mas tivemos um cheirinho de liderança vindo de quem nunca quis liderar. E há poucas coisas em política que têm um impacto maior que isto.