Por regra, misteriosamente ausente das recomendações da Protecção Civil e da Direcção-Geral da Saúde, fujo das televisões nacionais com o afinco com que corro da gripe. Não escapei de nenhuma. Há dias que consumo quantidades inusitadas de lenços de papel e há dias que não me sai da cabeça certa reportagem.

A propósito das trafulhices em que o nosso portentoso futebol é pródigo, um canal qualquer passava em repetição as imagens do que presumi ser um convívio, talvez já antigo, entre o presidente do Benfica e uma data de deputados da nação. Numa sala vasta, o tal presidente passeava bigode, soberba e classe, o exacto tipo de classe que, inspirados por sofisticação paleolítica, os “agentes desportivos” têm vindo a aprimorar. Os deputados, de todos os partidos, passeavam devoção e aquele tipo de excitação que atinge a plebe da Coreia do Norte ante a proximidade do Líder. À passagem de Sua Excelência, que mal lhes dirigia um olhar, aqueles bonequinhos derretiam-se em sorrisos e precipitavam-se para disputar a honra de um cumprimento. Os mais ousados arriscavam uma “selfie”. Era evidente a importância que atribuíam ao momento. Também era evidente que a espécie humana dificilmente consegue descer tanto.

Esclareço que, para mim, é irrelevante o “benfiquismo” do repulsivo evento acima. Suponho que haja eventos similares, e similarmente repugnantes, com deputados do Porto e do Sporting (dado que a raça aprecia notoriedade, é pouco provável que muitos parlamentares compareçam em pândegas do Arouca). Embora descenda de jogadores e treinadores da bola, goste de rever habilidades de Pelé, Cruyff ou Futre e goste imenso de jogar a ocasional partida (a extremo-direito, sem surpresas para os detractores desta coluna), dedico aos clubes um desinteresse só comparável ao dos meus cães pelo Orçamento de Estado (é nulo, para não restarem dúvidas). Em criança, dizia-me, sei lá porquê, “do” Benfica. Hoje, sei lá porquê, prefiro que ganhe o Porto, desde que isso não me obrigue a ver jogos e, Deus misericordioso me livre e guarde, a discuti-los.

Sou, aparentemente, um caso raro. E, dado que nunca ouvi os meus amigos discutirem futebol, estou aparentemente rodeado de casos raros. A norma, pelo menos a acreditar no universo dos canais “generalistas”, é as pessoas não fazerem outra coisa. Quando não se empenha em louvar o governo, publicitar os “afectos” do Presidente ou, na CMTV, dissecar crimes suburbanos, a programação televisiva é quase integralmente preenchida pelo “fenómeno” futebolístico. O fenómeno, no sentido que se dava às atracções de circo, é inegável. Metade do tempo é investido a transmitir a bela retórica de dirigentes, “místeres” e adeptos, as deslocações dos autocarros de sítios para sítios e, nos canais que não pagam os “direitos”, quatro ou cinco pasmados a relatar um jogo inteirinho. O tempo que sobra (cerca de 40 horas por serão) é para a “análise”.

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A “análise” é peculiar. Nela, deputados, “politólogos”, juristas, médicos, músicos, empresários, jornalistas, ex-praticantes e o que calha tentam provar a superioridade divina do clube da respectiva preferência e, por extensão, a sua própria superioridade. No processo, indivíduos adultos trocam o que julgam ser argumentos a propósito de penáltis, foras-de-jogo, cartões amarelos e, em suma, a relevantíssima “questão” da arbitragem. Um leigo olha para os árbitros e constata apenas que usam nomes esquisitos, gel e patilhas fininhas. Os especialistas gastam dias a fio na interpretação de cada apitadela e, recentemente, de cada intervenção do VAR, acrónimo alusivo ao “vídeo-árbitro”, de facto um sujeito com gel a fitar um ecrã. A intervalos regulares, os especialistas lembram que a missão dos árbitros consiste em obstar à glória do clube deles. Porém, lembram de seguida, nada os vergará no caminho para o “título” e acabarão a “época” a celebrar a profunda vileza da porção da humanidade que não simpatiza com o Benfica/Porto/Sporting (riscar os que não importam e, aliás, deviam ser exterminados a golpes de “very-light”). Às vezes, um especialista que fracturaria o fémur num desafio de dominó, entra em franca alucinação e começa a imaginar-se membro da equipa que apoia: “Eu perdi por culpa do bandeirinha”; “Eu joguei impecavelmente”; “Eu serei campeão”; “Eu chamo-me Napoleão”; etc. Conversa de café? Com certeza, se o café em causa for o do Magalhães Lemos.

Não quero insultar ninguém, mas é plausível que quem se presta a figuras idiotas seja realmente idiota. Alguns nem esse estatuto atingem e, ao que consta, precisam que terceiros lhes escrevam as “opiniões” que exibem com orgulho. O futebol falado atrai tanta gente justamente por ser simples e permitir a criaturas igualmente simples a ilusão de que dominam um assunto. Se disserta sobre os refugiados sírios ou o sufoco fiscal, a maioria dos comentadores produz um amontoado de clichés capaz de envergonhar uma criança. Nas tretas da bola, os clichés dão pontos e a vergonha é conceito obscuro. Os especialistas em futebol são “especiais” na acepção politicamente correcta do termo. E se não são, parecem.

Na perspectiva optimista, há nisto um estimável potencial de integração: enquanto “debatem” as “polémicas” da jornada, os tontinhos não andam na rua e na droga. A perspectiva pessimista nota que os tontinhos são inúmeros e, o que é pior, andam no Parlamento e em lugares de poder e influência. A perspectiva apocalíptica desconfia de que a proliferação de tontinhos exige um vasto público que os consome e legitima, um público que essencialmente não se distingue dos participantes do “Mais Bastidores” e do “Dia Seguinte”, um público representado na perfeição pelos deputados que elege, um público cuja aptidão para engolir a palha futebolística é aquela que o leva a engolir tudo a pretexto de tudo, um público que define uma sociedade e um país que não batem bem da bola.