É tão simples quanto isto: a tal disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” não tem ponta por onde se lhe pegue e não deveria existir. A obsolescência é nela programada, já que os seus conteúdos – e chamar-lhes “conteúdos” é um acto de caridade extrema – se limitam a reflectir o ar do tempo na linguagem esfarrapada que lhe convém. Nunca, em anos de escrever para o Observador, ao ler o que foi escrito em jornais sobre o assunto ao qual resolvera dedicar esta coluna, fui tomado de um tal sentimento de tédio e de pura e simples perda de tempo. É o que se pode chamar a prova da inanidade pelos seus efeitos: a vacuidade desperta em nós o sentimento do vazio e, por conseguinte, é lícito concluir que o vazio deve existir. A “Cidadania e Desenvolvimento” é o vazio transformado em programa.

O Ministério da Educação encarregou-se logo de mostrar a natureza deste vazio. A disciplina deve ajudar os alunos a desenvolverem “competências diversas” destinadas a servirem de base para “uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos”, que, supõe-se, antes eram acessíveis aos alunos por meio de uma algo misteriosa reflexão inconsciente. Do nada pode-se deduzir tudo, coisa que não escapou ao cérebro dos funcionários do Ministério: com os “referenciais de educação” próprios a esta disciplina, “os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos participativos e humanistas, numa época de diversidade social e cultural crescente, no sentido de promover a tolerância e a não discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos”. A linguagem utilizada diz tudo sobre a vacuidade a que visa dar voz.

Mas é um vazio mobilado, mesmo muito mobilado. Os “referenciais de educação” em “áreas não-formais” mobilizados para a transformação alquímica do nada em tudo são vastos, e, metidos todos no mesmo saco, compõem uma salada russa perfeita. Munidos de “múltiplas literacias”, como diz um manifesto a favor da disciplina, que permitem “organizar os vários conhecimentos numa perspectiva holística”, como diz outro, os alunos ganharão em “empoderamento” (volto ao primeiro) através de um saber que engloba: os direitos humanos; a sustentabilidade ambiental; a interculturalidade; a saúde; a segurança rodoviária; a igualdade de género; a literacia financeira; a educação alimentar; a actividade física; a espiritualidade; a estética; a moralidade; a civilidade; o risco; os media; as instituições e a participação democrática; a educação para o consumo; o empreendedorismo; o mundo de trabalho; a sexualidade; a violência doméstica; a cibersegurança; a prevenção dos fogos florestais; a segurança pura e simples; a defesa; a paz; o bem-estar animal; o voluntariado; e só Deus sabe que mais.

Pelo que li escrito pela sua pena, João Costa, o secretário de Estado Adjunto e da Educação, é o homem certo para redigir o grosso tratado que — numa “perspectiva holística”, é claro — organize estes “referenciais” de forma definitiva e contribua decisivamente para o “empoderamento” dos alunos. Isto numa grande síntese filosófica. Porque não se lhe pede, não se lhe pode pedir, nada de menos, já que o simples acto de pôr em causa a disciplina de Educação e Desenvolvimento representa um abrir de portas para um imenso conjunto de males, nomeadamente: o revisionismo; o terraplanismo; e o criacionismo. Isto para não falar da liberdade de que passariam a gozar os “assassinos do estudo da arte, do pensamento filosófico, da física, de algumas maravilhas da literatura”. Mãos à obra, Dr. João Costa, que a tarefa é de monta e, face a tão terríveis e iminentes abismos, a sua fortitude é necessária e imprescindível. Mão dura com os assassinos. Não há tréguas possíveis com essa gente, se é que se pode chamar gente a grupos selvagens de anti-cidadãos, apóstolos do “discurso de ódio”, do “preconceito” e da “discriminação”, para me servir de expressões que se encontram num pequeno glossário da responsabilidade do seu ministério. Só assim o “espírito crítico” – expressão que aparece inúmeras vezes pela mão dos defensores da disciplina – poderá triunfar para todo o sempre. Como diz uma senhora doutorada em educação, os opositores da Cidadania e Desenvolvimento só podem, a uma pessoa decente, suscitar sentimentos algures “entre o pasmo e a indignação”, já que “cavalgam uma polémica populista” organizada a partir do “programa ideológico da direita conservadora” que exorbita de “arrogância intelectual”.

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Mais do que uma disciplina, é de um “complexo disciplinar” que se trata de defender. Não resisto a repetir, apesar das poucas linhas de intervalo, alguns dos elementos desse “complexo disciplinar” elaborado por um grupo de trabalho criado pelo governo em 2016: os direitos humanos; a sustentabilidade ambiental; a interculturalidade; a saúde; a segurança rodoviária; a igualdade de género; a literacia financeira; a educação alimentar; a actividade física; a espiritualidade; a estética; a moralidade; a civilidade; o risco; os media; as instituições e a participação democrática; a educação para o consumo; o empreendedorismo; o mundo de trabalho; a sexualidade; a violência doméstica; a cibersegurança; a prevenção dos fogos florestais; a segurança pura e simples; a defesa; a paz; o bem-estar animal; e o voluntariado. Individual e conjuntamente, na sua fina articulação dialéctica – como notou um doutorado em Economia da Felicidade, “vendo esta lista, percebe-se que ela foi elaborada com rigor” e “os conteúdos aí desenvolvidos são coincidentes com os determinantes da felicidade individual e colectiva” —, são eles os objectos da polémica populista cavalgada pela direita conservadora, que jurou não permitir que se ensine “os miúdos a não roubar, a não estragar, a não andarem à pancada”.

É obviamente por pura má-fé que os indivíduos que cavalgam essa polémica distinguem – fingem distinguir — a disciplina visada das disciplinas, por exemplo, de História ou Português. Não se está mesmo a ver que a determinação e a coerência dos seus objectos é exactamente idêntica, tal como é idêntica a sua carga ideológica? Só por completa ausência de pensamento crítico se podem aqui introduzir distinções. Enfim, alguma diferença haverá, é verdade. A Cidadania e Desenvolvimento, à diferença das outras disciplinas, diz um dos manifestos a favor da disciplina, ajuda os alunos “a distinguir entre o que é ideologia e o que é conhecimento”, o que não é obviamente coisa de pouca monta. Longas polémicas passadas encontram-se, se não resolvidas, pelo menos a caminho de uma solução esclarecedora. Além disso, temos finalmente a muito desejada oportunidade de introduzir no nosso espaço conceptual e lexical novas figuras, como por exemplo aquela, efusivamente saudada por uma Investigadora Principal do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de “idadismo”, que muito nos ajudará a combater o regime ideológico do patriarcado.

Agora a sério. O que este precipitado de disparates, uniformemente redigido numa linguagem miserável e acéfala, nos mostra em primeiro lugar é o modo de existência de um mundo puramente fantasmático de ideologia em que qualquer tentativa de confrontação com a realidade é exorcizada por meio de encantamentos vocabulares. A ideologia não é obviamente eliminável de qualquer discurso, mas aquilo a que temos direito no programa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e nas suas diversas e muito aguerridas defesas é ideologia em estado puro, imunizada de qualquer contaminação pela racionalidade. Se a coisa não fosse inteiramente patente, se não saltasse aos olhos – se não furasse os olhos, como dizem os franceses —, bastaria, para que tal fosse claro, sublinhar a amálgama inacreditável que constitui a lista dos objectos da disciplina. Ela ordena-se mais pela lógica do sonho, para falar como Freud, do que pela lógica do pensamento vígil. Tal amálgama e tal lógica indiciam claramente uma atitude populista: tudo, por mais distinto ou contraditório que seja, se encontra ligado e é, portanto, susceptível de um tratamento conjunto. Nominalmente tendo por fim combater o populismo, não faz senão defender uma particular forma de populismo de esquerda. Por esta e por outras, a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento não deveria ser meramente opcional. Pura e simplesmente, não deveria existir.