Há textos que são penosos. Uma maçada ter de escrevê-los. Uma tristeza pelo tema. Este é um deles. Mas, na ausência de outras manifestações, também lamentavelmente da Ordem em que estou inscrito, por força da legislação, lá tenho de vir a terreiro na defesa da oncologia nacional, dos doentes e do bom nome dos médicos.

Sem pretender ofender as mais altas patentes da Nação, aqueles que só por enorme distracção a assinaram, a Lei nº 14/2021 de 6 de abril é um dos textos mais estúpidos que a Assembleia da República produziu. Estavam todos a dormir, seguramente. Só pode ter sido isso.

A ideia era boa. Meritória. Pretendia a Lei estabelecer “um regime transitório para a emissão do atestado médico de incapacidade multiuso para os doentes oncológicos e a atribuição dos correspondentes benefícios sociais, económico e fiscais previstos na lei, no contexto da pandemia da doença Covid-19”. Parecia perfeito. Nada a dizer sobre o “objecto”, tal como é plasmado no artigo 1º.

O artigo 3º também está bem e só peca por tardio e ser transitório. O atestado, emitido nos termos da lei em apreço, dispensará “a constituição de junta médica”. Diria mesmo que dispensará a constituição da junta e a apresentação do doente a essa junta. Na verdade, estaríamos em presença da possibilidade de eliminação definitiva do acto estulto da junta, onde um conjunto de médicos, completamente fora do conhecimento e prática oncológica, validam um relatório que aceitam, com razão, como sendo exacto e eticamente correcto. Com os atuais sistemas de registo clínico electrónico, disponíveis para consulta por profissionais habilitados, dever-se-ia acabar com a condenação à presença em junta de doentes que, muitas vezes, tão doentes que estão, nem lá podem ir e, simultaneamente, acabar-se-ia com o ritual da douta paródia de obrigar os colegas a julgarem situações que não são obrigados a entender porque não as tratam habitualmente.

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Acresce o tempo de espera para acesso a estas juntas, para já não falar no desperdício de recursos médicos especializados que deveriam estar a fazer outras coisas que não fosse ler e validar relatórios dos colegas que seguem os doentes e por isso os conhecem bem. Em tempos idos, quando era jovem, também tive o gosto de ganhar uns dinheiros com sessões de juntas (eram pagas à peça). Para lá do estipêndio, confesso com humildade, mais nada de útil conseguia tirar de algumas tardes passadas a validar baixas. Todavia, até posso admitir que haja juntas de avaliação que façam sentido. No limite, para acidentes e correcção de perda funcional em processos judiciais, erros clínicos, evolução da doença, como exemplos.

Convirá que o público saiba que a tabela de incapacidade usada está totalmente desadequada para avaliação de incapacidade por doença oncológica, já que está desenhada para atribuir indemnizações e apenas é “exacta” para funções sensoriais e motoras. Mas é o que há e os ministérios da Saúde e da Segurança Social têm-se furtado à hercúlea tarefa de a rever e adaptar. Para oncologia, a tabela é um desastre, até porque não está adequada às doenças que hoje são consideradas, no que é acompanhada pela Classificação Internacional de Doenças (CID), mas isso é outra conversa.

Mas o problema não foi os legisladores terem perdido esta oportunidade para eliminar o desperdício que são as juntas médicas de incapacidade por doença oncológica, de onde saem todos com 60% de perda funcional. O escândalo que atenta a mais frugal inteligência está no número 2 do artigo 2º. Reza o legislador que “é competente para a emissão do atestado e para a confirmação do diagnóstico um médico especialista diferente do médio que segue o doente”. Leram bem.

Pode ser um especialista, seja lá do que for, desde que não seja o médico que segue e conhece bem o doente. Pode ser qualquer um, desde que não seja o mais conhecedor da doença do doente. Ou seja, o legislador supõe que o médico que segue o doente é um aldrabão que não pode atestar a doença do doente que trata. Não é competente para a emissão do dito atestado. Logo, ou o doente marca mais uma consulta e é visto por um colega “diferente”, necessariamente mais sério, ou o designado “diferente”, e por isso mais sério, assina o atestado baseado nas informações que o médico que segue o doente, o “menos sério”, escreveu no diário clínico. Não quero crer que as doutas e esclarecidas cabeças deputadas, para não falar das três Excelências que promulgaram a Lei, acharam que entre colegas não haveria problema e seria instituída a rebaldaria de haver especialistas a assinarem atestados preenchidos por funcionários administrativos, uma espécie da falsidade atestática por via do cumprimento da Lei. Se isto não é estúpido, não sei o que é estupidez.