Em Maio passado, gastei uma quantidade inusitada de tempo a fazer o que nunca faço: reler as minhas crónicas, no caso as que escrevi sobre o actual governo. O propósito era nobre, e prendia-se com a publicação de um livro saído esta semana (pausa publicitária: que mil familiares do dr. César lhe desabem na cabeça se ainda não adquiriu tão magnífica obra). A experiência foi traumática, para dizer o mínimo. Acompanhar a chamada “actualidade”, de modo a garantir a coluna no Observador, é convívio mais do que suficiente com os bandos que tomaram conta disto. Não é clinicamente aconselhável reforçar a confraternização.

Os textos em causa, muito menos por mérito do autor do que pelo evidente e portentoso demérito das criaturas que mandam em nós, são premonitórios. Na medida em que as premonições não primam pelo optimismo, são também deprimentes. Desde o primeiro momento, a loucura intrínseca à aliança das “esquerdas”, legitimada por um Presidente que o artigo 328.º do Código Penal me impede de comentar, mostrou ao que vinha e para que servia. O impressionante não é que o desastre se tenha confirmado com estrondo, mas que durante ano e meio o desastre se confundisse, para uma notável percentagem da população, com um relativo sucesso. A sucessão de glórias circenses, da bola às cantigas, passando pelo Santo Padre ou pelo Santo Guterres, não explica tudo. A submissão de boa parte dos “media” explica um bocadinho. As benesses do turismo explicam outro bocadinho. A apatia do bom povo e o júbilo das clientelas talvez expliquem o resto.

Certo é que, em poucas semanas, alguma coisa mudou. Não mudaram o circo, os “media”, o povo ou as clientelas. Sucedeu apenas que, de repente ou nem por isso, a realidade tornou-se impossível de negar. E a invencível nação que, de acordo com a propaganda, maravilhava a Terra acordou destapada. E feia. Foram necessários dezenas de cadáveres carbonizados e um picaresco (e aterrador) roubo de armamento ao exército para expor, à revelia da maquilhagem e do “spin” e das “boas notícias”, a natureza da gente que ocupa o poder.

Não tem sido um espectáculo agradável, excepto para apreciadores da incompetência, do descaramento e da radical ausência de dignidade. É, em suma, uma gente literalmente abjecta. Perante a tragédia, eles decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram desleixos maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as câmaras, dão abraços. Perante a culpa, acusam eucaliptos e furriéis. Perante o caos, pedem avaliações de popularidade. Perante a obrigação, partem de férias para Ibiza, a subjugar espanhóis com a barriga e um par de cuecas.

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A propósito de Espanha, é revelador que, apesar dos divertidos esforços dos “jornalistas” de cá para os calar, sejam sobretudo os jornais de lá a contar-nos o que o “estrangeiro” vê quando olha para aqui. Vê uma anedota perigosa, um manicómio em auto-gestão, uma experiência do Terceiro Mundo às portas da Europa. E, naturalmente, assusta-se.

O susto não é descabido. Descabido é o rumo que, com a sensatez habitual, o “debate” indígena ameaça seguir. A oposição, se a palavra se aplica, andou uma semana a lamentar o colapso do Estado e a reclamar a demissão dos ministros da Administração Interna e da Defesa e o regresso do dr. Costa. Para quê? Não imagino. A substituição de duas insignificâncias por duas insignificâncias iguaizinhas não alteraria nada. O prolongamento das férias do dr. Costa por 20 ou 30 anos alteraria imenso. Quanto ao Estado em frangalhos, em teoria só um socialista, assumido ou dissimulado, se maçaria com o tema – na prática, o aborrecido é a devastação principiar pelos únicos pedaços que, se calhar, convinha manter.

Entre o chinfrim, sobra um facto: Portugal é governado por uma coligação de leninistas com sentido de oportunidade e de oportunistas com nostalgias totalitárias. O que nos está a acontecer é o percurso fatal em qualquer arranjo do género. Começa-se em euforia, avança-se para a estupefacção, saltita-se para a raiva e termina-se em desgraça, porque semelhante malformação não poderia terminar de maneira diferente. O simbolismo da recente manifestação de apoio ao sr. Maduro, em Lisboa, não é desprezível.

No mesmo dia em que os funcionários da ditadura atacaram com marretadas pedagógicas o parlamento venezuelano, o Conselho Português para a Paz e Cooperação, uma excrescência do PCP, desfilou a regozijar-se com o sangue das vítimas. Na homenagem, participaram, cito, “representantes da câmara municipal de Lisboa” e, quiçá em celebração de Tancos, a Banda do Exército. Segundo o “Diário de Notícias”, o belo evento “foi perturbado por um incidente com um cartaz”. O cartaz rezava “Venezuela Livre”, e o portador acabou devidamente assaltado em prol da paz e, claro, da cooperação.

Portugal não está nas mãos de irresponsáveis, tradição a que aliás nos habituáramos: está nas mãos de criminosos, por acção ou omissão. São eles que, a cada calamidade, juram que podia ter corrido pior. E, no que depender deles, há-de correr.