O mundo anda cheio de surpresas e a língua portuguesa também. No outro dia, a Porto Editora anunciou que uma das dez palavras candidatas a “palavra do ano”, a ser revelada a 4 de Janeiro, é a palavra “infodemia”. Como o meu velho dicionário Cândido de Figueiredo não concebe esse mal, fui ver, na net, o dicionário Priberam, e lá encontrei o significado: “Excesso de informação sobre determinado tema, por vezes incorrecta e produzida por fontes não verificáveis ou pouco fiáveis, que se propaga velozmente”.

Não vou aqui tecer considerações sobre as variações que a palavra permite e que sem dúvida abrilhantarão a nossa língua num futuro próximo, sobretudo se “infodemia” ganhar o justo galardão da Porto Editora. De resto, é verdade que andamos todos infodemizados de manhã à noite e que, sobre qualquer asssunto, se propaga velozmente informação “incorrecta e produzida por fontes não verificáveis ou pouco fiáveis”. Tomemos apenas um exemplo sobre o qual muito se tem falado e escrito: a recente declaração de Mamadou Ba, que, citando Frantz Fanon, afirmou que “nós temos é que matar o homem branco”.

Como notou Rui Ramos, num excelente artigo publicado no Observador (“O único homem com liberdade em Portugal”), a reacção inicial de muita gente, face à surpresa com as declarações de Mamadou Ba, foi a de lembrar que se tratava de uma citação de Fanon, extraída do seu último livro, Os danados da terra (1961), e que Fanon entendia “matar o homem branco” com infinita subtileza, sem conotação alguma com o acto propriamente dito de tirar a vida a alguém, ou então só existindo tal conotação de forma secundária e praticamente irrelevante.

O site Polígrafo, por exemplo, contactou Mamadou Ba para auscultar a sua avisada opinião sobre a pequena polémica e concluiu que “a frase isolada carece do respectivo contexto e por isso é enganadora”. Mamadou Ba, que propõe “uma nova narrativa” contra o “discurso de ódio”, acompanhada de uma crítica da “orocentralidade do pensamento” (escusam de ir ao dicionário Priberam), sustenta que as críticas que lhe fizeram foram “erradas” e “desonestas” e que o significado da frase de Fanon por ele utilizada é que “para combater o racismo é necessário combater a ideologia da supremacia branca”. Quer dizer: Mamadou Ba ter-se-ia limitado a afirmar a mais insuspeita das evidências.

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É assim? É tudo menos assim. Como lembrou Rui Ramos no artigo que referi, Fanon, em Os danados da terra, apela repetidas vezes ao assassinato dos colonos brancos, algo que o seu amigo Holden Roberto levou a cabo em grande escala em Angola (Fanon dá mais do que uma vez o exemplo de Angola no seu livro). Algumas citações de Fanon, a bem do tal “contexto” que o Polígrafo parece tanto apreciar e cuja falta tanto o faz sofrer: “o colono não deixa nunca de ser o inimigo, o antagonista, muito precisamente o homem a abater”; “apenas a violência é pagante”; “a violência é atmosférica”; a violência, para o colonizado, “representa a praxis absoluta”; “trabalhar é trabalhar na morte do colono”; “a violência é assim compreendida como a mediação real”: “o homem colonizado liberta-se na e pela violência”; “para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono”; “esta praxis violenta é totalizante, pois que cada um se faz elo violento da grande corrente, do grande organismo violento”; “ao nível dos indivíduos, a violência desintoxica”; “iluminada pela violência, a consciência do povo revolta-se contra qualquer pacificação”. Podia continuar quase indefinidamente, mas estamos entendidos, suponho. Há aqui algo de diferente dos suavíssimos propósitos que Mamadou Ba se atribui – e atribui a Fanon.

No prefácio que Fanon lhe havia pedido e que ele escreveu para Os danados da terra, Sartre, como de costume, dobra a parada: “no primeiro tempo da revolta, é preciso matar: abater um europeu é matar dois coelhos de uma só cajadada (faire d’une pierre deux coups), suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: sobram um homem morto e um homem livre”. O elogio de Sartre ao livro não vem por acaso: Os danados da terra ecoa as páginas sobre colonizadores e colonizados da Crítica da razão dialéctica (1960) do próprio Sartre, e o livro deixa transparecer, aqui e ali com brilho, todo o estilo da dialéctica sartreana. Nomeadamente num aspecto que Rui Ramos mais uma vez salientou e que Raymond Aron, na sua análise da Crítica, História e dialéctica da violência, definiu perfeitamente: “as relações entre os colectivos tendem a substituir-se às relações entre pessoas, ou, se se se quiser, as relações entre pessoas sofrem a cada instante a influência deformadora das representações que os membros de cada colectivo têm do outro”. É essa “influência deformadora” que permite matar uma mulher ou uma criança sem nelas ver indivíduos, ou sentir uma desintoxicante libertação face ao “cadáver em decomposição do colono”, cadáver esse que deve ser o único produto do trabalho e da praxis do colonizado.

Fanon repete Sartre e Sartre, como notou Hannah Arendt em Sobre a violência, além de repetir a repetição de Fanon, apresenta curiosas reminiscências de um dos livros fundadores do século XX, as Reflexões sobre a violência (1906) de Georges Sorel, um livro que influenciou gente à esquerda e à direita, de Gramsci a Mussolini, de Walter Benjamin a Carl Schmitt. Estamos num terreno muito diferente daquele que era o de Marx e o de Engels, que concebiam limitações ao uso da violência (por isso Fanon critica o segundo), mas não tão diferente assim do de Lénine – que desprezava Sorel, que por sua vez o admirava –, com a diferença que para Lénine a violência (como tudo de resto) obedecerá sempre a considerações tácticas, no interior das quais gozará de grande liberdade, e não será elevada, pelo menos explicitamente, à dimensão de mito redentor da humanidade.

Dir-se-á que, com Fanon e Sartre, estamos em plena guerra da Argélia e que, para lá da condenação de princípio do colonialismo, o exército francês praticava abundantemente a tortura, como, por exemplo, Henri Alleg o mostrou. Certo. Mas o passo que Sartre e Fanon dão coloca-os num patamar que não é já comensurável com a crítica do colonialismo e da violência exercida sobre as populações nativas, para não ir mais longe. Saltámos a pés juntos para o domínio de uma violência mítica e redentora, para a qual a libertação surge, esplêndida, do odor da decomposição de uma assembleia de cadáveres.

Foi isto que o senhor Mamadou Ba achou por bem aconselhar como subtil acompanhamento da sua sem dúvida profícua crítica da “orocentralidade”. Com a diferença, apesar de tudo não despicienda, que o fez não em 1961, mas em 2020. Quer dizer: com as descolonizações todas realizadas e as teses da “ideologia da supremacia branca” universalmente condenadas, excepção feita a um ou outro bando de maluquinhos. Para mim – mas admito que seja “orocentralidade” da minha parte –, Mamadou Ba não sabe muito bem o que diz. O mais provável é ele sofrer da tal “infodemia” que a Porto Editora se propõe alçar a “palavra do ano” e que o site Polígrafo, muito bem acompanhado por personalidades sortidas, achou seu dever exemplificar, pretendendo o contrário.

PS. É verdade. No seguimento de Helena Matos, que também aqui há uns tempos se interrogou sobre o assunto: em que ponto se encontram as investigações policiais sobre aquela manifestação em frente à sede da S.O.S. Racismo e sobre a carta com ameaças de morte a vários indivíduos, entre os quais pelo menos duas deputadas? O inquérito é assim tão difícil? Por mim, confesso, acho um pouco estranho que mais nada, depois da comoção inicial, se tenha sabido.