Nos primeiros dias de Agosto fui assistir a uma corrida de touros no Campo Pequeno e declaro desde já que não sei nada do assunto. Já tinha ido, há muitos anos, ainda havia praça em Cascais. E vi algumas na televisão, ou bocados de algumas. Mas aí está, o primeiro ponto deste texto é explicar que assistir ao vivo – estar ali, a meia dúzia de metros – ou ver na televisão são duas experiências completamente diferentes. O que aqui vou fazer hoje é contar o que é uma corrida de touros tal como eu a vi. E repito, é a perspectiva de alguém que, naquela matéria, e para todos os efeitos, é praticamente ignorante.

A principal sensação, que se vai tornando nítida à medida que a corrida avança, é a de que estamos perante um espectáculo – ou uma arte, uma tradição, e um ritual – que põe em confronto a força contra a inteligência. E a medida desse confronto é absoluta, ou procura aproximar-se do absoluto. Ele é posto em termos tais que representa, e se percebe que representa, a predisposição de levar esse confronto até às últimas consequências. É realmente um confronto de vida ou morte.

Como escrevi no princípio, assistir ao vivo não é igual a ver na televisão. São dois exercícios que não se equivalem. Na televisão o acontecimento é muito filtrado: a câmara dá certa imagem, um comentador informa, traçam-nos o guião. Não se vê uma corrida de touros, vê-se a representação de uma corrida de touros. Magritte percebeu e usou um cachimbo para nos mostrar a diferença entre uma coisa e a outra. Ao vivo, há distâncias e proximidades, ouvem-se os sons fora dos microfones, percebe-se as paragens tensas da respiração. Reconhecemo-nos na dimensão dos homens e encolhemos perante a presença do touro.

A noção de equidade é muito mais atingível. Sobretudo no toureio a pé, que é lindíssimo, e na parte dos forcados (nas chamadas pegas). E mesmo no toureio a cavalo percebe-se que o perigo é real; está ali um bicho bravo e furioso, disposto a matar e com uma boa dose de hipóteses. Ou seja, o plano não está inteiramente inclinado à partida contra o touro; ao vivo, essa noção torna-se bastante clara.

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Depois é o ambiente. Uma pessoa sente-se enfiada numa cápsula de genuinidade, de descida ao concreto, ao que interessa da existência. O mundo artificial, adocicado, paternalista e permanentemente ofendido, essa versão de colégio interno em que Portugal se transformou, ficou do lado de fora, reduzido a doze ou treze patetas com um megafone. Ali, dentro da praça de touros, há uma espécie de laço entre a assistência. Cria-se uma afinidade entre aquelas pessoas, uma bolha do mundo como ele deve ser.

Surpreendeu-me esta comunhão. Suspeito que deve ter-se intensificado nos últimos anos com o estigma e a perseguição dos ditadores de virtude. Uma corrida de touros une mais as pessoas do que mil prédicas sobre solidariedade. Diria até mais do que um espectáculo de música, pela natureza e pela disposição em círculo. Dentro da praça, aquela gente toda está tensa, contorcendo-se pela vida dos homens que vê na arena. Percebe-se que a sobrevivência não é mesmo um dado adquirido.

E um aspecto luminoso: estão ricos e pobres, está o povo, a aristocracia e a classe média, brancos e pretos, homens e mulheres. Ali dentro, durante o espectáculo, nenhuma destas condições supérfluas existe enquanto barreira. Desaparece toda a circunstância, são homens contra um animal que mata. Há mais humanismo numa corrida de touros do que em anos e anos lectivos de “Educação para a Cidadania”.