A condenação do ataque russo à Ucrânia tem sido (quase) universal e vinda de (quase) todos os quadrantes políticos. Existem exceções, como algumas declarações que temos em Portugal, amplamente comentadas aqui no Observador. No entanto, pelo menos, essas são resultado de coerências ideológicas internas, que resultam em tentativas, mesmo que desesperadas, de sobreviver a algo que se torna cada vez mais insustentável de defender. E depois há aqueles que, uma vez encurralados num canto onde eles próprios se colocaram, só têm a opção de esperar que os outros tenham uma memória tão curta, mas tão curta, que não se lembrem de coisas que aconteceram nos últimos quatro anos.

Na campanha para a eleição à Presidência dos Estados Unidos, em 2016, o então candidato Trump fez entender, repetidamente, que não estava interessado em afirmar um apoio incondicional à Ucrânia. De facto, na convenção desse ano em Cleveland, a campanha Trump, liderada na altura por Paul Manafort, antigo lobista para o russófilo Presidente Viktor Yanukovych, fez desaparecer da plataforma política do Partido Republicano qualquer menção que os Estados Unidos se comprometiam a vender armas à Ucrânia. Também nessa altura, o candidato Republicano diria que levantaria as sanções económicas à Rússia devido à invasão da Crimeia, visto que esse país já estava na Ucrânia “de uma certa maneira”. Mais tarde, no famoso episódio da “conversa telefónica perfeita”, o então Presidente Trump condicionou a venda de FGM-148 Javelins, uma arma antitanque, à necessidade de Zelensky “fazer um favor”, que seria anunciar que a Ucrânia iria abrir uma investigação criminal envolvendo o candidato Joe Biden e o seu filho Hunter. Dessa “conversa perfeita” resultaria o primeiro processo de impeachment de Trump, onde 195 Representantes e 52 Senadores Republicanos acharam que o que acontecera não tinha sido, de todo, um abuso de poder.

A maior parte desses Republicanos ficariam também silenciosos enquanto o líder do partido, e da nação, minava a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Ou quando se interrogou publicamente se os Estados Unidos deviam sair em defesa de uma nação como Montenegro, membro da NATO, logo ao abrigo do Artigo 5º: “um ataque a um é um ataque a todos”. Ou quando recusou toda a evidência, muita recolhida pelos seus próprios serviços de informação e segurança, de que os ataques à eleição presidencial de 2016 partiram, ou teriam sido apoiados, pelo Kremlin, dizendo que “não vejo qualquer razão para acreditar que a Rússia esteve envolvida”. Incrivelmente, a explicação apresentada então por Trump, e seus acólitos, tal como o antigo Mayor de Nova Iorque Rudy Giuliani, foi de que tinha sido a Ucrânia a tentar influenciar ilegalmente as eleições, com um ainda mais inacreditável argumento: um servidor informático do Comité Nacional Democrata encontrava-se na Ucrânia e que neste podia encontrar-se a informação de que… tão ridículo que não vale a pena continuar. E quando os tanques e os bombardeamentos começaram em Kiev e Kharkiv, o grande favorito a ganhar a nomeação pelo partido para candidato a presidente em 2024, Donald J. Trump, disse que Putin era um “génio” e “inteligente”, a sua estratégia para invadir a Ucrânia era “maravilhosa”.

A ausência de condenações vigorosas por parte de muitos líderes e políticos Republicanos a tais inanidades pode ser entendida de diferentes formas: a tentativa de não hostilizar uma parte do eleitorado cada vez mais pró-Putin, o interesse por campanhas de influência em processos eleitorais, o dinheiro russo que entra em algumas das organizações na órbita do GOP, o receio de um segmento televisivo crítico por parte de um dos comentadores da FOX-News. Daí os contorcionismos que se têm observado do outro lado do Atlântico. Uma necessidade de mostrar força e influência dos Estados Unidos na ordem mundial, enquanto se acusa a América de ser fraca e tímida. A necessidade de impor sanções, mas a incapacidade de suportar os seus efeitos. A necessidade de dizer algo em favor da Ucrânia, mas ao mesmo tempo não dizer o suficiente para ser considerado hostil a Moscovo. A filosofia do America First, isolacionista e antiglobalização, e o receio de os EUA serem ultrapassados em questões geoestratégicas por uma União Europeia surpreendentemente unida.

Numa sondagem da CBS News com a YouGov, 25% dos inquiridos que se identificavam como Republicanos disseram que a política de Biden relativamente à Rússia é “demasiado hostil”, e 55% consideram que a América devia ficar de “fora de qualquer negociação entre a Federação Russa e a Ucrânia”. Esse é o eleitorado a que parte dos candidatos ao Senado e Casa dos Representantes este ano, e eventualmente à Presidência em 2024, tem de agradar para se manter na corrida para ganhar as eleições primárias: a MAGA nation, onde se prefere ser russo que Democrata, e onde Putin é o avatar daquilo em que parte dos conservadores querem ver os Estados Unidos a transformar-se, numa nação cristã, regressiva e repressiva para com aqueles que não têm a mesmas crenças e ideais. Para estes, a Ucrânia é um preço razoável a pagar para uma maior proximidade de Moscovo com Washington. Para outros, e esperemos que sejam estes que vençam esta “guerra civil” dentro do partido, a América continuará a ser amiga dos aliados, continuará a lutar pelos valores da democracia liberal, por direitos humanos, e pela autodeterminação dos povos. A alternativa é deixar Putin e Xi continuarem com as suas tendências expansionistas, seja qual for a desculpa apresentada para tal.

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