No passado dia 29 de janeiro, em votação final global da reunião plenária da Assembleia da República, foi aprovada a Proposta de Lei 43/XIV, contendo cerca de 50 páginas autorreferenciadas como destinadas a reforçar as garantias dos contribuintes e a simplificação processual, alterando nove diplomas da legislação fiscal, entre os quais a Lei Geral Tributária (LGT), o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT). Esquecendo, por agora, as múltiplas alterações a estes diplomas, que não deixarão igualmente de merecer atenção, é sobre uma particular alteração ao Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPITA) que agora nos debruçamos.

1 É que entre as alterações ao RCPITA salta logo à vista a intrigante proclamação de que, “para garantia da eficácia da ação inspetiva, o sujeito passivo ou obrigado tributário estão inibidos da apresentação de declarações tributárias relativas a factos compreendidos no âmbito e extensão de procedimento de inspeção (…) desde o início do procedimento inspetivo até à sua conclusão” (artigo 28º nº. 3). O que o legislador com isto pretenderá é a compreensível limitação da possibilidade de o contribuinte emendar a mão dentro do período em que decorre o procedimento de inspeção, assim alterando por iniciativa própria os dados pressupostos da realização da inspeção, a menos que um conjunto restrito de condições se verifique.

A questão, aqui, é a de saber em que condições e quais as consequências em que o passa a poder fazer. Desde logo, o contribuinte que nesta altura pretenda proceder, apresentar ou alterar declarações anteriormente apresentadas deve, no prazo para audição prévia apresentar requerimento nesse sentido, “com identificação das correções (…) relativamente às quais a regularização é pretendida”, o qual ainda fica sujeito a aprovação. Ou seja: pode alterar ou completar as suas declarações anteriores, mas só depois de indicar por escrito exatamente aquilo que pretende fazer e contando que venha a obter superior autorização para esse efeito. Autorização esta, que agora passa a ser a condição essencial para o exercício, por parte do contribuinte, do seu direito e dever de alterar ou completar as suas próprias declarações.

De notar, que muitas vezes estas retificações não visam corrigir erros cometidos nas declarações apresentadas pelos contribuintes, mas antes a dar resposta a frequentes situações em que se veem confrontados com entendimentos, muitas vezes exóticos ou simplesmente conservadores, defendidos pela inspeção tributária.

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2 Mas atenção: o contribuinte ou o seu contabilista que, perplexo com o projeto de conclusões do relatório de inspeção, pretenda rapidamente alterar ou completar anteriores declarações, ou mesmo apresentar uma declaração anteriormente não entregue, além de agora ter de apresentar o tal pedido de autorização, verá ser agendada uma reunião em que estarão presentes o inspetor tributário e o dirigente do serviço competente, com o objetivo de “definir os exatos termos em que a regularização pretendida [pelo contribuinte] se deve concretizar”. Dúvidas houvessem sobre o que isto quer dizer, a norma esclarece que essa definição inclui “designadamente quais as obrigações declarativas a cumprir para o efeito pela entidade inspecionada, com detalhe do respetivo teor” (artigo 58º-A nº. 1). No fim dessa reunião, “os termos da regularização são reduzidos a escrito num documento a assinar conjuntamente pelo dirigente do serviço competente para o procedimento de inspeção e pela entidade inspecionada (…), devendo esta proceder voluntariamente ao cumprimento das obrigações dele constantes no prazo de 15 dias após a realização da reunião.” (artigo 58º-A nº. 1).

Pelo que, muito mais do que o reforço nas garantias dos contribuintes, o que aqui se pretende é introduzir uma solução engenhosa para diminuir a litigância entre contribuintes e a Autoridade Tributária e Aduaneira. Numa autêntica reviravolta totalitária, cria-se uma reunião de “escreva aí”, que ultrapassa vastamente a esfera de intervenção de serviços de inspeção e serve claramente para apanhar o contribuinte ou o seu contabilista certificado desprotegido, chamando-o à razão e explicando-lhe exatamente aquilo que vai fazer.

Esta nova câmara de condicionamento da livre ação do contribuinte inspecionado, muitas vezes obtida e realizada sem a presença de advogados, destina-se ou tem como efeito moldar os futuros comportamentos procedimentais dos contribuintes. Expediente estranho a um Estado de Direito que reconheça a autonomia individual e não serve outro propósito do que colocar os contribuintes perante aquilo que os senhores inspetores consideram ser as suas únicas “opções”. Este facto torna-se ainda mais perverso se pensarmos que nessa reunião estarão presentes dois agentes da administração capazes de o intimidar com o possível levantamento de autos de contraordenação e de colocar o contribuinte perante factos consumados, cuja lógica escapa aos fins do procedimento, ao dever de investigação com vista à descoberta da verdade material e à tributação na medida da capacidade para contribuir.

3 Mas incrivelmente, os requintes distópicos da proposta de lei não se ficam por aqui, já que nela se sugere ainda que “A assinatura pela entidade inspecionada (…) preclude o direito desta de sindicar a legalidade das correções projetadas objeto do documento assinado (…)”, efeito que deve constar do documento de regularização (artigo 58º-A nºs 6 e 7).

Donde, numa penada, esta proposta de lei consegue ir do tão louvável quanto enganador objetivo de “reforçar as garantias dos contribuintes e a simplificação processual”, até ao encarneirar dos contribuintes inspecionados para reunião numa fase em que na maior parte dos casos ainda não estão acompanhados por advogado, levando-os a assinar um documento que levará ao condicionamento intolerável do exercício do seu direito fundamental a suscitar, perante os tribunais ou a própria administração, a ilegalidade de atos tributários que lhes digam respeito.

Por isso, parece que neste particular a proposta de lei não só não reforça as garantias dos contribuintes como pretende apanhá-los na curva, criando problemas em lugar de os resolver. Problemas que, mantendo-se a lei como está, irão certamente absorver o precioso tempo dos senhores juízes do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional e com ele, desnecessariamente, os nossos impostos, que deveriam pelo menos ser o preço que pagamos por uma sociedade civilizada.