Sem pretender ser demagógico, populista como se diz na novilíngua política, interessa olhar para a questão da TAP também sobre o impacto que o financiamento público desta companhia tem na saúde pública. Estou aberto, como a totalidade dos Portugueses que têm sido mantidos na obscuridade, a que me expliquem a importância da TAP vis a vis o SNS. Não é demagogia, é aritmética simples de que não há que chegue para tudo e é preciso fazer opções estratégicas.

Não vou discutir o problema da desigualdade entre os vencimentos dos pilotos, recentemente trazido a público pelo Governo, com os dos trabalhadores da saúde, nomeadamente em comparação com os médicos mais especializados que trabalham horas sem fim, nem sequer os dos administradores da companhia aérea quando comparados com os dos hospitais do SNS. É uma discussão impossível, que apenas faz sentido quando comparando salários do mesmo ramo de atividade.

Também percebo os argumentos que fazem menção aos despedimentos. Perder o emprego é uma tragédia e não é evidente que todos os que perderem o seu emprego na TAP consigam trabalho com facilidade ou rapidez. Nesta fase do problema, há que resistir à tentação de imputar aos trabalhadores da companhia aérea o ónus exclusivo dos seus problemas. Tenho a sensação de que hoje, porventura sem ter sido sempre assim no passado, são mais vítimas do que outra coisa.

Tenho mais dificuldade em entender os números do eventual impacto negativo da liquidação da TAP, em especial a história de que sem TAP não haveria turismo para Portugal, ou de que há empresas não reconvertíveis, que só subsistem porque a TAP é o seu único ou principal cliente. Simplesmente, não estou convencido de que uma TAP do Estado seja essencial para o nosso país. Entendo que a sua renacionalização, ainda que apenas parcial, foi um erro. Há coisas que necessitam de ser explicadas para que possamos aceitar a obrigação que nos querem impor de pagar um “serviço público” aéreo, que mais não é do que sustentar uma actividade comercial atualmente não lucrativa em nome de um hipotético benefício nacional que não vislumbro.

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Mesmo que, por hipótese absurda, a contribuição dos Portugueses, por via fiscal, fosse traduzida em viagens gratuitas, como se de consultas médicas se tratassem, continuaria a entender que seria um disparate enorme tentar comparar a necessidade de ter uma TAP à de possuir um Serviço Nacional de Saúde (SNS), um sistema de pensões, escolas e universidades, polícias, exército, tribunais, bombeiros, ambulâncias e por aí fora. Em suma, até que me demonstrem essa evidência, não acredito na necessidade de haver uma companhia de bandeira, ou seja, no inevitável interesse estratégico de manter a TAP e, muito menos, de esta ser detida maioritariamente pelo Estado.

Dito isto, também se poderia argumentar que Portugal não necessitaria do SNS. Será? Podemos acabar logo com a discussão invocando a Constituição da República, não necessariamente imutável, que prevê a existência de um SNS e é omissa quanto à obrigação de haver uma companhia estatal de aviação. Mas vamos mais longe. Eu tenho defendido que o Estado pode e deve usar muito mais os serviços privados e do sector social existentes na área da saúde para garantir continuidade de serviços, acesso universal em tempo útil, direito de escolha dos utentes, competitividade indutora de melhoria da qualidade, o que é diferente de subsidiar os seus prejuízos. Nada tenho contra a coexistência de prestadores públicos e privados, ou que se possa pedir a privados para fazer o que o Estado não pode, seja prover cuidados de saúde ou, até, construir hospitais. Também tenho escrito que o SNS é insubstituível em muitas áreas dos cuidados de saúde, aquelas que não garantem lucro aos preços praticáveis no mercado nacional, e em zonas geográficas onde o acesso dificilmente poderia ser assegurado por prestadores privados a preços comportáveis. Há dados internacionais que confirmam as vantagens da cobertura universal, mesmo quando quase só assegurada, e o quase é importante, por privados contratados pelo Estado. O Estado não pode ser substituído na sua função financiadora que garante o acesso universal, a preços acessíveis, a cuidados de saúde em todos os seus níveis de prevenção. O Estado, em Portugal, apenas pode ser parcialmente substituído por prestadores privados ou do sector social no que à prestação de cuidados de saúde diz respeito. A TAP pode ser integralmente substituída por uma qualquer outra companhia privada, ao contrário do SNS.

O Estado comprar serviços a privados, para que os cuidados de saúde possam ser universais, quase gerais e idealmente gratuitos. Não é o mesmo que enterrar mais de três mil milhões de euros numa companhia já falida.

Pode até dizer-se que o SNS também está falido, o que é verdade para muitos hospitais e para a generalidade das operações e serviços prestados, apesar de acumular contas por pagar e praticar salários internacionalmente miseráveis, mas essa falência é devida a subfinanciamento e, ainda mais importante, por Portugal não cuidar de criar a riqueza necessária para sustentar o SNS que legalmente impôs na Constituição. Ora, é evidente que desviar estrategicamente financiamento para “coisas” como a TAP não ajuda nada à sustentabilidade do SNS e, ainda pior, não é nada claro que contribua para a criação da riqueza de que precisamos urgentemente.

Não sei se as contas foram feitas, mas o custo da oportunidade perdida, quando já se entregou mais de mil milhões à TAP e se prevê meter mais dois e qualquer coisa mil milhões de euros, tem de ser medido em contraponto com outras opções, também estratégicas, como as de remodelar as estruturas do SNS que, como a pandemia da Covid-19 demonstrou, estão perigosamente obsoletas em muitos casos, com a exceção dos hospitais PPP, os tais que um Governo do PS contratou com privados. Outros tempos.

O argumento de que não devemos pagar a TAP porque não a vamos usar, tem um valor relativo. Na verdade, felizmente, todos pagamos impostos, nem que sejam indirectos, mas só uma parcela de nós precisa do SNS com grande frequência. Todavia, ao invés da TAP, desde a mais tenra idade, nem que seja pela vacinação universal gratuita, todos podemos usar o SNS e, seguramente, todos beneficiamos de medicamentos comparticipados algures na nossa vida. E aqui está um dos problemas maiores para o contribuinte. Em boa verdade, considerando o nível de fiscalidade em Portugal, estamos todos a comprar gato por lebre quando esperamos tempos infindos por uma consulta ou exame, vamos a um hospital e ficamos alojados em condições deploráveis para as exigências do século XXI, ou aguardamos à chuva que nos deixem entrar no centro de saúde entretanto fechado para Covid.

Note-se que até conheço que a TAP tem transportado doentes, medicamentos, sangue e derivados. Sei que até já o fizeram sem cobrar nada, com produtos vitais consignados à guarda de comandantes. Estou grato à companhia aérea nacional e não sei se “outra” TAP o faria da mesma forma. Reconheço que a TAP sempre me tratou da melhor forma, com segurança e conforto e sou capaz de lhes perdoar atrasos e cancelamentos de voos. Até viajei, como era apanágio de uma companhia do Estado, sem pagar o bilhete enquanto governante. Imagino que nunca tenha tirado o lugar a ninguém e até me lembro que era a TAP quem se queixava da passagem dos membros de Governo para a económica quando havia lugares de executiva por vender. Mas também é verdade que a TAP ainda pratica preços demasiado elevados em muitas rotas e, se perde clientes para a concorrência, esse problema é da companhia aérea e não dos contribuintes.

Chegados aqui, assumindo toda a bondade no financiamento à TAP, querendo acreditar que os mais de três mil milhões que lá vamos colocar são do interesse estratégico nacional, o que normalmente é lido como sendo ruinoso, apenas peço que ainda se lembrem dos 40 milhões de euros necessários para a construção do novo edifício de ambulatório para o IPO de Lisboa. Um A330-neo, segundo valores que este leigo colheu da internet, anda à volta dos 300 milhões de dólares. Não me atrevo a comparar a utilidade de uma aeronave comercial com a de um hospital, já que seria um exercício estulto, mas estou certo que um governo decidir “comprar” a dívida da TAP em vez de construir um hospital é uma decisão política essencial que deve ser escrutinada pelos eleitores.

Fui demagógico? Talvez, mas a verdade é que enquanto há muita gente a fazer demagogia à custa da TAP, independentemente da posição assumida, os doentes com cancro ficam sempre sem voz. Por favor atentem em que, já com mais de trinta anos de esperas sucessivamente adiadas, se passou de pensar em construir um IPO novo, ainda bem necessário, para um só edifício. O IPO também fez o seu exercício de modéstia e depois de nos terem prometido a Bela Vista já nos contentamos só com mais um edifício na Praça de Espanha, mesmo sem vista nenhuma. Na verdade servirá para 275 mil consultas por ano, o equivalente a cerca de 917 lotações completas de um A330. E olhem que não são turistas, são doentes.