1 O site oficial do Governo é, como qualquer site oficial governamental, um local de propaganda. Mas, às vezes, também é um bom local para detetarmos a incompetência do próprio Executivo de António Costa. E logo pela boca do próprio primeiro-ministro.

“Temos de ter pronta no próximo mês [de novembro] a estratégia nacional de vacinação”, afirmou um perentório António Costa a 29 de outubro no final de um Conselho Europeu extroardinário para coordenar as políticas europeias contra a Covid-19. Aliás, o título da peça de propaganda no site do Governo não enganava: “Países da União Europeia terão estratégia nacional de vacinação contra Covid-19 em novembro”.

É um facto que Portugal ainda faz parte da União Europeia mas também é verdade que não terá qualquer estratégia nacional contra a Covid-19 antes da 2.ª quinzena de dezembro. Portanto, e de acordo com a sua própria garantia, António Costa falhou. O que não é propriamente uma novidade nos últimos tempos.

O Reino Unido deverá aprovar a primeira vacina (a da Pfizer) a 7 de dezembro e começar a administrá-la aos grupos prioritários, os Estados Unidos deverão dar os mesmo passos sobre a mesma vacina a 10 de dezembro e a da Moderna a 17 de dezembro. Pior: Alemanha, Espanha e outros países já têm a sua estratégia pensada e pronta para ser executada, enquanto que Portugal ainda está a discutir sobre o quando, quem, onde e como da vacinação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

2 É claro que já nos começaram a dizer que esse falhanço de Portugal em apresentar em cumprir o dead-line da Comissão Europeia não tem problema nenhum. A ministra diz que estaremos preparados mal a Agência Europeia do Medicamento dê o sinal verde à primeira vacina e a diretora-geral Graça Freitas assegura que “há meses” que o Ministério da Saúde está a planear a vacinação, claro. Só não se sabe como.

Vamos lá combater preventivamente o novo mal global: a desinformação. E desta vez com origem no Governo — e não nas maléficas redes sociais.

Portugal sabia desde o dia 15 de outubro que tinha de entregar à Comissão Europeia a sua estratégia de vacinação até ao final de 30 de novembro e pouco ou nada fez. Só no início de novembro é que foi nomeada a Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, que emitirá pareceres técnicos sobre as vacinas e sobre a estratégia de vacinação. E só na segunda quinzena é que foi criado o grupo inter-disciplinar que irá definir quem se vai vacinar, onde, como e quando. Mais importante do que isso, será este órgão que irá organizar todo o complexo processo logístico da vacinação em massa.

Só para ter uma ideia do atraso português, o caro leitor sabe quando é países como os Estados Unidos, Reino Unido ou a Alemanha começaram a fazer os seus planos de vacinação? Uma pista: não foi certamente em novembro. A pior administração norte-americana de sempre (sim, a de Donald Trump) começou preparar a Operation Warp Speed em maio. O Governo de Angela Merkel começou a trabalhar mais cedo ainda: logo em abril. E aquele que costumava ser apelidado de “palhaço”, Boris Johnson, pouco depois dos dois primeiros. Por isso é que estes países já têm tudo preparado para começar a administrar a vacina da Pfizer mal os reguladores aprovem a mesma.

Para fazer um controle de danos, o Governo de António Costa viu-se obrigado a antecipar alguns pormenores gerais da estratégia portuguesa a Luís Marques Mendes no seu comentário deste domingo para acalmar a opinião pública. Ficamos a saber que Governo conta receber em primeiro lugar a vacina da Pfizer e a seguir a da Moderna — e que a vacinação deverá começar em janeiro. Ou seja, quase um mês depois do que está previsto para o Reino Unido e Estados Unidos. E, aposto, várias semanas depois dos prazos previstos para a Alemanha, França ou Espanha começarem a administrar as primeiras vacinas.

3 Não nos podemos esquecer que foi a União Europeia a comprar em bloco as vacinas aos diversos laboratórios e que a distribuição será feita de forma equitativa e ao mesmo tempo pelos estados-membros mal a Agência Europeia do Medicamento vá aprovando as respetivas vacinas. Logo, faz sentido que Bruxelas só autorize a distribuição após aprovar os respetivos planos nacionais.

Por isso pergunto: quais serão as consequências para Portugal por não entregar o seu plano até ao final do mês? Podemos perder alguma preferência na distribuição das vacinas e, com isso, recebê-las mais tarde do que países como a Alemanha ou Espanha?

As dúvidas, contudo, não se ficam por aqui. Até porque Portugal está a falhar a esmagadora maioria dos objetivos impostos pela Comissão Europeia a 15 de outubro — ver o quadro da pág. 10 deste documento.

As especificidades técnicas inovadoras das vacinas da Pfizer e da Moderna não se restringem à questão da baixa temperatura a que têm de ser conservadas — o que obriga a cuidados especiais com a refrigeração e conservação, até porque essa responsabilidade é de cada estado nacional, e não dos laboratórios. Nos Estados Unidos, por exemplo, já se fazem exercícios que simulam a entrega dessa vacina com as embalagens térmicas que a Pfizer vai utilizar e com o software que será estreado para operacionalizar a logística. Por outro lado, aquela vacina tem de ser diluída com a ajuda de soro fisiológico — o que não é comum nas vacinas, como se pode ler neste artigo da The Economist.

Aquela farmacêutica, alias, já está a contar que uma parte dos primeiros lotes de vacinas acabem por se estragar até os profissionais de saúde ficarem devidamente rotinados.

Daí outra pergunta: o Ministério da Saúde já começou a pensar na formação dos enfermeiros e restantes profissionais de saúde que estarão envolvidos na distribuição e na administração das vacinas? Quanto tempo vai demorar tal formação? Esperemos que não aconteça o mesmo que aconteceu com a formação para o uso dos ventiladores adquiridos durante a primeira fase.

Mais outra questão: Portugal já começou a comprar o material necessários para administrar as vacinas, tal como a Comissão Europeia está a aconselhar desde o dia 15 de outubro? Os Estados Unidos, por exemplo, estão a adquirir esse material (seringas, toalhitas de álcool, luvas e outros produtos) desde o Verão, precisamente para não repetir o fiasco dos materiais de proteção para os médicos. O caro leitor deve recordar-se da rábula de março em que os médicos e os enfermeiros não tinham material de proteção individual em quantidade suficiente porque o Governo não o tinha comprado em tempo útil. Mais um desejo para que não se repita a falta de planeamento.

É por todas estas questões que duvido da credibilidade das garantias de Marta Temido de que Portugal está pronto para iniciar a vacinação e de que há zero por cento de hipóteses da estratégia nacional correr mal. É que a ministra da Saúde já tinha dado a mesma garantia para a vacina da gripe, assegurando inclusive de que haveria vacinas para todos. Agora dá o dito por não dito, visto que “tivemos uma procura de pessoas que habitualmente não se vacina” e que agora “já não há vacinas no mercado”.

4 Infelizmente, não é só a credibilidade da ministra da Saúde que anda pelas ruas da amargura. Também a de António Costa não anda muito bem com tantos exercícios de habilidade que pratica. Se em Portugal tenta atingir o PSD de Rui Rio por negociar com a “extrema-direita xenófoba” do Chega de André Ventura, na União Europeia alia-se aos governos autoritários da Hungria e da Polónia para não fazer depender a defesa dos princípios do Estado de Direito do acesso a fundos europeus.

Obviamente que, tal como já tinha escrito aqui, não é estranho ver o Governo do PS ao lado de Viktor Órban — uma espécie de primo direito de André Ventura mais velho e mais sabido — depois do próprio António Costa ter feito questão de ir a Budapeste no verão negociar com Órban. O que é estranho é que Costa continue a pensar que tem o direito de tomar os portugueses por parvos ao dizer uma coisa cá dentro e fazendo exatamente o contrário lá fora.

O Bloco de Esquerda e o PCP é que continuam calados sobre esta matéria. Imagine o caro leitor se fosse um líder do PSD a fazer esta figura de apoiante de Viktor Órban — o que a extrema-esquerda não diria e as manifestações que não organizaria. Por aqui vemos a seletividade (e desonestidade) de tantos rasgares de vestes do passado.

PS — Já o Chega de André Ventura só engana quem quer ser enganado. É importante que quem está a pensar votar no Chega perceba que o projeto de Ventura tem igualmente uma raiz autoritária. Basta ver este exemplo que consegue uma espécie de dois em um: impede o escrutínio do trabalho das forças policiais e ainda ataca a liberdade de expressão.