As reações ao novo coronavírus, ou COVID-19, estão a revelar-se uma fotografia a preto e branco. Entre os extremos de quem o vê como um não-assunto e quem o considera um risco mortal, uma nota em comum: o egoísmo. Todos avaliamos – pessimistas e otimistas – a situação em função do que nos pode acontecer a nós próprios. Contudo, quando falamos de um vírus como o COVID-19 temos de ser conscientes do todo. Devemos por isso alertar a população mais saudável e capaz para a necessidade de proteger o seu segmento sob maior risco (idosos, doentes crónicos, imunodeprimidos). Ou seja, independentemente da infecção pelo coronavírus nos assustar ou não, o risco de transmiti-lo deveria. Ao contrário de muita opinião publicada durante o fim-de-semana, é nossa convicção que a mudança de discurso da Diretora da DGS alertando para o cenário de “1 milhão de infectados” é positiva, contribuindo para o despertar coletivo da população portuguesa para a realidade do COVID-19. Na sequência da confirmação dos primeiros casos em Portugal, enumeramos os 5 passos que consideramos fundamentais para uma melhor reação nacional a este desafio de saúde pública.

Passo 1 – Conhecer os factos (e entender que estes podem mudar)

Então é como uma gripe?

Comecemos pelo que não é o COVID-19: nem é “só uma gripe vulgar” nem é um vírus totalmente novo à medida de certas teorias da conspiração. É um tipo de vírus conhecido, mas novo para a espécie humana. Isto implica uma imunidade limitada e algumas incógnitas em relação à sua evolução. O COVID-19 parece ser facilmente transmitido entre humanos, cujo modo de contágio dominante aparenta ser a via respiratória. Após infectado, um indivíduo pode permanecer assintomático desde vários dias até semanas, questionando-se a sua capacidade infecciosa nesse período.

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Todos estes fatores contribuem para um R0 atualmente apontado entre 2 a 3, ou seja, cada pessoa infectada contagia 2 a 3 pessoas. Aproximadamente 14% dos infectados apresentam-se com doença grave e 5% em estado crítico. A mortalidade nos casos confirmados de COVID-19 (com limitações à extrapolação para a população geral) está estimada entre 2 e 3%, dependendo das características do infectado e do nível de cuidados de saúde prestados. Contudo, adultos previamente saudáveis correspondem apenas a 0,9% do total de mortes. Comparativamente, a gripe sazonal apresenta uma mortalidade global de 0,1% e um R0 próximo de 1. De ressalvar que sabemos ainda pouco sobre o comportamento do COVID-19 em climas desérticos ou tropicais secos, bem como noutras populações mundiais onde agora surgem os primeiros casos (África, América do Sul).

Afinal estamos perante uma pandemia?

Perante estas características, uma situação que até há poucos dias era descrita pela OMS como “epidemia asiática ainda controlável”, tornou-se rapidamente numa “pandemia provável”. Vários epidemiologistas e infecciologistas de renome mundial, tratam este último cenário como uma certeza. A verdadeira questão já nem é se estamos perante uma pandemia, mas sim quando se instalará na restante Europa. Em Itália, onde se observa uma progressão exponencial dos casos positivos cruzando a barreira do milhar, crê-se que o COVID-19 passeou indetetável na população durante várias semanas. Ou seja, é fácil desvalorizar a atual situação nacional, mas a facilidade de contágio e a duração do período assintomático significam que, num espaço de dias, a realidade pode mudar por completo.

A boa notícia? Podemos influenciar a expansão do COVID-19 através de medidas preventivas, que no contexto de uma pandemia têm de ser aplicadas em larga escala. Mas esta influência só é exequível com uma estratégia nacional adequada e um seguimento sério da cidadania.

Passo 2 – Atuar com transparência e honestidade, integrando a população na resposta à pandemia

A doença vai ser contida?

O Estado estar preparado para uma epidemia, como as entidades públicas tendem a afirmar publicamente, não é suficiente. Se a população não estiver igualmente preparada e conhecedora da realidade, qualquer plano acabará por sofrer reveses.

É errado promover e publicitar estratégias de contenção (quarentena, isolamento ou o seguimento de cadeias de transmissão) como uma panaceia que evitará a expansão de um vírus com uma capacidade de contágio tão elevada e dissimulada. Isto é por demais verdade numa população sem experiência na implementação e adesão cívica a estas estratégias.

Estas estratégias de contenção não vão limitar significativamente a dimensão desta pandemia fora da China. Implementadas neste país, à custa da liberdade da sua população e com graves prejuízos para a economia chinesa e global, levantaram questões éticas inadmissíveis para democracias ocidentais.

Contudo, as ações do governo Chinês foram importantes para um atraso da expansão do COVID-19, que serviu vários propósitos nos últimos dois meses. No início de Janeiro, a quarentena de Wuhan atenuou a propagação do vírus, controlando o número de pessoas que adoeceram em simultâneo (o que permitiu a preparação dos hospitais chineses no aumento da sua capacidade e tempo de resposta). Paralelamente, facilitaram o estudo inicial do COVID-19, contribuindo para o início do processo de desenvolvimento de uma vacina, cuja disponibilidade está prevista somente em meados de 2021.

Em Fevereiro, perante o alastramento a outros continentes (a China já não é responsável pela maioria dos novos casos), o esforço de contenção asiático deveria agora servir para informar e preparar a população para os passos seguintes quando estas atitudes se tornarem impraticáveis e, pior, contraproducentes.

O que se segue?

Quando forem detetados casos positivos na população portuguesa cuja cadeia de contágio não esteja conectada a um caso importado, devemos assumir que o vírus se encontra em circulação na população. A partir desse ponto, o isolamento indiscriminado de pessoas não é benéfico, podendo prejudicar o seu acesso aos cuidados de saúde por outras causas e até ter um impacto negativo na coesão social e economia.

Perante este cenário, a população deveria ser preparada para a eventual transição de um esforço de contenção para um de mitigação, com recurso à estratificação de risco.

Nesta linha, por intermédio de campanhas de informação em comunicações governamentais, através da linha Saúde24 e com recurso aos cuidados de saúde primários, identificar-se-ão casos ligeiros a moderados que devam passar o período de convalescença em casa com tratamento de suporte e vigilância próxima. Casos com critérios de gravidade seriam encaminhados para cuidados hospitalares. Esta mudança de estratégia implicaria uma comunicação coordenada e direta à população por parte dos vários organismos governamentais, informando-a de que nem todos os casos serão avaliados em contexto hospitalar, nem testados para COVID-19, de forma a poupar recursos de saúde para os mais frágeis e mais doentes.

“1 milhão de infectados em Portugal” – pode mesmo acontecer?

O cenário de 1 milhão de casos discutido pela Dra. Graça Freitas deve ser encarado neste contexto de sensibilização. É uma situação-limite, vista como improvável, mas que evidencia que o plano de contingência não pode, nem deve, assentar exclusivamente no SNS. Inclui em primeiro lugar a sociedade civil, não ignorando o papel do setor social e privado da Saúde. O nosso argumento é que esta afirmação só gerou controvérsia pelo total desconhecimento por parte da sociedade do plano de ação governamental a um cenário pandémico. Por isso, o grau de transparência deve ser revisto, permitindo à população que se mentalize do risco em que incorre e se envolva na estratégia de resposta a esta ameaça.

Passo 3 –  Permitir o medo para evitar o pânico

A transparência não leva ao pânico?

É uma dicotomia frequente na área da saúde. Os órgãos decisores tendem a agir como se a gestão transparente de uma pandemia fosse a abertura para o pânico social. Contudo, para além de errada, em linha com a análise do especialista em comunicação P. Sandman, julgamos que esta atitude é contraproducente. O medo é uma emoção humana natural, expectável e até desejável perante o desconhecido. Quando ouvimos um rugido, tendemos a fugir por medo de um eventual leão. Da mesma forma, o medo é um elemento fundamental no processo de aceitação e reação à perspetiva de uma pandemia. O medo que a população em geral sente é o mesmo medo que os governantes e responsáveis de saúde pública nacionais e internacionais sentem. Admiti-lo é incluir a população no processo de compreensão do risco e de preparação para o problema que se aproxima, tanto de um ponto de vista físico como psicológico. Importa, acima de tudo, ajustar o grau de preocupação ao nível de risco coletivo.

Contudo, atualmente, à parte da evolução na comunicação da DGS, a mensagem coletiva continua a ser de que o clima nacional deve ser o de “tranquilidade” porque a situação está “controlada” e estamos “preparados”. Mas quem está, afinal, preparado para uma pandemia?

Os líderes mundiais (Trump é exemplo máximo) agem na convicção que a população confia cegamente nas suas mensagens que, nos últimos dias, parecem mudar a cada ciclo noticioso. A convicção absoluta num plano de contingência opaco para a população incorre no risco de, na eventualidade de nos depararmos nos próximos dias com uma confirmação repentina de um surto de casos positivos, se crie uma desconfiança compreensível por parte população quanto à ação governativa. Este volte-face pode contribuir para o clima de pânico que procuramos a todo o custo evitar. Por outro lado, essa perda de confiança, que dificilmente se recupera no decurso de uma crise, limita a adesão a medidas futuras de saúde pública.

Deveríamos portanto, à semelhança do que tem feito a Dra. Graça Freitas, admitir com frontalidade o grau de incerteza em que navegamos e evitar exibir uma confiança quase cega na eficácia das decisões tomadas. Importa partilha com a população os dilemas em que nos encontramos, em vez de procurar atingir uma indiferença social que não será duradoura nem é desejável. Caso contrário, perdemos a oportunidade de envolver a população na tomada de decisões e nos preparativos a desenvolver enquanto sociedade. Quando o medo, eventualmente, se instalar, será já reativo e inconsequente em vez de proativo e ligado ao processo de preparação pré-crise. A população pode ser levada a tomar medidas e decisões sozinha, impulsionadas por um clima de pânico, incorrendo em comportamentos irracionais e desnecessários (a compra compulsiva de máscaras e desinfectante é já um sinal deste sentimento).

Passo 4 – Respeitar a Imprevisibilidade é Pecar por Excesso

O teste da Gripe A que nunca chegou.

Uma consequência negativa do êxito na contenção da Pandemia do Vírus Influenza A subtipo H1N1 foi o domínio de uma corrente de pensamento defensora de que a precaução e preparação enveredadas em 2009 acabaram por ser excessivas. Porém, hoje corremos o risco de, tendo esquecido a lição por a Gripe A não ter chegado a pôr-nos à prova, acabarmos a pecar por defeito. Apesar de estarem agora a ser promovidas normas para a convivência social nas empresas, escolas e universidades, já o deveríamos estar a praticar há várias semanas. A população começa agora a ser instruída de forma mais veemente para atitudes básicas de etiqueta respiratória bem como para a vigilância térmica diária. Contudo, esta mensagem deveria ser ativamente reforçada a todos os níveis do setor público e privado, bem como no ambiente familiar.

Paralelamente, a sociedade portuguesa, aos seus vários níveis, deveria ser instigada a preparar-se para uma pandemia que poderá afetar dezenas de milhares de portugueses.

Vida Privada

Ao nível da vida privada, as famílias devem organizar a gestão doméstica na eventualidade de filhos, pais ou avós adoecerem, planeando a assistência em virtude de cada agregado familiar. Importa planear e educar para o abastecimento de recursos de forma responsável (em particular medicamentos para tratamento sintomático do COVID-19, medicações destinadas a tratamento de doenças crónicas, bens alimentares não perecíveis e outros produtos essenciais) de forma a precaver eventuais falhas temporárias de aprovisionamento.

Vida Social

De um ponto de vista social deve ser considerado o adiamento, redução ou cancelamento de eventos de maior aglomeração humana (como concertos, eventos desportivos, conferências e feiras profissionais, agregações de foro religioso, etc.), à semelhança do plano preventivo posto em prática por várias nações. Desta forma será reduzido o risco de mega focos de contágio do COVID-19 como os observados na Coreia do Sul e Irão.

Empresas

Em simultâneo, o tecido empresarial deve preparar planos de contingência para minorar o impacto económico da epidemia, respeitando a saúde das pessoas e premiando comportamentos preventivos como o absentismo em caso de manifestação de sintomas (tantas vezes mal visto no contexto laboral). Outro aspecto importante seria sensibilizar lideranças, na eventual necessidade de substituição de elementos doentes, para o treino cruzado de competências para garantir a manutenção de um funcionamento relativamente normal.

Governação

No que diz respeito à governação, é importante entender que os nossos líderes são humanos e correm os mesmos riscos que nós. Face ao seu papel fundamental na gestão da crise, as suas agendas devem ser repensadas e limitadas. Na área da Saúde em particular, os Centros de Saúde e Hospitais, focos habituais de contágio num contexto pandémico, devem ser preparados com planos de contingência consistentes ao longo do território nacional mas adaptados à realidade de cada região. Importa treinar os recursos humanos nas suas várias funções, aumentar stocks, libertar camas (nomeadamente através do adiamento de cirurgias eletivas) e sobretudo reduzir o acesso a pessoal não essencial (alunos dos cursos de Saúde, voluntários e visitantes).

Comunicação Social

Por último, um apelo particular à comunicação social: privilegiar uma comunicação proativa dos factos e cenários (por oposição à informação reativa de casos-limite mais dramáticos) e ponderar o levantamento de paywalls de artigos de interesse público. No caso particular da televisão, evitar que posturas de proximidade (como apertos de mão e abraços) sejam televisionados, evitando transmitir mensagens contraditórias à população sobre a importância do distanciamento social.

Passo 5 – Na preparação de Portugal, que aprendemos de outros países?

A evolução do discurso da Diretora da DGS demonstra aprendizagem com os países-exemplo na resposta ao novo coronavírus. Deve o Governo, confiando na DGS, promover a mesma leitura junto da população.

Atualmente, o exemplo mais positivo a nível mundial é Singapura, em que o primeiro-ministro comunicou diretamente à sua população todos os dilemas e processos acima descritos. A DGS local embarcou numa estratégia de vigilância e contenção epidemiológica sofisticada em colaboração estreita com a população local, enquanto o ministério da saúde apresenta de forma transparente a informação quanto a todos os casos testados, em tratamento e recuperados. A curva de casos diagnosticada em Singapura aplanou desde que estas medidas foram iniciadas. O exemplo contrário é o Irão, em que a confiança de que estavam preparados para o COVID-19 e a consequente negação do crescente problema pelas mais altas instâncias resultou numa epidemia transversal de larga escala, sem controlo ou fim à vista, falando-se já de atrocidades desumanas como medidas de contenção do vírus, numa demonstração de desespero e impotência.

Ao acima descrito pode chamar-se comunicação em tempo de crise e deveria ser um ponto fundamental na estratégia nacional de acompanhamento do COVID-19. O choque emocional inicial com esta visão é difícil, mas julgamo-lo inevitável e acima de tudo inadiável. O desafio para os decisores e a sociedade é: com quem é que queremos que o Portugal se pareça, com Singapura ou Irão? À medida que nos deparamos com os primeiros casos, o momento de escolher é agora.

Edição: Diogo Matias, gestor

Castelo Branco, 2 de Março de 2020