Na sequência do meu artigo anterior, sobre mais uma presidência portuguesa, e para lá das grandes questões em redor da União Política Europeia, vale a pena, nesta altura, alinhar um caderno de encargos sobre algumas questões que podem pôr em causa o “normal” funcionamento das instituições europeias, tal como as conhecemos hoje. Vejamos algumas dessas questões pendentes para 2021:

  • No plano mais geral, como assegurar uma transição justa e não assimétrica, em resultado da aplicação da lei do clima (os efeitos da descarbonização), do plano de ação digital (os efeitos sobre o mercado único), da nova condicionalidade macroeconómica (a revisão do Pacto de Estabilidade e Tratado Orçamental), a reorganização da política industrial e das ajudas de Estado (a revisão de algumas cadeias de valor importantes);
  • O efeito Brexit pode aumentar o número de “países relutantes”; de facto, o RU era o rosto de uma certa corrente de pensamento político liberal acerca da Europa, logo, a sua saída aumentará o risco de exposição de alguns países mais pequenos que se ocultavam e agiam na sombra do RU (por exemplo, alguns países nórdicos); irá a sua relutância também aumentar?
  • O efeito Brexit, ainda, a propósito do chamado level playing field ou equivalência nas condições de concorrência (e nos mecanismos de arbitragem de conflitos) nas relações entre a União Europeia e o Reino Unido, que poderá arrastar-se por muito tempo e ser uma fonte permanente de contencioso nas relações bilaterais; de facto, as novas condições de partida poderão desencadear movimentações oportunísticas naquelas áreas que irão necessitar de nova regulamentação, harmonização e regulação, e esta circunstância pode gerar conflitos litigiosos entre as partes;
  • O problema da reindustrialização e do confronto eventual entre “campeões europeus e campeões nacionais”; uma vez que a União Europeia quer promover mais fusões e concentrações industriais e bancárias com o objetivo maior de criar campeões europeus, podemos estar na iminência de assistir a uma colisão entre os interesses nacionais e os interesses europeus, a propósito, por exemplo, da concessão de ajudas de Estado;
  • O problema da política monetária do BCE, em particular a sua declarada proatividade no que diz respeito à compra de ativos financeiros públicos e privados; até que ponto esta “liquidificação” do mercado monetário irá inverter e subverter as expetativas dos agentes económicos?
  • A transição digital e o plano de ação digital irão rapidamente confrontar-se com as redes do 5G, mas, também, com o gigantismo tecnológico das companhias americanas que subvertem as regras da concorrência e do mercado único; são questões geopolíticas da maior relevância que estão longe de estar reguladas e que suscitarão, ainda, muitos equívocos e controvérsia;
  • As questões dos novos recursos próprios, do voto por unanimidade em matéria fiscal, os problemas de soberania e extra-territorialidade em matéria de evasão e fraude fiscais, a corrupção e a proteção dos interesses financeiros da União continuarão a estar na agenda política europeia e a suscitar muita controvérsia;
  • O problema da nova condicionalidade macroeconómica europeia pós-Covid é um assunto da maior importância para o futuro da União Europeia; se pensarmos que foi necessário suspender o Pacto de Estabilidade e o Tratado Orçamental para lidar com os efeitos da crise pandémica, se pensarmos nos défices orçamentais e na dívida pública acumulados, temos aqui uma bomba relógio pronta a explodir em qualquer momento;
  • Em tudo o que dissemos anteriormente há consequências e impactos sociais muito sérios, desde logo, sobre a natureza e estrutura do mercado de trabalho e emprego em resultado das transições climática, energética e digital; essa é a razão pela qual a presidência portuguesa realizará uma cimeira social na cidade do Porto, no mês de maio, para debater, justamente, o pilar social e o modelo social europeus, mas, também, a questão paralela do pacto das migrações para a década que se avizinha, pois serão, doravante, problemas muito sérios e recorrentes da vida europeia;
  • O problema da autonomia estratégica da Europa em face dos novos realinhamentos comerciais e concorrenciais; refiro-me às relações transatlânticas com os EUA pós-Trump e o Reino Unido, ao acordo de proteção de investimentos com a China após o grande acordo de comércio no Sudeste asiático e, ainda, à cimeira com a Índia durante a presidência portuguesa; por outro lado, estes novos realinhamentos alimentarão muitas discussões sobre o neoprotecionismo europeu e uma certa europeização das cadeias de valor globais;
  • A União Europeia para a Saúde; a pandemia da Covid-19 e o plano de vacinação, as consequências das alterações climáticas e as próximas pandemias irão reclamar passos importantes no que diz respeito a uma nova Agenda Europeia para a Saúde;
  • Em todos os casos referidos, o problema dos choques assimétricos entre os Estados-membros da União Europeia, por virtude das diversas transições em curso, assumirá uma importância política decisiva; é um problema muito sério, que precisa de ser devidamente acautelado no plano europeu, pois podem criar-se divisões políticas graves que tornem inevitáveis novas saídas e, em especial, a coabitação entre democracias liberais e democracias iliberais no espaço da União pode tornar-se irrespirável.

Notas Finais

O ano de 2021 será um ano caracterizado por um elevado grau de contingência, a todos os níveis. Eis mais alguns pretextos para essa incerteza:

  • O plano de contingência para evitar a paralisia total dos transportes e assegurar a “conectividade básica” na passagem do Canal da Mancha;
  • O problema político do voto por unanimidade em muitas áreas crescerá, à medida que os efeitos externos e transversais das grandes transições afetarem a eficácia e eficiência das medidas de política europeias;
  • O problema da condicionalidade política democrática, a propósito do veto da Hungria e da Polónia, será objeto de reavaliação posterior (artigo 7º do TUE) e não deixará de suscitar nova controvérsia sobre a relevância política da Carta europeia dos Direitos Fundamentais;
  • Os próximos ciclos político-eleitorais em 2021 e, em particular, na Alemanha e Países Baixos, podem radicalizar os assuntos europeus e aumentar o risco de balcanização da política europeia; é imperioso fazer baixar a ansiedade, a falta de confiança e até o medo, para evitar a subida do radicalismo e populismo;
  • Finalmente, voltaremos a ouvir falar da Conferência sobre o Futuro da Europa em 2022 e iremos reabrir longos debates sobre federalismo europeu e soberania nacional.

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