No passado, no presente ou no futuro crises coletivas são sinónimos de crises de conhecimento, mesmo que este fosse assumindo diferentes variantes, das mágico-religiosas das sociedades ancestrais às científicas das sociedades contemporâneas escolarizadas. Considerando que no âmago da ideia de conhecimento passou a estar a universidade, reside no poder hegemónico desta de regulação, renovação e validação de conhecimentos a génese de crises sociais, económicas, políticas, identitárias, culturais ou de outra natureza.

É por isso estranho que a última década não se tenha transformado na década do autoquestionamento das responsabilidades dos saberes académicos num dos mais graves ciclos de crise da contemporaneidade. As manifestações do envolvimento das universidades detetam-se por todo o lado. Desde o sentido das governações, passando pela degradação dos sistemas de ensino, pelo descalabro financeiro, por uma gestão da demografia a reboque do pré-anunciado há décadas, pela má qualidade da legislação em prol de ‘ativismos’, por ordenamentos urbanos geradores de guetos, pela desregulação de instituições entre um sem número de manifestações.

Ainda que parte excecional do que as universidades produzem seja de qualidade ou mesmo de elevadíssima qualidade, outra parte é diretamente responsável por disfuncionalidades significativas ou mesmo graves que passaram a afetar a vida coletiva. Embora não se devam excluir as ciências ditas exatas, destaco as ciências ditas sociais e humanas.

Se a partir do seu interior as universidades não forem capazes de racionalizar as fronteiras entre os seus contributos favoráveis e o que produzem de tóxico, a sua função social dificilmente se distinguirá da vulgaridade dos nada dispendiosos saberes de rua. Tais fronteiras instituem-se através de princípios orientadores ou critérios de produção de conhecimentos qualificados que sejam em número limitado, explícitos e partilhados de modo efetivo por um mundo académico que hoje se assemelha a um ancilosado sistema feudal.

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Tais princípios devem não menos ser claros para a opinião pública de modo a que esta compreenda, com simplicidade, a natureza distinta das relações das universidades com o saber. É o que significa refazer o contrato social entre a sociedade e as suas instituições universitárias.

O ponto de partida pode ser um conjunto de desafios em relação aos quais não é necessário ser especialista para se compreender o que está em jogo.

Num primeiro patamar situa-se a importância de repensar a orgânica institucional, a própria ideia de universidade. António M. Feijó e Miguel Tamen publicaram «A universidade como deve ser» (2017), um dos preciosos contributos da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Passaram meses após a sua publicação sem que o livro tivesse gerado merecidos debates no interior das universidades e nos organismos que tutelam o ensino superior. Persiste-se na mercearia de sempre, na reprodução de um sem número de atividades, cursos, iniciativas, concursos, disputas para a distribuição de avultadas verbas, mas sem se repensar o sentido de missão das universidades num ciclo de crise em que pouco ou nada voltará a ser como antes. De resto, António M. Feijó e Miguel Tamen não ‘vendem’receitas, antes limitam-se a propor pontos de partida para debates estruturados.

Num segundo patamar situa-se de modo explícito o domínio epistemológico: como e por que razões se produzem conhecimentos; qual o seu valor ou significados; em que se sustentam a sua validade e limites. Neste domínio é bem mais permanente uma já tardia procura de respostas sólidas, consistentes, partilhadas. O facto é que o tempo passa sem que as universidades travem doenças epidémicas que elas mesmas propagam.

Não é de hoje que se sabe que a mistura tóxica não é mais entre a razão e fé, isto é, entre a universidade e a igreja, posto que a questão foi resolvida pelas sociedades ocidentais desde o século XVIII. A toxicidade que corrói os conhecimentos qualificados resulta hoje da mistura entre a razão e o poder, fruto do compadrio entre, por um lado, as universidades e os seus agentes e, por outro lado, organizações e poderes políticos (governos, partidos políticos, movimentos cívicos, ativismos). Este núcleo é demasiado tóxico para continuar como está.

Há muito que também se propala a importância da interdisciplinaridade (cruzar ou aproximar saberes de áreas académicas distintas para um propósito comum). Porém, essa conquista cristalizou antes de gerar partilhas interdisciplinares de raiz de teorias, métodos e técnicas de investigação. Mistura-se aleatoriamente mais ou menos tudo, todavia cada qual resiste no ‘quintal’ identitário da sua disciplina originária de sempre, em grande parte para salvaguardar a respetiva coutada nos meandros universitários.

Faz parte da retórica sublinhar a complexidade da condição humana ou a heterogeneidade das sociedades, mas sem que se detetem fórmulas racionalizadas que permitam que tais atributos-chave assumam expressões teóricas ou metodológicas que permitam elaborar conhecimentos credíveis. Na prática, essa retórica acaba por servir para legitimar tudo e mais alguma coisa e nesse ‘tudo’ inclui-se, necessariamente, a má moeda que foi expulsando a boa moeda dos circuitos universitários.

É muitíssimo claro hoje que os meios académicos instigam a sobreposição entre atitudes analíticas e atitudes referenciadas aos mais variados moralismos, em particular os politicamente comprometidos. Tal sobreposição minimiza a racionalidade do trabalho académico, uma vez que quanto mais se julga, quanto mais saliente é a postura moralista, tanto menor a carga racional, analítica ou interpretativa daquilo que se propõe, como sublinhou Max Weber.

Também as fronteiras entre os discursos de senso comum e os discursos académicos são difusas. Conhecer academicamente não significa promover a rotura entre uns e outros, antes ter em conta que os primeiros constituem suportes indispensáveis dos últimos. Porém, tal implica que eles nunca se confundam, tal como a matéria-prima – tronco ou madeira – não se confunde com o produto acabado quando se fabricam mesas e cadeiras.

O mesmo ainda com outras fronteiras, neste caso entre a empatia (saber estar no lugar do outro) e a identificação (querer ser o outro). Sem empatia não é viável estudar as sociedades e os seus fenómenos, porém transitar da empatia para a identificação é transformar o académico num ativista, via expedita de corroer os fundamentos mais elementares da ideia de universidade. O assunto é hoje gerido com profunda irresponsabilidade, o que atenta contra a liberdade racional e argumentativa nas nossas ‘universidades de causas’.

Por outro lado, os ambientes académicos oscilam entre tendências sistémicas e uma espécie de politeísmo pré-racional. No primeiro caso, as teorias ou os pensadores explicam-se entre si, como se a vida vivida fosse um mero adorno, a enésima vida da tradição livresca agora também em formato eletrónico. No segundo caso, a força do empirismo torce os pressupostos teóricos além de limites toleráveis, como se o saber académico pudesse ser uma espécie de aventura na rua para ‘estudar umas coisas giras sem submissão às elites opressoras’ou o que quer que isso signifique. Num e noutro caso, é como se se ignorasse que o conhecimento com validade científica será sempre um compromisso tricotómico entre teoria (a dimensão abstrata que, por isso mesmo, preserva a unidade do género humano), empiria (o extremo oposto da realidade singular, única, vivida e que confere dimensão de originalidade) e metodologia (o ponto de ligação entre os extremos abstrato e concreto no conhecimento das sociedades e dos seus fenómenos).

Sublinho também a validade dos estudos de caso viver em rédea solta, quando o seu valor deve ser proporcional à capacidade de cada estudo sair de si mesmo, das suas singularidades, para evidenciar contraprovas. Por hipótese, quem mergulhe a fundo no estudo de uma dada minoria (racial, religiosa, sexual, identitária, política, regional, partidária) ou no estudo de uma individualidade (pensador, político, religioso, entre outros) deve, precisamente por isso, observar o princípio de não confundir o seu objeto de estudo com o sentido global da vida coletiva. Trata-se de um dos atropelos mais comuns ao conhecimento analítico. Não se podem, por hipótese, fazer inferências pretensamente científicas, na atualidade, sobre o racismo a partir do estudo de caso de uma minoria negra numa sociedade maioritariamente branca sem que se possua a contraprova de como as minorias são inseridas numa sociedade maioritariamente negra. Mero exemplo.

Sem encontrar respostas para esses e outros desafios, e sem que o façam por si mesmas, as universidades continuarão a arrastar a erosão da sua legitimidade para poderem protestar, por exemplo, contra os estrangulamentos financeiros, uma vez que se revelam incapazes face ao que lhes compete: o dever de ultrapassarem os estrangulamentos à construção de conhecimentos que elas mesmas validam. Pior. Os meios académicos nem sequer dão mostras de se esforçarem convincentemente nesse sentido, procurando escapar às suas mais do que evidentes responsabilidades na crise. É tempo de os académicos entenderem que as sociedades não merecem tamanha altivez, tamanho desprezo, tamanha incúria.

Jamais hesitarei na reverência que uma sociedade decente deve evidenciar face a domínios como filosofia, história, sociologia, antropologia, psicologia, psicologia social, psicanálise, economia, literaturas, artes, entre outras. Porém, esse universo tem de se reinventar a si mesmo e se necessário à custa de muitas e muitas quarentenas académicas, muitas e muitas quarentenas financeiras.