Nunca como hoje, o antigo Secretário de Estado norte americano Henry Kissinger teve tanta razão quando, nos anos 70 do século passado perguntava a quem deveria telefonar quando queria falar com a União Europeia.

Claro que nunca obteve resposta esta pergunta. E se a fizesse hoje, mesmo vários tratados de maior integração europeia depois, provavelmente a resposta mais pragmática seria, pelo sim, pelo não, telefone para Berlim, pois para Bruxelas é capaz de não valer a pena.

E não é de espantar. A União Europeia é uma associação voluntária de Estados-Nação. Não é uma associação de Estados federados da mesma nação. A política de coesão entre os Estados, que implica importantes transferências de dinheiro dos mais ricos para os menos ricos (não há propriamente países pobres na UE, se comparados à escala mundial), essa política de coesão, dizíamos, tem como contrapartida alguma perda, também voluntária, de soberania dos vários Estados. O melhor de dois mundos, só mesmo nos contos de fadas.

A Europa, por mais tratados que os seus governos assinem, não deixa de ser um espaço onde coabitam mais de 50 estados nação, com muito más memórias uns dos outros, como relembrava George Friedemann.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas uma vez que existe essa perda de soberania dos Estados nação associados para as estruturas centrais da UE, vulgo, para Bruxelas, ou até para os Estados que são contribuintes líquidos, pelo menos que esse poder delegado fosse realmente usado, não apenas para alertar alguns países que gastam muito dinheiro em “vinho e em mulheres”.  Mas infelizmente parece não o ser o caso.  E o exemplo mais triste é o que se tem passado com a execução dos contratos entre a UE e as empresas farmacêuticas no fornecimento de vacinas. Afinal a UE tem mesmo poder ou este encontra-se de facto noutras instâncias e é dominado por outros interesses?

Joseph Stiglitz, antigo conselheiro de Bill Clinton e Prémio Nobel da Economia, acreditou durante muito tempo que a supressão dos entraves ao comércio livre e uma maior integração das economias nacionais seria um factor benéfico e levaria ao enriquecimento da população global.

Quando Clinton acabou o mandato, Stiglitz transitou para o Banco Mundial e não só mudou de gabinete, como mudou de planeta. Com o que encontrou de desigualdade, que só conheceria como conselheiro, mas não como executor de medidas, passou a entender e confessou, que “o modo como a globalização tem sido orientada pode ter um efeito devastador na população pobre e nos países em desenvolvimento”.

Se algo é hoje evidente e só faltava a pandemia da Covid para o confirmar, é o declínio da importância das instituições democráticas (governos e parlamentos) face aos grandes conglomerados de empresas multinacionais, devidamente sustentadas pelo sistema financeiro.

Falando em farmacêuticas, ainda há poucos anos a multinacional alemã Bayer adquiriu a multinacional americana Monsanto, ficando o mundo perante uma fusão que colocou nas mãos de um único poder 50% (leram bem, 50%) da produção mundial de sementes. Se não sabiam de mais esta, ficam a saber.

O tema era naturalmente controverso, os protestos foram muitos, o regulador europeu podia ter vetado a aquisição, mas que o negócio, envolvendo verbas semelhantes ao PIB de muitos países da UE, avançou mesmo, foi um facto. Operação financiada por quem? Pelos bancos. Financiados estes por quem? Pelo dinheiro dos resgates dos seus prejuízos com os impostos dos cidadãos europeus. Os governos tão pró-concorrência da UE e dos EUA ficaram calados e, como se diz, a ver “passar o comboio”.

Neste clima não é de espantar o que agora aconteceu com a Covid: a UE pagou adiantado o custo da investigação da vacina e agora, que ela já se produz, ainda não tem vacinas. Se não é um mistério, anda lá perto.

Perante isto, parece haver três perspetivas. A, digamos, “romântica”, que é a daqueles que defendem a “nacionalização das patentes” resultantes da investigação, pois esta foi subsidiada pelos Estados. Pode ser feito? Pode, claro. Mas o resultado mais certo é que, perante este precedente, na próxima pandemia serão os românticos a inventar uma vacina no prazo de um ano, pois as farmacêuticas não mexerão uma palha para isso.

A segunda opção parece ser a que a UE tem tomado. Assinou contratos que ninguém conhece, que não têm escrutínio público e por isso não se pode saber se estão redigidos de modo a defender contratualmente os direitos dos Estados. A reacção da UE, perto da apatia e conformismo, quase a mendigar vacinas, não deixa ninguém sossegado.

Portugal tem agora a presidência da UE e nunca ouvimos uma única explicação do primeiro ministro, que neste momento é uma espécie de “primeiro-ministro da UE”, para escassez de vacinas. Apenas confirma que não as temos, o que é uma verdade de la palice. Convinha era que explicasse porquê. É simplesmente ridículo, para não ser mais desagradável, que os países da UE tenham taxas de vacinação de 3%, quando o Reino Unido ou a os EUA estão nos 20%. A zona económica mais rica do mundo parece ser afinal uma espécie de reino de palermas.

A terceira opção — e é aqui que se questiona o declínio das instituições públicas nacionais e comunitárias face às empresas multinacionais farmacêuticas e ao sistema financeiro em que se apoiam e que são os seus acionistas — é optar por aquilo que o capitalismo bem conhece: fazê-los pagar o incumprimento dos contratos, tudo dentro das regras do direito, sem nacionalizações, nem expropriações ou cancelamentos de patentes (a não ser que isso não seja possível, porque os contratos tenham sido redigidos por um bando de tontos).

Se as acções judiciais indemnizatórias que a UE pode mover contra as farmacêuticas incumpridoras for de tal modo avassalador pela dimensão que — só pelo registo nas contas das empresas de tal contingência — o valor das acções das farmacêuticas sofram um colapso, as vacinas começam mesmo a aparecer. Como se diria em modo popular, vão-lhes ao bolso e a sério, que é onde mais lhes dói.

As pessoas têm uma vida, os gatos têm sete, o sistema financeiro e as multinacionais têm oito. Vamos pelo menos tirar-lhes uma.