A 29 de Março de 2020, estava ainda a burguesia urbana fechada em casa convencida de que estava a salvar o mundo enquanto via séries na televisão, perguntei cinicamente no Facebook se quando tudo aquilo acabasse íamos ter direito a dez anos de paródia semelhante à dos anos de 1920, ou se entraríamos directamente num equivalente à década de 1930. Depois de dois anos de alegada «guerra ao vírus», chega-nos, infelizmente, uma guerra a sério. Muita gente há dois anos garantia que íamos sair dos confinamentos generalizados muito melhores pessoas, naquele enjoativo e mentiroso «vai ficar tudo bem». Nota-se.

Esse mantra embelezado com arco-íris nas janelas, além de esteticamente irritante, foi o retrato perfeito da infantilização a que chegámos nas sociedades ocidentais, as mesmas que passaram as últimas três décadas a formar-se como agremiações de gente que ora parece viver demasiado aborrecida com o seu conforto e bem-estar generalizados, sedenta de um grande momento colectivo que lhe traga algum sentido, ora parece bêbeda de unicórnios num reino de fantasia eterno, a sonhar com o planeta zero, paz incontestada e passeios pelas pradarias.

Não, não ia ficar tudo bem e isso era demasiado visível desde o primeiro dia. Foram dois anos com a maior parte do mundo suspenso, cadeias de produção interrompidas, mais gente a cair na pobreza, as democracias mais fragilizadas depois de meses e meses de violações graves de liberdades básicas, de medidas políticas a que se resolveu chamar ciência, de quebras de confiança nas relações sociais, e o anúncio de um problema ainda maior: a inflação que ninguém sabe bem até onde pode chegar, agora agravada por um conflito militar. Gente fraca cria tempos difíceis, lá se dizia.

Sucede que, ao contrário do que parece ser um sentimento generalizado, esta gente fraca não está necessariamente nas lideranças ocidentais. Está nas sociedades que as fazem eleger. Em nós, portanto. E, como dizia Paulo Portas no domingo, na TVI, é certo que Putin avança sempre que vê fraqueza do outro lado. O que me espanta, pois, não é a invasão da Ucrânia, mas que o ditador russo não esteja já instalado no cabo da Roca há um par ou dois de anos.

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O que temos diante dos olhos é simples: uma invasão ilegítima, um claro agressor e um evidente agredido. E uma razão para um momento de escape colectivo, de demonstração pública de bondades e de sentimentalização colectiva como não se via entre nós desde a comoção tardia com os massacres cometidos sobre o povo timorense. Não me interpretem mal: toda a manifestação de solidariedade para com o povo ucraniano é totalmente merecida. O sofrimento dos ucranianos é bem real e é absolutamente crucial que se cumpram os desígnios lançados nestes dias: ajudar, de todas as formas possíveis, os ucranianos que cheguem a Portugal, sancionar a Rússia e apoiar militarmente a Ucrânia.

O que temo, melhor me explicando, é que esta onda de indignação colectiva se desvaneça quando desaparecer o mediatismo. Ou, mais provável, quando os europeus começarem a receber a conta das sanções económicas impostas à Rússia. Como afirmou Garry Kasparov há dias no Twitter, as sanções têm um custo grande, mas são necessárias. Eu estou disposto a suportar esse custo, na parte que me toca, em prol da independência da Ucrânia e da liberdade dos ucranianos. Mas é fundamental que as pessoas saibam que esse custo existe, e não estou seguro de que haja essa consciência.

Certo, certo, é que o que ainda nos protege de males maiores é a existência da NATO e o facto de as democracias europeias terem a capacidade de ainda surpreender positivamente. É por isso muito interessante olharmos ligeiramente para trás e vermos como tantos asseguravam que a aliança atlântica era um organismo obsoleto, que devia ser extinto, que já não se revelava necessário. De um lado, as forças anti-liberais, de esquerda e de direita, que por motivos diferentes se deixaram encantar pelo músculo ou pelos rublos da Rússia putinista contra o maléfico mundo ocidental e americanizado. De outro lado, um certo espírito da época que, como acontece às crianças, se deixou encantar por uma espécie de pacifismo inevitável, segurança e paz eternas e sem preço, um reino colorido que nos fazia ignorar todas as evidências que, pelo menos desde a Crimeia, se foram tornando sérias. Dos comunistas portugueses ao presidente francês, era o que tínhamos.

Entre nós, por exemplo, continua a ser tema de discussão o facto de o PCP não se ter tornado um partido democrático só porque combateu a ditadura salazarista. Um dado não conduz necessariamente a outro, nem o facto de os comunistas se terem conformado com o jogo democrático os torna adeptos da democracia liberal de tipo ocidental. Em 2022, isto ainda parece uma novidade. Acontece o mesmo com o Bloco de Esquerda que, sendo mais sonso que o PCP, largou agora a adversativa («o senhor Putin não presta, mas…») por razões que se prendem mais com a gestão política da sua sobrevivência do que com as suas reais crenças. Ainda há pouco tempo bloquistas se agitavam nas televisões contra o imperialismo americano, contra o ataque da NATO à «esfera de influência russa» (traduzo: países soberanos, livres e independentes que fazem fronteira com a Rússia) para justificar sabe-se lá o quê. E depois esta chamada nova direita que anda de braço dado com Le Pen e Salvini (sim, estou a falar do Chega), que resolveu agora revelar também a sua sonsice, mostrando solidariedade para com a Ucrânia e criticando o putinismo porque percebeu que não tinha espaço mediático para dizer o contrário (um vice-presidente do Chega ainda esboçou uma posição mais honesta, mas foi parado a tempo da hipocrisia).

Engane-se com todos eles quem quiser. Neste conflito há três posições possíveis: as dos que estão do lado da democracia liberal, das liberdades, da independência e da soberania; as dos que estão contra tudo isso; e a dos sonsos. A realidade é sempre complexa, não estamos (mesmo que às vezes pareça) perante um filme de animação de índios e cowboys. Mas as escolhas quanto a princípios básicos de civilização e organização das nossas sociedades ainda são simples. Para incerto já basta o futuro. Era sobre ele, o futuro, que gostava de ter escrito hoje. Imagine-se por que razão, não me é possível fazê-lo. Apertemos os cintos.