“Deviam estar mais de cem pessoas no salão. Muitas eram portuguesas e duvido que alguma pensasse no mesmo que eu. Aquele mundo estava a acabar para eles, em África; penso que ninguém ali poria isso em causa não obstante todos os discursos e todo aquele cerimonial; mas estavam todos à vontade, a usufruir do momento, enchendo o velho salão com conversas e risos como quem não se importa, como quem sabe viver com a história. Nunca admirei tanto os portugueses como naquela altura. Quem me dera conseguir viver assim à vontade com o meu passado; mas acontece que partíamos de perspectivas diferentes.”
V. S. Naipaul, Uma vida pela metade, 4.ª edição, D. Quixote, p. 174.

Presos por um fio no topo do abismo. Assim estamos em 2021. O fio é a ajuda europeia por via do BCE e dos fundos de Bruxelas; o abismo, já o espreitámos em 2011. ‘Lá está o catastrofista’, já ouço o murmurar de um ou outro leitor. Mas, não, não é verdade que o seja pois há dez anos vimos mesmo o abismo. Na época a dívida subiu para os 183 mil milhões de euros e forçou o Estado a pedir ajuda. Já em Julho passado caiu para ‘apenas’ 274 mil milhões. O optimismo ou pessimismo não passa de uma perspectiva. Entretanto, o governo quer negociar o próximo orçamento com a extrema-esquerda. Esta desconfia dos mercados (que não são mais que as pessoas a decidir sobre as suas vidas) e deposita uma fé absoluta no poder político (que não são mais que eles próprios a decidirem sobre as vidas das pessoas). Será que sou mesmo assim tão catastrofista?

Se ainda duvida de mim permita-me que concretize um pouco mais o meu ponto de vista. Perante o endividamento crescente do Estado e embalado com os novos recursos da UE, António Costa promete mais creches (é a nova mantra depois da paixão educativa de Guterres), o alargamento dos apoios às famílias e até pondera uma possível redução dos impostos. Um ingénuo que o escute julga que o aumento da despesa se fará acompanhar de uma política de liberalização da economia de forma a aumentar a receita fiscal e, assim, pagar a subida da despesa pública. Nada disso. O governo acredita (a tal fé inabalável) que a economia vai crescer com o apoio público. O governo e seus acólitos dirão que não é mentira se tivermos como linha de partida o ano de 2020. Todos os espertos têm uma resposta pronta. Faz parte da arte. Mas vamos por partes.

A primeira é o apoio público como pilar económico. Atente-se que já não é a liberdade, mas a disponibilização dos fundos europeus pelo poder político. É nesse sentido que António Costa promete apoios para uma habitação digna para os jovens; apoios às empresas que dêem um trabalho à altura das exigências da ‘geração mais bem preparada de sempre;’ a utilização da contratação pública como forma de castigar as empresas que não dêem aos seus empregados o que Estado (que se pode endividar sem risco de falir) atribui aos seus funcionários; o alargamento dos apoios para que regressem a Portugal os que, fazendo parte da ‘geração mais bem preparada de sempre’, não acreditaram na forma como o país é governado; a criação de creches, muitas creches (a tal nova mantra); a modernização das escolas profissionais; o programa ‘impulso jovem’ e, acima de tudo, um aplauso “ao extraordinário esforço dos professores, escolas e famílias fizeram para se conseguirem adaptar e não deixarem os alunos perder a aprendizagem” mesmo que a maioria das escolas públicas não se tenham conseguido adaptar e tenham deixado os alunos perder a aprendizagem.

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É bom ser capaz de encher um salão velho com conversas e risos como quem não se importa, como quem sabe viver com a história que mais não é que o desastre iminente.

Uma leitura pelo programa eleitoral do PS para Lisboa é mais uma oportunidade para vermos a fé que os socialistas depositam na economia pública, desta vez paga com fundos europeus. Não se vislumbram custos; só ofertas. A habitação não se resolve com um mercado livre que leve à construção de mais casas, mas através da renda acessível e uma habitação cooperativa sem fins lucrativos; a mobilidade é conseguida com duas linhas de metro ligeiro e mais 350 autocarros, ou seja, com dinheiro, essa coisa horrível que os privados (os cidadãos) ganham com o seu trabalho e que o poder político lhes extrai para fazer boa figura com obras e projectos estéreis. O comércio é incentivado, não através da redução das taxas, dos impostos e da burocracia, mas com apoios específicos a certos ramos e em áreas determinadas da cidade, numa tentativa de se direccionar politicamente as actividades e lojas que devem ou não singrar. A política pública deixou de ser um garante da liberdade; passou a ser um meio de decidir o que se faz e o que não se deve fazer. Até o alojamento local, que foi o motor do dinamismo na cidade nos últimos anos, é atacado. Medina diz que não vai retirar licenças, apenas não atribuir novas. Mas também não precisa. A pandemia já fez esse trabalho. O que Medina pretende fazer é impedir que os retiraram as casas do AL durante a pandemia não voltem a recolocá-las. Não voltem à vida que construiram antes. Esta é aquela parte em que o apoio público se torna num pilar político.

E é assim que dez anos após o pedido de resgate internacional o Estado continua cativo da crença do dinheiro fácil, do apoio público conseguido com o dinheiro de cidadãos privados, sejam estes portugueses ou de qualquer outra nacionalidade europeia. É assim que dez anos após o pedido de resgate internacional a economia continue estagnada, não haja qualquer perspectiva de futuro cá dentro e os miúdos de hoje fatalmente sonhem com uma vida lá fora.

Portugal pode ser hoje um salão velho cheio de conversas e risos, pejado de gente que não se importa e que, não obstante o cerimonial e os discursos pomposos e optimistas, sabe que este modo de vida não tem futuro. Até pode ser que o país saiba mesmo viver com a história. Quem me dera conseguir viver assim à vontade com o meu passado; mas acontece que partimos de perspectivas diferentes.