Há um par de semanas deu-se um episódio na Assembleia Municipal de Lisboa que serve na perfeição para estudar a incultura política portuguesa. Um deputado do Chega produziu declarações que chocaram praticamente todos os outros, deputados e vereadores de todas as cores, que as tomaram por racistas ou xenófobas. Eu própria as considerei assim, incluo-me nessa interpretação. E como, para mim, o racismo é repugnante, classifiquei como repugnantes as declarações desse deputado.

Faço questão de informar que já ouvi declarações repugnantes vindas de outras paragens, designadamente das bancadas da esquerda, da extrema-esquerda e do PAN; ouvi aquelas almas defenderem posições que ofendiam – e ofendem – gravemente a dignidade dos indivíduos. E a própria dignidade da Assembleia. Estas declarações do Chega não são mais graves do que muitas outras, ao longo de anos e anos. São apenas mais relevantes pelas reacções que provocaram. Isso ajuda-me a explicar o meu ponto.

Não vou reproduzir o conteúdo da intervenção do Chega porque essa não é a discussão que me interessa acender hoje. Basta-me estabelecer que os outros deputados as consideraram racistas e xenófobas, e eu própria também considerei. Na mesma linha, não é relevante decidir se interpretámos bem ou mal. Interessa-me examinar e criticar as diferentes reacções das bancadas perante uma intervenção considerada ofensiva.

Houve quem respondesse com violência verbal e uma certa brutalidade. E, já agora, também com grande acerto.

Houve quem pedisse a judicialização das declarações, com referências ao “crime de ódio” e ao Código Penal, sugerindo o envio e denúncia para aqui ou para ali. Um hábito analfabeto e um vício nacional. A defesa das ideias políticas tem de ser livre de criminalização, mas esta verdade simples parece não penetrar todas as cabeças. Por este motivo, os deputados à Assembleia da República estão protegidos pela imunidade parlamentar, e o mesmo princípio devia aplicar-se às Assembleias Municipais. Se não existir liberdade de expressão entre deputados eleitos, como se pode exigir que ela exista nos jornais? ou nas “redes”? ou seja onde for?

Por fim, houve quem apelasse ao corte da palavra a estes deputados. Ou seja, houve quem pedisse a proibição de certas ideias serem expressas na Assembleia, pelo silenciamento dos deputados se eles emitissem opiniões chocantes ou ofensivas. Isto não pode acontecer. Por várias razões, e dou duas.

Primeira razão. Um deputado eleito é um representante da cidade, ou uma parte da cidade. A voz dele é a voz dos cidadãos. Tem de ser inteiramente livre de os representar sem quaisquer restrições. Uma assembleia de deputados eleitos não pode ter um cardápio de ideias autorizadas, e outro de ideias proibidas; como não há cidadãos representáveis e cidadãos sem direitos democráticos.

Nem todas as ideias merecem respeito, mas o ponto é mesmo esse. É fácil tolerar a expressão de quem pensa igual a nós. “Todos devem ter a liberdade de expressar as minhas opiniões”, defendem implicitamente os próceres da esquerda bem-pensante. E a direita mais cobarde e estúpida está disposta a aceitar. Mas não, a democracia não é isso. É preciso reconhecer a liberdade de expressar ideias que não são respeitáveis, por mais chocantes que elas nos pareçam ou sejam. Só assim podem os cidadãos ser tratados como iguais. De resto, não passámos os últimos cinquenta anos a tolerar ideias – e políticas – comunistas? E não suportamos agora, dia sim, dia sim, as ideias animalistas do PAN? E as teorias demenciais da extrema-esquerda universitária sobre o nosso papel na história? Ou sobre o que faz de nós homens e mulheres?

Segunda razão. As ideias absurdas devem ser desmontadas pelos outros deputados. Essa é a obrigação de quem está numa assembleia a discutir e debater. Se proibirmos um deputado de expressar ideias chocantes, estamos a tirar aos outros deputados a oportunidade de se oporem a elas eficazmente. É a menorização de toda a Assembleia. É também a maneira certa de fazer as piores ideias crescer na rua, no meio da ignorância e da desordem.

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