Criou um grupo de whatsapp com mais de 200 pessoas para partilhar os altos e baixos da sua recidiva cancerígena. O processo inicial começou há 18 anos. Mas o whatsapp foi criado, desta vez, a 21 e Maio de 2021 (em plena pandemia para agravar o cenário). O grupo era unidirecional. Apenas o Vasco escrevia. Apenas o Vasco partilhava. Apenas o Vasco dava conta do seu estado de espírito. Apenas o Vasco contava as aventuras e desventuras da sua vida. O que fazia, desde o simples café que saboreava até às múltiplas idas ao IPO. O Vasco morreu Domingo passado. Um ano e dois meses a acompanhar a vida e a morte do Vasco por whatsapp.

Um ilustre desconhecido que não merece uma página de jornal, dirão uns. De facto, desconhecido das luzes da ribalta mas conhecido por muitos. Muitíssimos. Cativante, amigo, sério, de gargalhada fácil, afável, o Vasco merece, sim, a página de jornal. Mais que a maioria que conheço que tem direito a homenagem pública e a condecoração.

Deixo esta nota porquê? Não porque fosse mais ou menos amigo, mais ou menos próximo, mais ou menos isto ou aquilo. Mas pelo que o Vasco era. Pela referência e exemplo de vida que lhe conheci. Pelo poder de congregação, pela seriedade intelectual, pela alegria, pela resiliência, pela humanidade. Dezoito anos desde que encontrou o primeiro caroço no pescoço. Um ano e 2 meses a contar-nos como se corre, e vive, e como se morre. Sereno, em paz. Como se pode ficar aborrecido. Como se pode ficar contente com as mais pequenas coisas de vida. Pequenos nadas como sentar-se, apenas, num banco de jardim. Como ter esperança através de um parâmetro de uma análise que dá indícios de melhorar. Ou como faz questão de se despedir de todos. Como envolver todos numa valsa de vida que o levou até à morte. Amar é deixar partir – disse-se no seu funeral.

O grupo whatsapp começou, em 2021, desta forma, em plena pandemia: “Meus queridos familiares e amigos. Criei este grupo para vos dar notícias minhas.”. “Alguns de vós ainda não saberão mas esta semana e após um cansaço progressivo que vinha sentindo foi diagnosticada a recidiva da leucemia.” “Run again, como diria o meu herói Forrest Gump.” E o Vasco fazia esta ilação para, considerando-se um homem simples, correr e percorrer caminhos sem saber bem para onde ia. Mas sabia. Sabia que ao correr procurava viver. Sabia que ao correr, mesmo sem conhecer o destino, iria escrever e deixar uma história, a história de como viver a vida de forma simples, saboreando-a.

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A primeira imagem do whatsapp com que nos presenteou contava a boa notícia que era ter ficado num quarto de quatro doentes, no IPO, mas próximo da janela. Que privilégio. E desenhava um círculo à volta da janela que alguns visitaram para com ele falar. Gostava de ver as pessoas.

Tinha uma particular preocupação, correndo ou não bem as coisas (ele lá saberia) de sinalizar os dias em que se sentia bem. E escrevia “Alegria dos dias que correm. Sentir-me bem!”

Partilhava leituras feitas, restaurantes, locais de férias, tudo. Mesmo não os podendo visitar, não podendo aceder-lhes. Partilhava livros e textos. Partilhava momentos, pequenos nadas. Partilhava.

Emociono-me ao ler a mensagem que me chegou neste dia 1 de Julho. “Meus amigos e familiares. Esta mensagem está a ser ditada por mim (já não escrevia, portanto). Soube ontem que o meu falecimento está para breve. Não sei exatamente em que dia (nunca se sabe, aliás). Despedi-me hoje dos meus familiares e amigos mais próximos. Despeço-me agora de todos vós. A vida é um mistério. Sei que nos encontraremos no Céu. Até lá, um abraço a todos e cada um de vós. Esta será a minha última mensagem.”. O Vasco era um homem de profunda fé.

E dia 3 de Julho, depois de esperar que um dos seus grandes amigos voltasse do Brasil para o ver uma última vez, recebi a mensagem: “Queridos amigos, esta noite o nosso pai partiu para a sua estação final. Partiu serenamente…”. E a mensagem vinha da Leonor, uma das filhas.

E é isto. Se eu quisesse dizer muita coisa mais não caberia num artigo de jornal. Mas consigo resumir numa palavra o que foi acompanhar durante mais de um ano, para além dos encontros presenciais, a sua vida por whatsapp, e acompanhar literalmente até à morte. Ou aquilo que me encantava nele: a serenidade. Quem encontra a serenidade só pode ser alguém especial. Partiu o Vasco, verdade. Mas fica um legado imenso.

PS: O ano passado, na feira do livro, e com o Vasco bastante cansado e em baixo, lançámos, um conjunto de autores, o livro 67 vozes por Portugal. Muitos faltaram, o que é normal para um Sábado ainda de Verão. Aliás, faltar é normal. O Vasco não. O Vasco fez questão de me ir dar um abraço apesar do sofrimento em que visivelmente o encontrei. Pessoalmente, em plena feira do livro. Há coisas que não se esquecem. Há pessoas que marcam as nossas vidas. E há pessoas que merecem um tributo, ainda que singelo, de forma pública. O Vasco era seguramente uma dessas pessoas.