Entre o título sem pontuação e com ponto de exclamação – Vêm aí os judeus! – vai a diferença entre uma informação e a histeria para provocar medo ou rejeição. A primeira pode ser dita por mim, com um sorriso e expressão de boas-vindas, na esteira da lei de 2013 de naturalização dos judeus sefarditas. A segunda, com um ou mais pontos de exclamação, é entoada como alerta de temível invasão, excitando tiques antissemitas. Temos assistido a isto a várias vozes.

A deputada do PS Constança Urbano de Sousa, em 16 de Junho, na audição do ministro dos Negócios Estrangeiros na 1.ª Comissão Parlamentar, entusiasmou-se a acusar as candidaturas de descendentes sefarditas à naturalização de terem crescimento exponencial. Mostrando-se actualizada, foi buscar o exemplo da Covid-19 para ilustrar como a pandemia nos elucidara a todos sobre “crescimento exponencial”. Mostrando forte convicção na teoria, derivou para o seu exemplo pessoal, informando-nos de que ela própria, com seus dois filhos, seria responsável dentro de 250 anos por um milhão de descendentes. Na verdade, um perigo, se cada casal judeu com dois filhos gerasse logo nos primeiros 250 anos um milhão de descendentes…

Dias antes, a 26 de Maio, tinha sido a vez de Rui Pena Pires, dirigente nacional do PS, também professor universitário. Em artigo no PÚBLICO, apontou à lei de 2013: «uma mudança legislativa que, de uma assentada, criou dezenas de milhões de novos candidatos potenciais à nacionalidade portuguesa.» Eis que teríamos dezenas de milhões de judeus à entrada da porta. E nós que não somos mais de uma dezena.

Dias depois, a 29 de Junho, Paulo de Morais, independente com conhecida intervenção cívica, brandiu igualmente a matemática milionária. Noutro artigo no PÚBLICO, fez pontaria à lei de 2013: «Foi um colossal erro de cálculo: os descendentes dos que saíram podem hoje ser da ordem das centenas de milhões, volvidas que são mais de 15 gerações.» Afinal, não são dezenas, mas centenas de milhões a espreitar da fronteira, cobiçando o que é nosso.

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A deputada Constança Urbano de Sousa, pouco depois da sua explosão demográfica, pediu desculpa à comunidade judaica de Lisboa, quando esta foi à comissão parlamentar em 25 de Junho. Mas, ao contrário do que constou, as desculpas terão sido somente quanto à associação à pandemia, não quanto à matemática explosiva. Nada corrigiu neste aspecto; e, no dia 23 de Junho, na audição à ministra da Justiça, puxou da mesma calculadora. Aludiu a genealogistas que, quanto a passaportes portugueses, manejam páginas no Facebook, onde os “oferecem aos milhões de descendentes” sefarditas. Nomeou dois casos, António Fernandes e António Bicudo Carneiro, ambos judeus antigos idos de Portugal que, só à sua conta, “têm, hoje, milhões de descendentes na América Latina.” De facto, um caso bicudo. Confesso que sabia de portugueses grandes povoadores, aquém e além-mar. Não os imaginava assim tão prolíferos.

Não são só os milhões pandémicos ou bicudos da deputada socialista que espantam muito para além do real. São as “dezenas de milhões” e as “centenas de milhões” dos outros ataques à lei.

Quanto às “dezenas de milhões” de Rui Pena Pires, há que ter presente que as estatísticas conhecidas dizem haver no mundo 14 milhões de judeus. Não chegam sequer a 20 milhões, para fazerem duas dezenas e terem direito ao plural – são uma dezena e algo mais.

A exuberância de Paulo de Morais é mais extraordinária, ao denunciar “centenas de milhões” de descendentes. Os judeus expulsos de Portugal na sequência do Édito de D. Manuel são calculados em 100.000. No final do século XV, a população portuguesa é estimada em 1.000.000 de habitantes. Assim, se os 100.000 expulsos geraram centenas de milhões de descendentes, os cerca de um milhão que cá ficaram teriam gerado nove ou dez vezes centenas de milhões. Portugal teria, hoje, peso demográfico semelhante ao da China ou da Índia – talvez até tanto ou mais do que as duas juntas. Seria difícil cabermos cá. E nem quero imaginar o trânsito…

Este terrorismo milionário serve um propósito: difamar o processo administrativo de naturalização dos descendentes sefarditas e desacreditar a lei. O efeito será destruir uma lei que, todos o dizem, foi um acto de justiça e muito prestigiou Portugal. Para a desfazer, é preciso arrasá-la no seu crédito e notoriedade. O alarmismo das hordas invasoras faz-se acompanhar pela ferramenta difamatória: publicidade abusiva feita, internacionalmente, por advogados e empresas que “vendem” a nacionalidade e passaportes portugueses, conspurcando a lei e o processo com uma mercantilização efectivamente inaceitável.

O debate havido revelou a existência de problemas que necessitam de ser atalhados. Não se percebe, aliás, por que o não foram já – o Governo, que revelou ter detectado os primeiros problemas já em 2016, tem todas as competências necessárias para responder àquilo que denuncia. Poderia dar várias sugestões, sempre sem beliscar a lei, a sua unanimidade histórica e o seu prestígio. É responsabilidade do Governo aplicar e executar a lei, adequando as normas regulamentares e a actuação executiva aos desafios e problemas que vão surgindo.

Confesso que, quando fui um dos iniciadores desta lei, nunca pensei que viesse a provocar mais de cinco a dez mil naturalizados. Também não pensei que viesse a ser um problema. Para mim, a questão não era a do número, sempre incerto, mas aquilo que dependia unicamente de nós: a qualidade da relação que conseguíssemos restabelecer com os descendentes das comunidades que expulsámos. Tenho consciência da dimensão e gravidade da ablacção que, nos séculos XVI e XVII, fizemos de parte relevante da comunidade nacional. E, além da terrível injustiça, do dano que essa amputação representou para Portugal. Não é apenas uma questão de reparação histórica – sempre duvidosa –, mas a oportunidade de reconstrução da integridade da nação portuguesa. Por isso, quando os números deram sinais de ir além das minhas modestas previsões, isso não me inquietou, encheu-me de admiração e regozijo: os descendentes dos expulsos não estavam zangados connosco e queriam voltar a pertencer-nos e nós a eles.

É possível que haja oportunistas. Há-os em todo o lado. Acredito que os haja em todos os regimes de aquisição da nacionalidade. Mas isso não serve para difamar os regimes, serve para adequar a prática administrativa aos imperativos de seriedade, uma tarefa permanente, nunca acabada. Por mim, tenho querido olhar à qualidade do que é conseguido.

O primeiro sefardita a beneficiar do novo regime, foi um panamiano, Alfonso Paredes, de 33 anos, descendente de muitas errâncias depois da expulsão de Portugal. “A minha família” – contou – “sempre teve consciência da sua história e origens, mas nunca imaginámos que isto seria possível. Ao fim de tantos anos, poder corrigir a grande injustiça feita aos judeus é um momento de orgulho e grande realização emocional.” Outros testemunhos enriquecem o lastro memorial e cultural desta relação, que é muito mais antiga que a existência de Portugal. Conta Miguel Vaz, erguendo um molho de chaves, que tilintam: “Muitas famílias ainda hoje possuem chaves medievais das suas casas em Portugal da altura em que receberam o édito de expulsão em 1496.” Michael Rothwell, um director da comunidade judaica do Porto, completa: “A cultura sefardita manteve-se ao longo dos séculos. Ainda há orações em português e noutra língua muito rica, o ladino, formada com junção do espanhol e do português medievais. Ainda hoje há pessoas na Turquia com avós que falam ladino e que conseguem chegar cá e entender-nos, sem que qualquer membro da família, desde 1497, tenha pousado os pés na Península Ibérica.” E Richard Zimler remata: “A terra prometida, para os judeus sefarditas, não era a Palestina. Era Espanha e Portugal.” É o jornalista que conclui: “Em ladino, também se diz ‘saudade’.”

Em Junho de 2019, a BBC interessou-se por este tema. Cito pedaços de testemunhos. Diz Alex Abrahams: “Eu sei que soa como um elo incrivelmente ténue, considerando quantas gerações da família tem de atravessar da Idade Média até agora. Mas acho que se meus avós e bisavós e seus antepassados estivessem vivos hoje, eles aproveitariam a oportunidade também.” E Gabriel Steinhardt: “Conheço pelo menos dois casos de judeus da Turquia que guardaram chaves de casas em Portugal e as transmitiram por mais de 500 anos de geração em geração. Obviamente, essas casas não existem mais, nem sabem onde ficavam. Mas é uma história muito comovente.” E Etel Sason, professora universitária aposentada: “Algo me chama – talvez meus genes estejam a dizer-me que eu já vivi lá antes. Existem tantas semelhanças. Até os biscoitos que vendem em Portugal – são os mesmos biscoitos que foram assados pela minha avó. A sopa também – é a sopa da minha avó!” Acrescentou o que lhe pareceu o mais estranho, poder entender as línguas de Espanha e de Portugal: “É milagroso. Nunca tive aulas e não sei escrever essas línguas, mas consigo entender quase tudo.” Noutra reportagem do PÚBLICO, em 2017, Ceyda Habib jura: “Quando cheguei a Lisboa essa primeira vez, uma cidade que é turística, como Londres ou Paris, senti: aqui é a minha casa. Foi estranho Lisboa”.

Maio passado, Esther Mucznik partilhou no PÚBLICO testemunhos de requerentes da naturalização. Conta um, de Israel: “Os meus avós paternos, de Salónica, foram deportados para Auschwitz, onde foram mortos. O meu pai foi o único sobrevivente de toda a família. Para a minha família, obter hoje a cidadania portuguesa é restabelecer os vínculos com as nossas origens, duplamente despedaçadas, primeiro de Portugal e depois de Salónica.” Conta outro, também de Israel: “O meu bisavô, Aharon Mendes Chumaceiro, tornou-se rabino da Comunidade Sefardita portuguesa de Curaçao, tendo depois voltado para a Holanda. Enterrado no cemitério judaico de Ouderkerk, a inscrição na sua sepultura está em português. Nas viagens que fiz a Portugal, apaixonei-me por este encantador país e seu povo, consciente de ser a terra dos meus antepassados.” Relata outro, da África do Sul: “Nasci na África do Sul, em 1954. Nos papéis que a minha mãe me deixou, estava uma árvore genealógica familiar traçando as minhas raízes desde há longos séculos. Essa árvore relaciona-me com a família Abendana Belmonte que fugiu de Portugal no tempo da Inquisição, indo para diversos países da Europa, até chegar finalmente à África do Sul. A possibilidade de recuperar a cidadania portuguesa dos meus antepassados e, em consequência, o sentimento de pertença ao lugar de origem da minha família tantos séculos atrás, foi uma grande alegria.” Diz outra, do Brasil: “Ser judia não é apenas ter uma religião, é muito mais do que isso. Significa uma história, um laço com o passado, mas também significa um presente. Tudo isso chegou até mim como herança de uma família que durante a Inquisição foi expulsa de Portugal mas manteve a sua tradição na Turquia ao longo dos séculos e, posteriormente, no Brasil.” E ainda outra, de Marrocos: “Não sei bem explicar porquê – sempre quis regressar a Portugal, mesmo sem ter nascido lá. Em 2006 convenci o meu companheiro a viajar para Portugal e caminhar por onde estavam as minhas raízes portuguesas. Passámos por todas as antigas judiarias, cemitérios e sinagogas e percebemos o quanto os vínculos foram mantidos e por que ainda hoje nos reunimos na tentativa de preservar a nossa história.”

Há apanhados abrangentes dos efeitos positivos da lei. Um foi escrito no EXPRESSO, em Junho, por Michael Rothwell, dirigente da comunidade judaica do Porto: “O crescimento da comunidade judaica nacional desde 2015 inclui o povoamento do interior do país, a abertura de museus judaicos, do Chabad Center de Cascais, de salas de oração, cemitérios, hotéis, restaurantes e supermercados kosher, investimentos na economia nacional e donativos de dezenas de milhões de euros para instituições várias, incluindo fundações que desenvolvem actividades de pesquisa científica no campo da Medicina e a Torre do Tombo, que poderá agora providenciar o tratamento e digitalização de milhares de processos da Inquisição que estavam a deteriorar-se perigosamente por falta de verba. Acresce a tudo isto o crescimento exponencial do turismo judaico em Portugal, para o qual muito contribuiu uma parceria entre o Turismo de Portugal e a comunidade israelita de Lisboa, que juntos visitaram Israel, a Argentina e os Estados Unidos da América.” Em novo artigo no PÚBLICO, já em Julho, Esther Mucznik acrescentou: “Pelo que sei, há sim numerosas pessoas, nomeadamente israelitas e brasileiros, cujo passaporte português os estimulou a virem a e para Portugal: casais israelitas que vieram e adquiriram terras no Alentejo e nas Beiras para cultivo; desenvolvimento de actividades culturais; investimentos em imobiliário e no comércio ou simplesmente para morarem em Portugal, inserindo-se no mercado de trabalho, nomeadamente no da inovação. Há mesmo uma página de Facebook cujo nome traduzido do hebraico é “Israelitas em Portugal”, com mais de cinco mil seguidores, que procura ajudar os recém-chegados a instalar-se no país e a manter a relação comunitária, tal como os franceses ou ingleses o fazem. Não posso garantir que todos os que estão em Portugal tenham sido beneficiários da Lei, mas está em curso uma tese de doutoramento na Universidade Católica de Lisboa sobre a imigração israelita em Portugal que fará luz sobre esta questão.”

Vários outros casos têm sido noticiados na imprensa, com contributos muito relevantes para a cultura, a ciência e a economia em Portugal. Patrick Drahi, fundador e presidente do grupo Altice, é judeu sefardita de origem marroquina, com nacionalidade israelita, francesa e, agora, também portuguesa. Comprou a PT, resgatando-a do descalabro, e tem investido milhares de milhões de euros em Portugal. O museu judaico de Lisboa recebeu um donativo de 2 milhões de euros de uma família sefardita, já pago ainda antes de construído. O Centro Chabad de Cascais, que tanta celeuma gerou, foi pago por judeus sefarditas, num investimento de 3 milhões de euros, inteiramente dedicado à vida, à cultura e à história judaicas. Sefarditas doaram 50 milhões de euros para a Fundação Champalimaud com vista à investigação ao tratamento do cancro do pâncreas. Sefarditas doaram a verba necessária para providenciar o tratamento e digitalização de milhares de processos da Inquisição que estavam a deteriorar-se, tendo o embaixador de Israel assinado o protocolo em nome deles. Sefarditas ligados à comunidade do Porto anunciaram, nas últimas semanas, em tempos de pandemia, investimentos de 180 milhões de euros em hotéis e habitações (no Porto, Gaia e Lisboa) e outros de 100 milhões na construção ou reabilitação de apartamentos em Lisboa e Porto. Quanto outro investimento privado tem havido em Portugal nesta travessia da pandemia? Sefarditas de Hong Kong e Xangai (que já em 1930 deram o nome à sinagoga do Porto) afirmaram ao Presidente da República estar disponíveis para promover investimentos nas áreas mais diferentes, incluindo em caridade e cultura. Foi erguido o museu judaico do Porto e foram produzidos quatro filmes de história judaica em Portugal, revertendo grande parte das receitas para instituições de caridade. As comunidades de Porto e Lisboa anunciaram novas salas de oração, hotéis, restaurantes, supermercados e até cemitérios. Para quê cemitérios, se ninguém vem?

A deputada Constança Urbano de Sousa, que montou a difamação sistemática do processo administrativo e, portanto, dos requerentes de naturalização, faz de conta que não viu nada daquilo e não sabe. Esses factos fazem cair por terra a narrativa dos “passaportes de conveniência”. O PSD, infelizmente, talvez nesta nova vocação de nadador-salvador, enveredou atrás da linha socialista, através da deputada Catarina Braga Ferreira. É muito decepcionante ver o PSD a querer também desacreditar uma lei boa e justa para cuja unanimidade também contribuiu e cuja regulamentação foi feita – e bem – por ministros seus. Quem escuta as duas deputadas fica com a ideia de que não conhecem a palavra generosidade e, menos ainda, o seu conceito. Terão, por isso, dificuldade em entender aqueles factos e outros similares: não resultaram de “vistos gold”, nem de esquemas similares. Resultaram do espontâneo impulso generoso de sefarditas que reencontraram as suas raízes e se encantam com a generosidade contemporânea da terra dos seus ancestrais. É certamente essa estranha alergia à verdade do que acontece que as leva também a não apoiar e dar sequência ao pedido formulado pela comunidade portuense de a Assembleia ouvir, por escrito, os 16.750 já naturalizados.

Se as propostas do PS e do PSD, esfacelando a lei de 2013, fossem por diante, seriam aqueles os grandes desiludidos. Quanto aos que busquem “passaporte de conveniência” sempre o encontrarão e pagarão por ele – o que não pagarão é para o crescimento de Portugal. Todos os que brandem ameaças de “milhões” têm de ver que os únicos milhões que vieram foram os milhares de milhões de euros já investidos por sefarditas retornados, que acreditam e gostam do país que é nosso: nosso dos que nunca fomos expulsos e deles também que regressam.

Venham quantos vierem dentro da letra e do espírito da lei, sinto enorme gratidão por responderem “sim” ao convite que, por unanimidade, decidimos fazer-lhes em 2013. Sinto enorme gratidão por o peso do passado não ser para eles incontornável trambolho no caminho do futuro. Por favor, peço ao PS, ao governo, ao PSD, ao PCP: não estraguem isto. Não estraguem uma das mais belas leis de Portugal. Não estraguem a reunião da comunidade nacional.