Parece que os portugueses valorizam a luta1. Quem nos ouvisse falar pensaria que somos um povo guerreiro. Que luta, que vai à guerra2, & que gosta de vencer. É frequente ler3 & escutar de políticos & empresários, professores & sindicalistas4, piedades5 como “há valores pelos quais vale a pena lutar”, “é preciso lutar por isto & aquilo”, ou “temos de lutar pelos nossos direitos”. Mas… onde estão as conquistas de tanta luta?

Ou será que muitas dessas lutas, mais do que valorosas batalhas contra o inimigo, não serão desapiedadas razias contra civis indefesos, sejam os alunos nas lutas dos professores, as vítimas de uma injustiça nas lutas dos profissionais de justiça, os utentes da linha de Sintra nas lutas dos ferroviários, ou os pobres dos portugueses na luta do nosso governo por uma sociedade mais justa? E quem é que arrisca vida ou fazenda nessas batalhas? Os guerreiros ou os civis? Assim, que admiração nos devem merecer esses valorosos lutadores y suas nobres causas?

Mais importante: será que é sempre preciso fazer guerra & lutar para atingir os nossos objetivos ou defender os nossos direitos6? Por exemplo, teria a Rússia de invadir a Ucrânia para defender o que, com ou sem razão, considera serem os seus interesses vitais? Não haveria uma terceira via, algo entre o não fazer nada, que poderia por em causa a sua sobrevivência, e o fazer guerra, que pode fazer perigar a sua subsistência? Uma antiga crónica japonesa, sobre um episódio na vida de um samurai famoso, Tsukahara Bokuden (塚原卜伝, 1489 — 6 de Março de1571) oferece-nos, não uma solução, mas uma pista:

“Certo dia, dirigindo-se para a Capital, o grande Mestre [Bokuden] teve de fazer a travessia do Lago Biwa. A embarcação encontrava-se apinhada de passageiros dos distritos vizinhos, todos comerciantes, com a exceção de um jovem samurai. Nada de especial sucedeu que interrompesse o burburinho das conversas casuais desde o momento em que o barco zarpou até que um dos mercadores, por acidente, pisou a extremidade da espada do jovem samurai.

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“O moço, que considerava os seus companheiros de viagem com o desdém que convém a membros de classes parasitárias7, ficou extremamente furioso e derramou os cálices da sua ira sobre o incauto ofensor, declarando que a única reparação aceitável para o insulto de pisar a alma de um samurai, é o sacrifício da vida do miserável infrator.

“O homem caindo sobre os seus joelhos implorava perdão enquanto baixava a sua testa até ao sobrado do barco. ‘A ofensa tinha sido meramente acidental,’ defendia-se ele, ‘devido à evidente superlotação da embarcação e consequente falta de espaço.’ A estas palavras juntavam-se os rogos dos outros passageiros que, à uma, intercediam pelo pobre homem.

“O ofendido, no entanto, recusava-se a ser aplacado e já punha a mão ao punho da sua espada quando Bokuden, que tinha assistido a tudo em silêncio, avançou e disse:

“’Foi, como bem sabereis, apenas um acidente da parte do mercador. Ele não tinha intensão nem de vos insultar, nem de ser descortês, quando pisou a vossa espada. Seria muito pouco cavalheiro da vossa parte não o perdoares, especialmente tendo em conta a profusão dos seus pedidos de desculpa.’

“Mas o adolescente recusava dar ouvidos à razão e apenas sentia a sua raiva aumentar. A Bokuden respondeu que, ou parava de se meter onde não era chamado, ou que teria um duelo em mãos, já que era samurai e culpado de se por do lado de um reles comerciante.

“A isto Bokuden respondeu calmamente que, se fosse necessário, estava pronto a defender a sua honra, mas propôs que a cerimónia fosse adiada até ao desembarque, dado os inconvenientes de uma luta numa embarcação tão lotada [‘como um comboio da cp’, acrescenta um manuscrito] e os riscos para tantas testemunhas involuntárias e inocentes.

“O jovem, apesar de toldado pela raiva, conseguiu entrever a razoabilidade desta proposta. No entanto, começou imediatamente os seus preparativos para o combate encurtando a sua hakama 袴, e insultando o seu adversário. Declarando que pertencia à escola de combate conhecida como ‘Mutekiryū’ 無敵流, ou ‘Invencível’, perguntava-lhe a de que escola fazia parte.

“’A escola de que faço parte é conhecida como Mutekatsuryū’ 無手勝流, ou ‘Vencer sem Mãos’, respondeu-lhe Bokuden, o que o jovem samurai contabilizou como mais um insulto a creditar à vingança e a necessitar pronto pagamento. A embarcação estava a meio da travessia, mas por desígnio de providencia superior, aconteceu ele reparar nesse momento numa pequena ilha deserta ali perto, pelo que ordenou ao barqueiro para lá se dirigir. Os passageiros estavam aterrorizados com o que poderia acontecer, mas Bokuden aparentava calma & tranquilidade.

“Assim que a proa tocou na areia, o furioso, mas novato, samurai saltou para a praia e aprontou-se para a luta por que sofregamente ansiava. Enquanto gritava a Bokuden para se apressar, este pegou no grosso cajado do barqueiro e com ele empurrou a embarcação de novo para águas profundas, ao mesmo tempo que ordenava aos remadores para recomeçarem o seu trabalho e ao barqueiro para retomar a rota estabelecida.

Por alguns momentos, o desvairado jovem não conseguia acreditar nos seus olhos, mas rapidamente percebeu que tinha sido derrotado num combate sem mãos. Abriu o seu saco de insultos e, pegando neles, atirou-os à tripulação que já estava em rota ao seu destino, mas as suas invetivas foram apanhadas, sem ofensa, pelo vento que as levou para onde ia. À medida que o ruido do seu barafustar ia esmorecendo, disse Bokuden:

“’É uma ofensa à dignidade da espada ser empunhada por uma causa tão fútil como aquele tratante. A espada é uma arma excelente, é a alma do samurai, mas as melhores vitórias são aquelas que são vencidas sem a ela recorrer.’

“Os passageiros foram sonoros na sua admiração de alguém que conseguiu transformar uma morta certa de um dos contendores numa vitoria sem derramamento de sangue. Assim começou a fama deste ilustre guerreiro e pupilos começaram a vir ter com ele de todas as direções para aprenderem as suas técnicas e se imbuírem do verdadeiro espírito do bushido.”

Não vá algum tuga pensar que Bokuden não passava de uma flor de estufa, que só vencia não combatendo, ficam as seguintes estatísticas: durante a sua vida combateu em 37 batalhas, travou 20 duelos de morte, e o número das suas vítimas mortais em combate é estimado ser 212. Nunca um oponente sobre ele declarou vitória. E morreu de velho… Mas a principal causa da sua fama é devida a, durante toda a sua vida, Bokuden nunca ter desembainhado a sua espada se pudesse, de outro modo, atingir o seu objetivo.

O episódio acima não é solução para nenhum dos nossos problemas atuais. Mas não será uma fonte de inspiração?

U avtor não segve a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreue coumu pode, qver & lhe apetece. #EncuantoNusDeixam

  1. Luta: instituição essencial em sociedades inclusivas, igualitárias, equitativas & pacíficas; ritual social essencial ao florescimento de jornalistas & lucro de jornais; alguns progressistas censurem e deplorem a necessidade & a existência da luta, especialmente quando é entre iguais, como a competição entre empresas, alunos e trabalhadores em mercados concorrenciais, mas não quando entre desiguais, como as lutas ambientais, a luta de classes e as lutas raciais.
  2. GueRra: aquilo que acontece após assinatura de tratados de paz e cooperação (exemplo), seguindo o antigo preceito chinês “si vis bellum, para pacem”; método humano eficaz para a resolução de conflitos; campo de onde brotam as flores da paz; o resultado da boa vontade mútua entre dois estados soberanos; diplomacia musculada; área especializada da ciência diplomática; móbil para angariar fundos para organizações pacifistas; aquilo que o pacifismo jamais conseguiu evitar, muito menos eliminar; aquilo que só se consegue impedir com cinismo e desconfiança—e com a preparação de um exército competente. A gueRra, tal como o ladrão noturno, vem quando menos se espera e quanto mais líricas são as declarações de diplomatas e outros políticos sobre a paz e segurança. Daí o princípio base da diplomacia, conhecido como a Lei Centavo, “a probabilidade de ocorrência de uma gueRa é inversamente proporcional à preparação marcial do povo e diretamente proporcional ao clima geral de paz e tranquilidade”, atribuída ao Pe. Mário Centavo, e cuja demonstração científica (e famosa equação: Prob[guerRa]=clima de tranquilidade/prep.marcial^2) se pode encontrar no vol. 34 da sua Opera Omnia. Sobre este assunto, um filósofo chinês antigo também terá entoado “si vis pacem, para bellum”, mas este lexicógrafo ignora o significado desta invocação mágica.
  3. Ler: captura do significado da palavra escrita, quando este existe; segundo o neo-warxismo é um ato de apropriação do labor do escritor-proletário pelo leitor-burguês inerente à exploração capitalista; dependendo do texto, pode resultar numa mais- ou numa menos-valia, em ambos os casos, tributável.
  4. Sindicalista: trabalhador dum tipo de empresa chamada sindicato8; termo especialmente usado para referir os patrões dessas empresas.
  5. Piedade: ato de reverência a um princípio supremo, ou deus, geralmente entendido como sendo uma extensão, ou apêndice, daquele que é piedoso.
  6. Direito:legitimidade para se ser, ter ou fazer, tal como ser mentiroso, ter negócios imobiliários e negociatas com empresários amigos, e fazer os portugueses mais pobres são direitos adquiridos de qualquer político detentor de cargo público.
  7. Parasita: elemento integrante e essencial a um ecossistema saudável e dinâmico; a presença de parasitas é um sinal de vitalidade de qualquer organismo vivo, sendo que a morte deste é marcada pelo êxodo daqueles, facto em que alguns economistas se baseiam para demonstrar a pujança da economia e do estado social português; o desprezo pelo comércio e pelos comerciantes, e a sua identificação com parasitismo, é apenas um dos pontos em comum que o warxismo tem com o feudalismo asiático.
  8. Sindicato: empresa em que os acionistas são os trabalhadores; empresa que visa o lucro dos seus acionistas; organização que floresce no capitalismo, mas fenece nas sociedades socialistas, onde o vício da ganância do lucro foi superado; organização em que, se bem que nominalmente, os trabalhadores elegem os patrões, o que leva à questão: será que os sindicatos representam os interesses dos trabalhadores ou os dos patrões?