Chegam as notícias da Venezuela. Mais de dois milhões de pessoas que fogem da fome, da doença, da miséria, sobretudo para os países próximos: Colômbia, Brasil, Equador, Peru, Chile. A pé, em grandes filas. Uma inflação estratosférica. Imagens de hospitais em caos e incalculável penúria. E tudo o mais que se adivinha por detrás do horror já de si muito visível. Do outro lado, o grotesco. O tintinesco Maduro anunciando os seus grandes planos para a economia do país, abarrotado de petróleo e em tempos o mais próspero da América Latina, e aconselhando aos cidadãos a compra de lingotes de ouro. Os dignatários do regime rindo com ele e batendo palmas. Os grupos de criminosos que guardam a “revolução” aterrorizando criaturas inermes e desesperadas.

Convenhamos que é difícil não deduzir de tudo isto o horror do regime “bolivariano”. Mas há, como se sabe, quem não o faça. O Partido Comunista persevera na sua particular versão dos acontecimentos. É o imperialismo americano que está por detrás da miséria. Todo o mal vem de fora. Claro que há “erros” que o regime cometeu, mas quem não os comete? – até Estaline (Lenine é duvidoso, mas esse é um santo) os cometeu. Sem ser preciso esgravatar muito, descobre-se, de resto, que o PC não se encontra isolado na sua posição. O querido Bloco e alguns intelectuais dele próximos partilham em parte a sua análise. Sem dúvida que distinguem Maduro de Chávez: o segundo era um visionário, ao primeiro falta-lhe a genialidade de um grande líder e essa falta de genialidade (os verdadeiros líderes comunistas são sempre génios) paga-se caro. Mas no essencial estarão de acordo com o PC em apontar as responsabilidades do capitalismo internacional e do imperialismo americano na catástrofe.

Como estará de acordo com o PC uma parte infelizmente significativa do PS. Apesar de tudo, a Venezuela quer ser socialista, e esse desejo é um desejo bom. E não é verdade que várias organizações internacionais saudaram efusivamente os progressos obtidos por Chávez em vários domínios: saúde, educação, cultura e por aí adiante? Que tudo o que veio a seguir se encontrasse já em filigrana no processo que permitiu esses grandes progressos, algo que se via com toda a evidência à distância, não interessa. Não costuma interessar. Nunca interessa. Para uma boa parte da base da nossa actual “geringonça” não interessa nada.

Como é que esta atitude face ao óbvio, que corresponde a uma negação do óbvio, é possível? Dir-se-á que só uma imensa cegueira ideologicamente motivada, a aproximar-se da loucura, torna isto possível. E dir-se-á sem dúvida bem. Há toda uma filosofia da história, permitida pelo marxismo, que conduz directamente a esse tipo de alucinações. Receio, no entanto, que ficarmos por aqui seja excessivo optimismo. É que há algo mais profundo do que isso, algo que não é conjuntural mas estrutural, que não resulta de uma particular perversidade teórica mas de uma possibilidade sempre presente no pensamento, que permite esse tipo de atitudes. Algo que torna o juízo político uma coisa muito distinta do tipo de juízo praticado nas ciências.

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E esse algo é a impossibilidade da prova. Nas ciências, quaisquer que sejam as cláusulas que se devam acrescentar, a prova, experimental ou demonstrativa (matemática), por mais difícil de obter que seja, é em princípio possível. E um acordo efectivo (não um mero “consenso” intersubjectivo) resulta daí. As próprias controvérsias científicas, distintamente de outras controvérsias, assentam na possibilidade desse tipo de decisão, como o mostrou amplamente Fernando Gil, o filósofo. Ora, nada de equivalente se encontra em política (ou em moral). Banalmente, não se pode provar – digo bem: provar – que uma sociedade assente no princípio da inferioridade das mulheres relativamente aos homens seja menos desejável do que uma sociedade que se construa sobre o princípio da igualdade entre homens e mulheres. Ou que um regime democrático seja preferivel a uma tirania. E por aí adiante. Se se pudesse, ter-se-ia sabido e o nosso planeta viveria com toda a probabilidade muito melhor.

Mas significará isso que estamos, em matéria política, condenados ao relativismo, e a um relativismo tendencialmente nihilista? De forma alguma, já que, à falta de provas, sobram-nos argumentos, e os argumentos não têm todos o mesmo peso. Alguns oferecem determinadas características que, numa discussão obedecendo a critérios suficientemente latos de racionalidade (não é preciso exigir muito), podem vencer os outros. Por exemplo: os argumentos a favor da igualdade social e política dos homens e das mulheres são mais poderosos do que os que militam pela desigualdade. Acontece, no entanto, que mesmo um muito bom argumento não equivale a uma prova, não tem o poder coercivo desta. É sempre possível, de mil maneiras, recusá-lo. E por isso a abjecção política pode sempre encontrar avenidas para se espraiar. A actual situação da Venezuela (incluindo certas reacções a ela) é apenas o mais recente dos exemplos. Mas o número destes é legião desde o princípio dos tempos. E continuará assim pelo futuro. Não é necessário invocar o Mal, com a devida maiúscula, como a origem. Tudo tem a ver com a condição natural do juízo político. A estupidez e o crime são, à sua maneira, naturais. Não é apenas excessivo optimismo pensar o contrário: é irrealismo puro e simples. Pode-se, literalmente, acreditar em tudo. Na radical inocência do regime de Maduro, por exemplo. Ou, caseiramente, e, dadas as circunstâncias europeias, de modo agradavelmente menos arriscado, na invencível sabedoria de Catarina Martins.

Agora, um longo post-scriptum.

A Faculdade de Letras da Universidade do Porto acolherá esta sexta e sábado (dias 7 e 8) uma conferência intitulada Basic Science of a Changing Climate. How processes in the Sun, Atmosphere and Ocean affect Weather and Climate, onde se discutirá a questão da natureza antropogénica do “aquecimento global”. Nada tenho a ver com a sua organização (a presidente do comité de organização da conferência é Maria Assunção Araújo, professora do Departamento de Geografia da Universidade) e, de facto, desconhecia até ontem a sua realização, mas aproveito a coluna para a devida publicidade.

Mal se soube da realização da dita conferência, choveram as críticas, bem espelhadas no título da notícia com que o Observador publicitou o acontecimento: “Universidade do Porto vai acolher uma conferência de negacionistas das alterações climáticas”. Seguindo uma prática originada pelo círculo do fabuloso Al Gore, a palavra “negacionismo”, cujo referente principal e originário é obviamente o conjunto daqueles que recusam a existência histórica do Holocausto, é utilizada para descrever o conjunto extensíssimo de cientistas (entre os quais, por exemplo, o eminente físico Freeman Dyson) que defendem razões pelo menos parcialmente não-antropogénicas para as alterações climáticas.

A tentativa de criar um escândalo a partir do acolhimento desta conferência pela Universidade do Porto merece pelo menos dois comentários. O primeiro é que qualquer pessoa que siga com razoável atenção o debate sobre as “alterações climáticas” desde há anos sabe duas coisas: que a questão é, no plano científico, extraordinariamente complexa, dando lugar, como é natural, a pontos de vista muito variados; e que a controvérsia é declaradamente impura, já que mistura num elevado grau elementos científicos e elementos caracteristicamente ideológicos. O segundo comentário diz respeito à própria natureza da discussão científica. Não é necessário ser um popperiano impenitente para reconhecer que a ciência progride através do confronto livre de teses que umas às outras se opõem e que qualquer tentativa de silenciar tais oposições é, em todos os sentidos da expressão, anti-científica. Por isso, a posição daqueles que vociferam, em nome da ciência, contra o acolhimento que a Universidade do Porto deu à conferência é, quanto mais não seja pela razão mencionada no primeiro comentário, mais uma vez, literalmente, anti-científica.

Particularmente ilustrativa desta atitude anti-científica é a posição de alguém a quem o Observadordeu voz na sua notícia. João Lourenço Monteiro, da “Comunidade Céptica Portuguesa”, censura a realização da conferência na Universidade invocando a necessidade de não pactuar com este particular “negacionismo”: é preciso silenciar tais posições no espaço público e optar pelo “consenso” científico (como se a ciência se baseasse em “consensos”). Ignoro em que tradição céptica se enquadra a doutrina da “Comunidade Céptica”, uma expressão, de resto, um bocado cómica. Mas ficamos todos à espera da publicação pela dita Comunidade de um opúsculo,”Como ser céptico sem ter dúvidas”, em que um dos mais antigos e centrais problemas da filosofia encontre uma sua feliz e definitiva solução.

Naturalmente, este longo post-scriptum prolonga o tema do artigo de hoje. A infiltração do juízo científico pelo juízo político (o vocabulário do “consenso” é emblemático desta infiltração) produz o sono da razão, que por sua vez engendra monstros. A tentativa de silenciar uma discussão científica ilustra às mil maravilhas a possibilidade sempre presente da abjecção política.