João Braga canta o fado há mais de 55 anos. Gravou o primeiro disco em 1967 e, para comemorar este percurso, deu um espectáculo no dia 18 de Outubro, no Teatro São Luiz. Uma terça-feira, dia de Assembleia Municipal, cuja sessão acabou em homenagem a José Saramago, com discursos, evocações, e tudo o mais que estas missas determinam, e ainda com a presença da espantosa sra. del Rio. Como veremos um pouco mais à frente, até isto é sintomático. Fugi dela a tempo de chegar ao São Luiz, como era minha obrigação. De resto, fugiria sempre, mesmo que João Braga não me desse razões de sobra para invocar prioridades.

João Braga é talvez o fadista mais conhecido e o mais influente para todas as gerações. Não é possível ter uma conversa séria sobre cultura portuguesa contemporânea sem se falar dele. Julguei que esta verdade prosaica havia penetrado as cabeças de quem faz destas coisas o seu modo de vida, mas não penetrou. Vou tentar explicar porque é tão grave que a sua relevância não seja hoje reconhecida; quais são as implicações políticas deste equívoco; e o que ele nos mostra sobre os governantes eleitos pela direita.

João Braga quis contrariar a ideia de que o fado é uma canção de velhos, ou antiquada, percebendo que ela, mais tarde ou mais cedo, determinaria a morte do fado. Por isso, descobriu ou inspirou todos os grandes artistas que o fado reconhece, de todas as idades e gerações. Lançou Maria Ana Bobone, Rodrigo Costa Félix, Mariza e Cuca Roseta. Lançou Camané em adulto – ele já tinha ganho, perto dos 10 anos, a Grande Noite do Fado; e, mais tarde, o próprio Camané descrevia publicamente como ficava acordado até de madrugada ouvindo os discos de João Braga. Lançou Ana Moura, num espectáculo da TVI em directo das escadinhas da igreja de São Vicente de Fora; e, antes disso, em Setúbal, no Teatro Luísa Todi. Lançou Katia Guerreiro. E também lançou António Zambujo, num espectáculo da RTP, frente ao Panteão Nacional, pelo quinto aniversário da morte de Amália.

João Braga “renovou um género de velhas tradições sem o trair”, disse dele Vasco Pulido Valente. Por isso o que ele canta é diferente, mas é fado. Mantém-se fado e contém o que só João Braga lhe podia acrescentar, e isto é o que faz dele um objecto de arte único e original.

João Braga viveu 55 anos servindo a ideia de usar o fado como principal veículo da poesia clássica portuguesa, por considerá-la o melhor que nós temos no campo intelectual. E o poeta vivo que ele mais canta é Manuel Alegre – não, João Braga não é sectário nem faccioso.

João Braga é um homem insubmisso. O fado dele recorre à liberdade para responder ao fatalismo, que ele detesta, e que o afastou do fado nos primeiros anos. Até 1967, João Braga recusava-o por causa do fatalismo e do conformismo – a grande nota do fado enquanto foi cantado, nas tabernas e nos becos, por gente sem grande instrução. Maria Teresa de Noronha, pelo seu inescapável polimento, começou a alterar-lhe a lírica e “vestiu-lhe outra roupagem” – foi assim que João Braga um belo dia descreveu o que ela fez. Amália arriscou trazer para o fado a poesia clássica. E João Braga percebeu que o podia moldar, rever-se nele pela maneira de fundir o poema e a melodia, e nestes a sua voz, e, acima de tudo, a riqueza de emoções que só ele próprio sente. Por isso o fado de João Braga é variável, complexo, e imprevisível. É também um fado que detesta, do fundo do coração, o sentimentalismo e a vulgaridade; João Braga mostrou que não precisava de se diminuir para chegar ao grande público.

João Braga nunca cedeu a cantar em comícios da esquerda ou apoiar candidatos da esquerda. João Braga canta o fado, a mais lisboeta de todas as canções; uma constatação tão evidente que é quase cómico ter de a escrever.

Por tudo isto, a Câmara Municipal de Lisboa tinha a obrigação institucional de o reconhecer oficialmente. Carlos Moedas devia ter estado no espectáculo dos 55 anos no São Luiz, e a sua ausência não tem perdão. No mínimo, devia ter enviado o vereador Diogo Moura, que tem o pelouro da cultura. O espectáculo foi marcado com a antecedência necessária, e num teatro municipal; nenhuma explicação pedestre justifica que não tenha libertado a agenda. Se João Braga não é uma prioridade na cultura, então quem é?

São os artistas comunistas. A Câmara de Lisboa, eleita pela direita contra uma candidatura da esquerda, continua a promover e a financiar o teatro, os artistas, os cantores e os intelectuais comunistas. No dia 18 não teve tempo para representar a cidade assistindo ao espectáculo de João Braga; mas na semana seguinte arranjou tempo para dar o nome de Carlos do Carmo a uma parte do passeio marítimo, entre a ponte sobre o Tejo e o novo Museu dos Coches.

Dizem-me que a política cultural de Carlos Moedas assenta na “diversidade”. Curiosa “diversidade” que menospreza o melhor que a direita tem, e que Lisboa tem; uma “diversidade” que se sobrepõe ao mérito, à erudição, ao gosto popular e à exigência; e cuja evocação vã serve afinal para adornar à esquerda, e destinar à esquerda o reforço do poder mediático e dos dinheiros públicos. Escusam agora os senhores vereadores de vir tentar disfarçar a falta de educação atribuindo-lhe honras, fitas ou medalhas. João Braga já as tem todas.

Duas maldições. A primeira é que os governantes da direita não protegem os intelectuais e artistas, por isso eles fogem para a esquerda. A segunda é que os governantes da direita não querem chegar-se à cultura, querem chegar-se à esquerda. Um mau serviço à cultura e à democracia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR