As memórias e as biografias, as escritas de vida são uma forma de escrita de que sempre gostei especialmente. Não adiro a uma visão simplista da história moldada apenas pelos feitos grandes homens ou, até das grandes mulheres. Karl Marx definiu bem o problema quando afirmou que os homens fazem a história, mas não em circunstâncias da sua escolha. E creio que mesmo esse velho machista reconheceria que se pode dizer o mesmo relativamente às mulheres e outras pessoas. Rejeito é uma visão da sociedade e da política governada apenas por forças impessoais. Os líderes em diferentes áreas fazem muita diferença. A ideia de que o nosso último século seria o mesmo sem Hitler ou Roosevelt ou Mao não me parece credível. Para percebermos e anteciparmos a ação das principais potências mundiais temos de ter em conta o perfil dos seus líderes.

Uncle Joe?

Não abundam boas obras sobre Joe Biden, atual presidente dos EUA. Gosto especialmente da do jornalista da New Yorker, Evan Osnos – exceto o título, que aqui omito. Osnos tirou pleno partido da sua grande experiência a cobrir a vida política na capital norte-americana, bem como do acesso fácil aos principais protagonistas, que resultou em muitas entrevistas reveladoras sobre Biden, inclusive com o próprio.

Traça um perfil equilibrado. Destaco entre os pontos fracos a indisciplina verbal e uma certa facilidade em perder a calma. Como principal ponto forte de Biden temos a resiliência face à adversidade, começando com a morte da sua primeira mulher e uma jovem filha num acidente de automóvel, pouco antes de tomar posse como senador. Como diz Biden: “o desastre é inevitável nalgum ponto da nossa vida, mas desistir é imperdoável.” Uma máxima útil para perceber a longevidade de uma carreira política que começou com a sua eleição em 1973 como senador.

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Convém lembrar que a primeira tentativa de Biden chegar à presidência foi em 1988. Se o ajudou ou não uma outra máxima sua – “no funny hats” – fica ao critério do leitor. O livro também nos ajuda a perceber que o seu interesse pela Ucrânia não é de agora. Como vice-presidente entre 2009-2017 Biden tinha como uma das suas pastas as relações com Kiev que visitou várias vezes. E também vem de há muito a sua preferência por uma postura de maior retraimento externo dos EUA, pelo menos no que diz respeito ao emprego de tropas norte-americanas. Por exemplo, ele sempre defendeu que era possível lidar com a Al-Qaida sem forças americanas no terreno no Afeganistão. Depois de décadas a cultivar um perfil afável, Biden prefere, em todo o caso, que não lhe chamem uncle Joe, quer ser um levado a sério como líder dos EUA.

Xi quer o poder todo

Há muitas opções de leitura sobre Xi Jinping que assumiu, em 2012-13, a chefia do Partido-Estado chinês. Recomendo uma boa síntese da lavra de Kerry Brown, distinto sinólogo responsável pelo Lau China Institute de Londres, com um subtítulo significativo: a study in power. Nomeadamente ele permite perceber que Xi é um príncipe vermelho, herdeiro dos fundadores do partido comunista chinês. Mas como com muitos outros da sua geração esta herança foi temperada pela experiência amarga da Revolução Cultural em que muita da elite comunista passou por humilhações, violência e exílio interno. No caso de Xi isso resultou num perfil bem mais duro do que o do seu pai, Xi Shongchun, que no quadro comunista chinês tende a ser visto como um moderado, um apaziguador, um modernizador. Já Xi Jinping parece determinado a não voltar nunca a perder o controlo da situação.

O seu pai Xi Shongchun era também era um especialista nas relações com os Nacionalista do Kuomintang, que se refugiaram em Taiwan, sob proteção naval norte-americana, quando perderam a guerra civil no continente em 1949. E como governador de Cantão depois da sua reabilitação recuperou essa prioridade. Mais, o próprio Xi Jinping foi governador da província de Fujian, que fica literalmente em frente de Taiwan. Como tal foi um forte promotor dos laços económicos com a ilha como forma de acelerar a modernização económica da China, na espectativa também de que essa crescente interdependência acabasse por facilitar a reunificação. Taiwan é, portanto, uma velha preocupação dos Xis, pai e filho. O que fica ainda mais claro é que com Xi a elite chinesa está determinada a voltar a dar pleno sentido ao nome do seu país – a China deve voltar a ser o Império Central com Pequim como centro do sistema global. Para Xi isso significa consolidar um Grande Estado forte, com ele como líder incontestado.

Do Norte de Inglaterra à Casa Branca de Trump

Por fim, temos as memórias de Fiona Hill, There Is Nothing For You Here: Finding Opportunity in the Twenty-First Century, a história de uma britânica, a primeira da sua família de trabalhadores pobres do Norte desindustrializado de Inglaterra a ir para universidade, que partiu para os EUA em busca de oportunidades, se naturalizou, tornando-se formalmente a principal conselheira sobre a Rússia de Donald Trump. A experiência não foi positiva e a própria Hill reconhece que não devia ter esperado outra coisa. Devemos sempre lembrar-nos que a escrita das memórias de um ator político são a continuação da política por outros meios. Fiona Hill tem muitas contas que acertar com Trump. O livro ajuda a perceber o caos que era trabalhar no interior de uma presidência transformada num reality show, em que só importava a imagem televisiva, com a Fox Newsa passar permanentemente em múltiplos televisores por toda a Casa Branca. Nesse contexto o facto de Hill ser fluente em russo e ter publicado uma das melhores biografias de Putin era irrelevante, ao contrário do calçado que usava. Hill também deixa claro que Trump admirava Putin como um líder forte que não prestava contas a ninguém. Lendo Hill é fácil imaginar o desastre que seria termos Trump na Casa Branca a lidar com uma invasão russa da Ucrânia.