Já não é visível na paisagem timorense a vasta desolação barbaramente infligida pelas tropas de ocupação indonésia em retirada, na sequência da divulgação do resultado do referendo — “consulta popular” — realizado em Agosto de 1999. Até os fios de cobre das instalações elétricas das casas arrasadas foram roubados. O apoio da comunidade internacional, protagonizado pelo então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, foi imediato. Enquanto se procurava pacificar o país e socorrer os milhares de refugiados, os guerrilheiros da resistência vitoriosa souberam assumir uma contenção heroica abstendo-se de intervenções armadas para não perturbar os esforços pacificadores nem comprometer o processo de autodeterminação.

Sob a Administração Transitória das Nações Unidas (UNTAET), foi criada uma rede de administração territorial provisória e concedida máxima prioridade à criação dos instrumentos de governo indispensáveis ao novo Estado soberano. Com efeito, as divergências que entretanto emergiram no seio do CNRT — a ampla frente patriótica presidida por Xanana Gusmão que conduziu a campanha vitoriosa no referendo de autodeterminação — prejudicaram o protagonismo a que naturalmente aspirava e tornaram mais urgente a adopção de outras fórmulas de legitimação democrática. Assim, foi acelerada a eleição de uma Assembleia Constituinte que, depois de aprovar a nova Constituição, se transformaria no Parlamento Nacional. Realizaram-se as eleições presidenciais para escolher o Chefe de Estado, de que saiu vencedor Xanana Gusmão. E formou-se o Primeiro Governo Constitucional chefiado por Mari Alkatiri, dirigente da FRETILIN, partido maioritário do novo Parlamento.

Em 20 maio de 2002, os primeiros governantes eleitos pelos próprios timorenses enfrentaram um tremendo desafio: consolidar um Estado independente encravado entre as duas mais poderosas potências vizinhas — a Indonésia e a Austrália — e inventar uma democracia moderna num território vazio de instituições ou mínimas competências administrativas e sem quaisquer tradições de representação democrática porque nem o colonizador as cultivou nem a ocupação militar as consentia. São bem conhecidas as atribulações e sobressaltos que os timorenses enfrentaram ao longo dos últimos 20 anos. Logo em 2006, um episódio de confrontos étnicos entre Lorosae’s e Loromunos — povos do Leste e do Oeste da ilha — que virou forças armadas contra forças policiais, civis em fuga e milhares de deslocados. O atentado contra a vida do então Presidente da República, Ramos Horta, no princípio de 2008, que o deixou gravemente ferido. Uma crise social endémica com elevados níveis  de pobreza que ainda persistem. Uma instabilidade governativa recorrente bem patente no número de governos constitucionais que se sucederam – sete governos com diferentes protagonistas e maiorias parlamentares diversas, configurando múltiplas constelações políticas. Uma instabilidade impulsionada pela sucessão de quatro Presidentes que nunca renovaram o mandato, com perfis e ambições muito diversas. Só em 31 de Dezembro de 2012 a ONU iria encerrar a sua última missão em Timor-Leste.

Apesar de todas as dificuldades e contratempos, em harmonia com a vontade popular expressa em eleições regulares, sempre no escrupuloso respeito pela Lei Fundamental — consoante as opiniões controversas dos titulares de cada órgão de soberania… —, profundas transformações desenharam uma nova paisagem social e progressos notáveis marcaram, contra as previsões dos mais céticos, a construção desta democracia emergente. Em 2016, Timor ousou desafiar o poderoso vizinho australiano que recusava rever a delimitação da fronteira marítima pelo qual a Indonésia, na sequência da ocupação militar da antiga colónia portuguesa, em 1975,  entregara parte substancial dos recursos marítimos à Austrália… como recompensa por ter sido o único Estado do Mundo a reconhecer as pretensões do invasor. No dia 6 de março de 2018, perante o secretário-geral da ONU, em Nova Iorque, seria assinado o novo Tratado das fronteiras marítimas entre os dois países. Um triunfo notável para o povo de Timor, para o Governo de então, de Mari Alkatiri, e para a delegação timorense chefiada por Xanana Gusmão que conduziu todas as negociações. Foi o desfecho simbólico de uma narrativa heroica de resistência e insubmissão.

Os objetivos do enunciado constitucional do conteúdo da “política geral do país” são consensuais: o desenvolvimento sustentável, a educação, a justiça e a administração pública que carecem de adequada formação e reforma contínua. Como dissemos antes, são pilares fundamentais da democracia timorense, construídos a partir do nada, sem experiência nem cultura institucional próprias, que carecem da premente qualificação dos seus agentes e da implantação de sistemas adequados de inspeção e controlo que garantam a satisfação dos cidadãos e o respeito pelos seus direitos fundamentais, num quadro legal claro e coerente capaz de dar resposta às legítimas expectativas de uma sociedade cada vez mais exigente.

Para um segundo mandato — não consecutivo! — Ramos Horta foi agora, a 19 de Abril de 2022, eleito como 5º Presidente da República. Tendo em conta a sua profunda sintonia com os sentimentos do povo timorense, a sua longa experiência internacional na frente diplomática durante os longos anos da anexação indonésia, a sua cultura de diálogo e tolerância certificada pelo Prémio Nobel da Paz, as responsabilidades governamentais que já assumiu e o exercício anterior como Presidente que sobreviveu a uma tentativa de assassínio, confiamos que José Ramos Horta conseguirá abrir um novo ciclo na consolidação do Estado independente e da sociedade livre e solidária que alimentou os sonhos da indefetível resistência do povo timorense.

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