O sucesso é sempre um engano provisório—até aquele que exista no facto singelo de ter escrito este texto e ele estar neste momento a ser lido. O tempo em que a publicação destas frases encontrou retorno em quem as leia é algo tão rápido que, na história de todas as coisas, não passa de fracção ínfima, menos do que um piscar de olhos. Até a pessoa que consegue, durante grande parte da sua vida, segurar a atenção daqueles que recebem o que ela faz, tornar-se-á rapidamente irrelevante. É nesse sentido que gosto de repetir a frase que diz que a pessoa esquecida já está mais no futuro do que aquela que ainda é recordada. O Universo é uma máquina imparável de esquecimento.

Ganhar seja o que for tem muito de paliativo. Qualquer primeiro prémio é um prémio de consolação porque, mais do que ninguém, é o vencedor o maior derrotado no facto de o Universo ser uma máquina imparável de esquecimento. Ao vencedor é sugerido que não nos esquecemos dele quando é precisamente dentro do vencedor que o esquecimento maior dano provoca. Quem nunca ganhou, nunca foi poupado do sofrimento que é a sua real insignificância. Já quem se habitua a ganhar, habitua-se a tomar a vitória como o seu significado natural. Pobre coitado. A caminho de uma grande desilusão vai ele…

No livro Nothing To Be Frightened Of, o escritor britânico Julian Barnes considerava o seguinte dilema, citando Arthur Koestler: “É melhor um escritor ser esquecido antes de morrer ou morrer antes de ser esquecido?” Discorrendo nessa mesma direcção, concluía que “memória é identidade”. O que mais autenticamente podemos ser é o que nos lembramos que fomos. Mas novamente esbarramos na frieza de o tempo não parar: por muito que tenhamos sido, lá à frente é quase certo que pouco ou nada seremos. Onde terminar a capacidade de sermos lembrados, não só acaba a evocação da nossa vida como, muito provavelmente, a nossa vida termina muito antes ainda de poder continuar a ser evocada. Todas as homenagens póstumas, por fortíssimas que sejam, não têm o dom da ressurreição.

O paradoxo que abraço é, portanto, este: do mesmo modo que ser lembrado não me tirará da sepultura quando já tiver morrido, sepultar-me já enquanto vivo deve treinar-me na consciência de que a vida é também o que acontece além do sucesso de vivermos dentro dos outros. Os que treinam viver esquecidos pelos outros encontram-se já com o maior tempo de todos, que é aquele em que ninguém dos que conhecemos andará mais por aqui. Estas reflexões, mais do que apelarem a que nos desliguemos uns dos outros em vida, apelam a que haja vida até quando desligados andamos uns dos outros. Moral da história enquanto aqui andarmos: aproveita a vitória de existires nos outros; mas não penses que morres pelo contrário acontecer.

Todas as pessoas inspiradoras treinavam-se em ser esquecidas ainda em vida. Iam para o deserto, desapareciam, sumiam da vista dos outros. Há uma frase que o meu amigo João Coração entoa na sua canção, “Muda Que Muda”, que me acompanha como um slogan bíblico: “Saber que faltámos àquele grande acontecimento”. Lidar com não fazermos parte do que supostamente melhor acontece é de uma grandeza de espírito acessível apenas a alguns. Naturalmente, gostava de integrar esse número. Imaginem: tudo o que sucede é fantástico e nada de nós. Não fizemos parte, não aparecemos, não existimos. Não existimos? Aí é que está: existimos. Simplesmente a nossa existência não dependeu de integrarmos esse grande triunfo. Vivemos destriunfados.

Não é, por isso, por acaso que o Cristianismo põe numa grande derrota o momento decisivo do Universo. Na cruz está a reversão necessária de todas as coisas e o caminho estreitinho mas calcorreável para uma solução inteira. Claro que não podemos falar da derrota do Calvário sem mencionar a vitória do sepulcro esvaziado. Mas, ao dirigirmos a nossa atenção para esse momento prévio de bancarrota cósmica, em que Deus perde, compreendemos que a cura para o mais implacável esquecimento que a morte é implica vivermo-lo. Deus tem uma predilecção em recordar-se dos que se perderam das vitórias do mundo.

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