A instrumentalização política do preconceito já fazia parte do reportório do activismo. É de estranhar que a instrumentalização da linguagem também faça? Já anteriormente referi este assunto. O artigo de Clara Não, as implicações do masculino genérico, evidencia o ponto que já se atingiu.

A História do mundo não só não foi apenas contada por Homens, como também foi escrita e transmitida por Mulheres – majestosas, iluminadas e extraordinárias – que muito contribuíram para o futuro da humanidade. Para mim, a mente mais esclarecida que tive o privilégio de conhecer é a de Hannah Arendt. Sem o registo da história não a teria conhecido. Nem, entre outras, Ada Lovelace, Apama, Cleópatra VII, Elizabeth Blackwell, Émilie du Châtelet, Emmanuelle Charpentier, Fulvia, Gertrude Bell, Golda Meir, Hedy Lamarr, Helen Keller, Irena Sendler, Jane Addams, Jane Austen, Jennifer Doudna, Jocelyn Bell Burnell, Katherine Switzer, Mary Wollstonecraft, Ruth Bader Ginsburg, Virginia Trimble, Zenóbia, e/ou, mais recentemente, redescobrir a interessantíssima vida de Isabel II.

A referência à Grécia Antiga não ser o berço da democracia é de bradar aos céus. Apesar de fazer uma referência ao iluminismo, Clara Não desconhece a importância das ideias do iluminismo para as diferenças entre a democracia dos nossos dias e a que caracterizava a Antiguidade. Sim, na Grécia Antiga havia democracia. Esperar que fosse nos mesmos moldes da que vivenciamos hoje ultrapassa qualquer compreensão. Mas esse é um dos propósitos do “activismo” através do revisionismo da história.

Tenho a certeza de que Clara Não desconhece o nome da primeira mulher eleita para o Congresso norte-americano: Jeannette Rankin, em 1917. Depois dela já mais de 400 mulheres serviram como governadoras, representantes e senadoras, incluindo de Estados que não faziam parte dos EUA, em 1917. E os números continuam a aumentar. Actualmente, a Vice-presidente dos EUA é Kamala D. Harris.

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Mas o problema é a quantidade. A substância ou a qualidade é irrelevante. Segundo Clara Não, a história (dos homens) encarregou-se de apagar as mulheres. Portanto, a questão é, ou parece ser, a defesa do domínio das mulheres. Até porque não há qualquer registo de alguma vez algum homem ter defendido as mulheres, nem de alguma vez qualquer mulher ter defendido os homens. Enfim. Em vez de cooperação assiste-se à promoção da competição, como se uma sociedade mais justa e equitativa exigisse divisão em detrimento de colaboração e de reconhecimento mútuo.

Mas vamos ao português. Comecemos por conceitos e significados. Não é possível considerar que o significado de género (dimensão social) é integralmente idêntico ao de sexo (dimensão biológica). Para além disso, o português não se limita ao genérico masculino. Também é enriquecido pelo genérico feminino. E é impossível ignorar o esplendor dos artigos. Aliás, é necessário relembrar que os artigos são instrumentais para a determinação do género. Outra ideia peregrina é pensar que as palavras terminadas em “e” são neutras. E que dizer dos epicenos e sobrecomuns? A “vítima”, a “testemunha”, a “criança”, a “pessoa”, etc., não obstante serem palavras representativas do género feminino podem ser utilizadas independentemente do sexo (o meu filho/a minha filha é uma criança). Obviamente, o contrário também é verificável.

Penso que a inclusividade não se atinge pelo sacrificar da abrangência da linguagem. Antes pelo contrário. É precisamente a abrangência linguística que possibilita a inclusão. Para incluir, não é necessário desconstruir o género linguístico, literário, musical, etc., que nada tem a ver com sexo. Fragmentar a linguagem só vai potenciar a exclusão e a divisão, e, simultaneamente, incrementar os identitarismos, pois só farão parte do “grupo” aqueles que usarem a linguagem que identifica esse mesmo grupo.

Houve um tempo em que a sociedade foi matriarcal. Depois passou a patriarcal. Actualmente, tende para ser mais equitativa. Não obstante, ainda há diferenças e distinções a ultrapassar e muito a fazer para resolver as disparidades. Infelizmente, o fragmentar da linguagem não ajudará nada. Apenas o reconhecimento do mérito (em vez de medidas artificiais como as quotas e a discriminação positiva) sustentará uma mudança duradora para o efeito. Curiosamente, em 1536, Fernão de Oliveira, manifestou-se contra a generalização do genérico masculino. Contudo, não visava fragmentar a linguagem, mas possibilitar maior definição. Clara Não saberá quem foi Fernão de Oliveira?

No artigo de Clara Não há algo mais do que a instrumentalização linguística do género. Defendo sem reservas a liberdade de expressão. Como tal, podem continuar a expressar as ideias que bem entenderem, mesmo as que significam regressão e sectarismo. Mas as inseguranças persistirão. Lindo / linda / linde? Pelos vistos, em breve teremos inteligêncio / inteligência / inteligêncie.

É curiosa a referência ao futebol e ao desporto. A Federação Portuguesa de Futebol tem 20 direcções, 9 das quais dirigidas por mulheres. E que dizer das injustiças que as mulheres estão a sofrer no desporto devido aos transgéneros? Basta exemplificar com o exemplo de Riley Gaines (e de Lia Thomas). Não tenho nada contra as opções de vida em função do género independentemente do sexo. Todavia, se um homem sente que é uma mulher e opta por viver em função do que sente, essa opção não elimina a sua capacidade física. Aparentemente, algumas vantagens adicionais face às mulheres são aceitáveis.

O primordial é a nova babel – uma linguagem neutra. Temo que resultado seja o oposto do pretendido: uma vocabulária para a exclusona. Ou será antes ume vocabulárie para e exclusone?

Felizmente, há muitas mulheres que sabem que não será pela fragmentação da linguagem que vão ser mudança. E não tenho dúvida de que contribuirão para um mundo melhor.