“Volunturismo” é um conceito relativamente recente, que designa um fenómeno no qual um voluntário, na sua inerente vontade de partir numa missão de ajudar comunidades desfavorecidas sobretudo em países em desenvolvimento, acaba por tirar partido da viagem para se aventurar e conhecer um destino exótico. Tem registado uma crescente importância no setor do turismo e a progressiva participação por parte dos jovens, representando um valor superior a dois biliões de dólares anuais.

Alguns fatores derivados da globalização, tais como a diminuição de barreiras à mobilidade internacional e o maior poder de aquisição das classes médias a nível mundial são justificativos desta “moda” que tem vindo a demonstrar a sua continuidade.

A nós, jovens, motiva-nos o desejo de experimentar viagens incomuns, de nos autodesenvolvermos, de fazer a diferença e de ajudar o necessitado outro. São as melhores das intenções, certamente, mas o volunturismo não deixa de ser, apesar de tudo, uma atividade breve e momentânea, sem grandes requisitos a nível de conhecimento e que proporciona momentos positivos mas fugazes, tanto para as comunidades pobres como para os voluntários.

Porém, não vejo quem se questione sobre as “segundas” intenções desta indústria, ofuscadas pelas ações benignas que sobressaem à vista de todos. Há uma retórica discursiva, que utiliza frases simples mas impactantes como “faz a diferença”, “ajuda o necessitado outro” ou “aventura-te num novo destino” e que são parte integrante da abordagem (que se tem vindo a revelar, de facto, eficaz) dirigida aos jovens, que assumem indiretamente o papel de uma audiência passiva e consumidora perante estes apelos e ofertas vantajosas .

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A ideologia neoliberal está intimamente ligada a esta atividade. O volunturismo requer desigualdade para que alguns possam beneficiar dos efeitos do mercado capitalista. Há uma comodidade na relação de compra e venda deste “produto”, visto que tanto as companhias irão lucrar com a venda da experiência como o voluntário irá viver uma nova aventura única e enriquecedora para o seu currículo. Recrutar jovens privilegiados, de classe média-alta, com recurso a um discurso simples e sedutor de bondade, quando os objetivos pessoais e o narcisismo são prevalentes na nossa sociedade, devia ser alvo de maior reflexão e até escrutínio. No instagram, no facebook, a exibição de fotografias paisagísticas ou no meio de crianças pobres transparece isso mesmo: a vontade de exibir a experiência, não o empenho cívico posto em prática.

Hoje em dia, o mercado de trabalho dita uma concorrência tal que os indivíduos partem cada vez mais numa busca incessante por fatores diferenciadores perante os empregadores. Assim, um currículo pessoal pode ser visto como um documento identificativo utilizado para “autopromoção”, onde um atestado de tempo passado com pessoas pobres em países em desenvolvimento pode fazer a diferença no futuro. A participação deixou de ser genuína, passou a ser um atalho para alcançar a valorização da carreira profissional.

Quanto ao impacto direto nas comunidades locais, uma das consequências negativas prende-se com o uso de mão-de-obra voluntária em vez de local. Não só o trabalho pode ser insatisfatório, devido à falta de qualificação dos voluntários, como cria um ciclo económico negativo de dependência que resulta de o trabalho promovido ser gratuito. O reforço e agravamento do paradigma de dominância dos países desenvolvidos ocidentais (os “colonizadores”) sobre os outros é algo igualmente negativo. Acentua ainda mais a ideia que os países pobres necessitam do auxílio dos influentes ocidentais para se desenvolverem. O neoliberalismo privilegia o indivíduo ao invés do coletivo, e sobretudo transforma as pessoas em meros consumidores e não atores políticos incumbidos de tarefas cívicas.

Do outro lado, há também argumentos que abonam a favor do volunturismo. É visto como uma ferramenta para o desenvolvimento internacional por fomentar a relação dos voluntários/turistas com as comunidades locais. Tal relação vai providenciar condições para uma maior troca de ideias e consciencialização de melhorias na condição de vida das comunidades locais, o que certamente irá promover mudanças sociais a médio e longo-prazo. Para além disto, o volunturismo partilha de muitos dos benefícios do turismo convencional: o lucro proveniente do comércio criado, o crescimento da indústria artesanal, a consciência da importância da proteção do património nacional, a melhoria dos níveis de literacia e o aumento da receita para o governo do país em causa.

Já do ponto de vista dos jovens, os sociólogos apontam por exemplo que estes, ao participarem em viagens de curta duração, são os que acabam por ser posteriormente mais politicamente ativos, ter mais envolvência tanto em voluntariado formal como informal, e por fim fazer mais doações para a caridade. Isto para além do crescimento pessoal que uma experiência destas implica: o efeito positivo na vida espiritual das pessoas, a sensibilização que ganham para com outras culturas, o desenvolvimento do seu civismo e a prática de ações em prol da justiça social.

Em resumo, e fazendo face às críticas de neoliberalismo, é necessário apelar também à premissa básica de que as pessoas são livres de gastar o seu dinheiro da forma que melhor entenderem, e a vontade dos jovens em ajudar devia ser acima de tudo apreciada. Se estas viagens não acrescentassem valor nenhum às comunidades locais ou aos jovens, a indústria do volunturismo não seria certamente tão próspera. O que teria feito o voluntário com o mesmo dinheiro se não o tivesse gasto na viagem, numa atividade enriquecedora? Uma contribuição financeira direta para a comunidade seria mais útil, é verdade, mas é muito improvável que essa doação seja feita sem a precedente visita do voluntário. Por estas razões deve ser enaltecida também a benevolência dos jovens e os benefícios causados pelo turismo.

A meu ver, é precisamente neste ponto que se deve pegar ao olhar para este assunto. Enquanto seres humanos e cidadãos globais, não apenas habitantes do nosso país, beneficiamos de uma imensidão de possibilidades e consequências positivas. É certo que estamos divididos em subpopulações regidas por lideranças próprias, mas, dentro da nossa pertença comum, a cidadania global serve para promover e facilitar certos tipos de movimentos e interações benéficas para as pessoas. É dentro desta ideia que considero que toda a interação entre voluntários e comunidades de países em desenvolvimento deve ser prezada, seja de curto ou longo prazo. Independentemente de um possível agravamento da influência ocidental nesses locais, as realidades vividas são de tanta pobreza e carência social que o contacto com externos, pessoas bem-intencionadas, é sempre positivo.

Assim, na “raiz” do volunturismo imperam, a meu ver, intenções louváveis e que justificam, desde logo, a sua existência. O problema é o de se tornar um negócio. Um “produto” acessível quase apenas às classes mais altas, pelos preços praticados, o que me parece injusto. Tantos jovens de classes mais baixas terão certamente a mesma motivação, mas nunca poderão contribuir pelas restrições sociais que esta atividade implica. É incoerente e desajustado que um fenómeno com esta índole cívica esteja tão ligado ao lucro e à ganância.

Certas medidas subtis podem ajudar a reverter o rumo desta indústria e até a torná-la mais acessível a todos. Uma delas passa por promover mais o voluntariado a nível nacional e até local. As empresas e os empregadores, no âmbito da valorização do currículo, deviam louvar mais quem faça voluntariado no seu bairro do que quem paga quantias massivas para o mesmo propósito, mas noutro país. O objetivo passa assim por descredibilizar o voluntariado internacional, dando mais foco às iniciativas locais. Os governos devem, nesse sentido, criar iniciativas e oportunidades mais atrativas de voluntariado. E, para quem queira apostar na ação internacional, deve ser encorajado a participar através de operadoras nos países de acolhimento, não de intermediários que pretendam apenas lucrar com a ingenuidade dos jovens. Através destas, é possível adquirir exatamente a mesma experiência por um preço consideravelmente mais baixo. Ganhariam vários jovens e perderiam as companhias privadas direcionadas apenas para o lucro.