Em agosto do ano passado, saiu uma notícia na revista Delas com o seguinte título: «Um terço admite ter pedido comida que não ingeriu apenas para a publicar nas redes». Fiquei intrigado com esta afirmação e decidi abrir o artigo jornalístico para tentar compreender melhor qual o assunto e os dados que eram reportados a seu respeito. A leitura causou-me alguma consternação e uma grande desilusão com os comportamentos sociais que irei descrever.

Por que razão recuperar esta notícia agora? Porque no contexto de guerra e de elevada inflação que hoje enfrentamos, no qual o preço dos bens alimentares é dos que mais se eleva, o desaproveitamento é eticamente criminoso. Sabemos que o mundo e as suas dinâmicas funcionam em lógicas desigualitárias, onde as mais intensas são, talvez, as económicas, na forma de injustiças no acesso ao rendimento e a bens de primeira necessidade. Vivemos numa realidade já conhecida por todas/os em que algumas pessoas falecem perante a fome, a sede e as doenças e outras regozijam-se com as suas riquezas que, ao nível empresarial, conseguem superar Produtos Internos Brutos de países inteiros. Por outro lado, estes fenómenos, se antes já não se encontravam velados do conhecimento do apelidado povo, com reis e rainhas, cleros e nobres a ostentarem os seus poderes, hoje encontram-se disseminados em vários setores das sociedades e chegam ao digital, tendo as redes sociais um papel deveras relevante na emergência, afirmação e consolidação de tendências e padrões em inúmeras dimensões das nossas vidas.

Em alguns casos, estas aplicações revelam-se proficientes no combate por melhores condições humanas, como sejam a criação e/ou a promoção de projetos, por entidades singulares ou coletivas, que valorizam a saúde mental, a educação, a diversidade e a inclusão de género e sexuais, a cultura, o desporto e outras esferas que nos dizem respeito enquanto indivíduos que se relacionam em comunidades. Algumas destas iniciativas ficam-se pelo virtual, mas muitas conseguem recolher fundos, produzir materiais e organizar eventos que funcionam como impulsionadores daquelas e, naturalmente, que servem à identificação e ao reconhecimento de problemas concretos.

Todavia, as redes sociais digitais, e mesmo a Internet, apresentam um outro lado, também vastamente conhecido e estudado, que fácil e rapidamente se torna desagradável, obscuro, criticável e até mesmo censurável: esse lado é o do exibicionismo. Trata-se de uma faceta em que muitas/os de nós já não queremos mostrar apenas uma experiência que tivemos e que nos faz sentir bem ao partilhá-la com terceiros, mas sim também revelar à outra e ao outro que o espaço onde estivemos e as vivências de que gozámos são, como diria um amigo meu, “únicas, especiais e diferentes” e, portanto, melhores e irreproduzíveis. Um universo, em suma, para onde são transportadas as referidas desigualdades do mundo físico e onde ocorre um congelamento destas em referenciais quase exclusivos de beleza corporal, de prática de exercício físico, de leituras, de audições musicais, de lugares a visitar ou de tipos de alimentação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ora, é com este último exemplo e com o prisma mais reprovável dos poderes das redes sociais e das nossas posturas e comportamentos naquelas que recupero a notícia da Delas. Nesta, são citados números preocupantes sobre a relação entre a compra de alimentos e as motivações para esse ato (números estes que devido a efeitos de vergonha social podem muito bem estar subestimados): um estudo encomendado pela empresa alimentar norte-americana California Figs revela que 40% das/os inquiridas/os confessaram ter partilhado imagens de alimentos ou bebidas que elas/es próprias/os não consumiram. 19% admitem, aliás, que, numa primeira fase, não tinham sequer a intenção de ingerir o(s) alimento(s) adquirido(s). Refere-se ainda que “entre os alimentos e receitas mais identificados pelos indivíduos da amostra estão as fotografias de pizza (41%), hambúrgueres (37%) e cocktails (30%)”, o que é facilmente depreensível dada a sua presença nas alimentações quotidianas de muitas pessoas ou em épocas onde as festividades abundam, como o verão.

Estas cifras são, a meu ver, alarmantes caso queiramos ter consciência de como operam os processos de influência social e de comportamento de grupo. Não é repreensível publicar fotografias de comidas que, feitas por nós ou num espaço de restauração que apreciamos, nos animam e criam uma sensação de bem-estar, visto que a satisfação corporal é também uma forma de satisfação pessoal. A própria notícia que tenho vindo a mencionar, numa passagem aparentemente mais otimista, afirma que 53% das/os entrevistadas/os revelaram que se aventuraram “a fazer uma nova receita depois de a ter visto nas timelines”. Contudo, tornam-se profundamente negativas estas exposições de alimentos e comidas quando, existindo um apelo cada vez mais notório para a erradicação da pobreza extrema – certamente incrementada pela situação bélica que o continente europeu hoje protagoniza – elas se constituem a principal causa de determinados indivíduos retirarem a possibilidade a outros de responderem às suas privações mais prementes.

Clay Calvert, investigador de comunicação de massas estadunidense, denominou voyeurismo mediado ao “consumo de informações e imagens reveladoras sobre a vida aparentemente real e desprotegida dos outros, geralmente visando o entretenimento, mas frequentemente à custa da privacidade e da interação verbal, através dos meios de comunicação de massas e da Internet”. É precisamente isto que acontece quando, à semelhança de outras coisas, fazemos nas redes sociais aquilo que a notícia da Delas descreve. Contrariar estas tendências não é “apenas” – e só isso é muito – pelejar contra o desperdício alimentar: é também rejeitar o desperdício de informação que vinga nestes meios, ainda que esta informação esteja muitas vezes mascarada de supostos momentos de vidas privadas. Estar atenta/o é um primeiro passo importante que quis registar neste texto.