Na semana passada, houve uma série de audições na Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, com o objectivo de se perceber afinal o que aconteceu em Setúbal com a recepção de refugiados ucranianos por russos próximos do Kremlin.

Em primeiro lugar, foi ouvido Pavlo Sadokha, Presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal e um dos denunciantes do caso. O que é que ele disse? Pouco importa. As declarações a reter são as de Joana Sá Pereira, deputada do PS, que não usou a ocasião para fazer perguntas, mas sim para dar esclarecimentos:

Julgo que o nosso país tem dado uma resposta bastante satisfatória. (…) O nosso país é mesmo um exemplo de integração e a forma como respondeu eficazmente, agilmente, desburocratizando procedimentos, foi essencial para que este processo corresse da mais forma mais tranquila e rápida possível.

Estamos aqui hoje porque houve circunstâncias, que são públicas, em que um desses processos não correu dessa forma tranquila e bem conduzida como se queria esse processo.

A seguir, foi a vez de Abraão Veloso, Presidente da Ucrânia-Portugal-Europa-Associação Centro Social e Cultural Luso-Ucraniano. Que também não deixou nenhuma resposta para a posteridade. Já a deputada Sá Pereira aproveitou para notificar que:

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Estamos aqui porque alguma coisa correu menos bem.

Depois, a audição a Sónia Pereira, Alta-Comissária para as Migrações, foi uma oportunidade para Pedro Delgado Alves, do PS, explicar que:

Ficou claro que, globalmente, o processo de acolhimento tem corrido, (…) generalizadamente bem. O balanço que temos é esse. Sem prejuízo de haver situações, algumas que geram bastante preocupação.

Mais tarde, foi recebida a Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares. Ana Catarina Mendes aproveitou a presença na Comissão para declarar que:

Setúbal é um caso isolado.”

As coisas têm, de uma forma geral, corrido bastante bem.

Não sei se Portugal será enlameado, porque eu julgo que este é, como eu disse, um caso isolado.

Ao dia de hoje, o único caso que está – e daquilo que é o conhecimento que temos tido do terreno todo – sim, neste momento só temos identificado como caso isolado, Setúbal.

Finalmente, foi ouvido o Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna. Paulo Vizeu Pinheiro, apesar de invocar 27 vezes os segredos de Estado e de justiça para não responder às questões que lhe foram postas, arranjou maneira de os contornar para poder afirmar:

Não creio que haja extrapolação de Setúbal para o país. Estamos a falar do Acolhimento de milhares e milhares de refugiados, que tem corrido de forma globalmente exemplar.

Até tive ocasião, numa reunião do formato da União Europeia, com responsáveis máximos da segurança interna, dar conta que em Portugal, que estamos no extremo oposto da Europa continental, que estávamos a receber até bastante mais refugiados do que alguns outros países da Europa que estão mais próximos da Ucrânia.

O caso de Setúbal – eu peço atenção, mas é a minha percepção – é um caso bastante singular. Pelo que me é dado a conhecer, também pelo que foi publicitado, mas daquilo que é a informação que tenho dentro do sistema, também me parece ser um caso que deve ser encarado não como a generalidade na recepção dos refugiados. (…) Não faria uma generalização de Setúbal.

Afinal, dentro do sistema há algumas informações que se podem partilhar. Percebe-se. É que não se trata de um segredo de estado, nem de um segredo de justiça. É um segredo de polichinelo: toda a gente sabe que o Governo tem sido excelente. Pelos vistos, numa parte da audição, Paulo Vizeu Pinheiro não respondeu enquanto responsável pela Segurança Interna, mas sim como responsável pela Segurança do PS. Durante o tempo quase todo, Vizeu Pinheiro foi um porteiro a impedir o acesso a informação; mas houve ali um momento em que Vizeu Pinheiro foi uma porteira a contar mexericos a toda a gente.

A mensagem que o PS quer passar é que Portugal tem sido impecável a receber refugiados ucranianos. Houve apenas um caso, em Setúbal, em que aquilo correu mal. Aliás, nem correu mal, correu apenas “menos bem”. Ou seja, correu bem, mas um bocadinho menos bem que os outros casos. Que têm corrido bastante bem. Portanto, menos bem que bastante bem é ainda aceitavelmente bem. Não sou especialista em utilização de perífrases para obscurecimento de mensagem, mas parece-me que é isto que o PS quer dizer. Tudo estupendo, Setúbal um bocadinho menos que estupendo.

O PS não está interessado em perceber o que correu mal, nem a extensão do que correu mal. Quer apenas sublinhar que só aconteceu isto de mal. Uma única coisa. Acha que, se falar muito sobre todos os casos em que ucranianos não foram recebidos por russos pró-Putin, consegue abafar Setúbal. No fundo, diluí-lo em água. Fica só uma leve sugestão, que não tem qualquer impacto. Uma espécie de homeopatia.

Há uma altura, na audição ao Presidente da Ucrânia – Portugal – Europa Associação Centro Social e Cultural Luso-Ucraniano, em que se dá a bizarria de vermos os deputados do Chega e do Bloco de Esquerda de acordo quanto à inutilidade de, em audições sobre o que se passou em Setúbal, estarem a falar com um senhor que ajuda a receber refugiados, mas em Braga. Ambos dispensam fazer perguntas. Surpreendentemente, essa audição foi requerida pelo PS, o mesmo partido que optou por não deixar que convocassem o Presidente da CM de Setúbal.

Eu conheço esta técnica, atenção. No outro dia o meu filho partiu um copo e, antes que o pudesse repreender, ele abriu a porta do armário e começou a apontar: “O Kiko não partiu este. Nem aquele. Também não partiu este. Nem partiu este”. Não o deixei continuar, mandei-o buscar betadine para desinfetar o corte no meu pé. Mas, para ser justo, tenho de admitir que o caco não veio de nenhum dos copos que ele não partiu.

É como se os russos quisessem desvalorizar a invasão da Ucrânia dizendo que ao menos não invadiram a Polónia, nem a Roménia, nem a Finlândia, nem a Moldávia, nem a Suécia, nem a Turquia, nem a Hungria, nem a Bulgária, nem a Geórgia, nem o Azerbaijão, nem a Bielorrússia, nem a Grécia, nem a Estónia, nem o Cazaquistão, nem a Letónia, nem a Lituânia, nem a Mongólia, nem a Noruega.

Tirando um caso singular, as relações de vizinhança têm corrido muito bem. Que a invasão e destruição da Ucrânia não apaguem tudo o que de bom a Rússia tem feito com os países que não ataca.