“Recomendo a leitura do Programa do Governo, que é muito claro quanto às provas que devem ser mantidas ou alteradas e não consta do Programa de Governo a eliminação das provas a que se referiu”. Assim respondeu António Costa, no seu primeiro debate quinzenal como primeiro-ministro, à pergunta de Paulo Portas sobre os exames do 6.º e do 9.º ano. À data, PCP e BE não gostaram da resposta e recusaram dar a discussão por encerrada. Os resultados da sua insistência estão à vista: o ministro da educação anunciou um novo modelo de avaliação externa que os satisfaz, contrariando António Costa, extinguindo o exame de inglês no 9.º ano (parceria com Universidade de Cambridge) e o exame do 6.º ano (para além do já extinto exame do 4.º) e instituindo provas de aferição nos 2.º, 5.º e 8.º anos.
Tudo isto foi anunciado – num comunicado de duas páginas e meia – mas não foi explicado. E após um processo que foi tudo excepto normal, com exames revogados no parlamento, contradições do primeiro-ministro e uma reforma desta envergadura elaborada em poucos dias, as explicações exigem-se. Porquê provas de aferição em vez de exames? Porquê escolher anos intermédios em vez dos de final do ciclo, contrariando a prática desde 2001? O que justifica que se ponha em causa com década e meia de recolha de informação sobre desempenhos escolares nos 4.º e 6.º anos, prejudicando a prestação de contas em todo o sistema? Porquê a pressa de alterar tudo subitamente, sem antes avaliar os efeitos do modelo que vigorava? E porquê implementar tudo agora, em vez de no próximo ano lectivo?
A reforma é, de facto, surpreendente – pelas opções e pela dimensão, pois arrasa com quase tudo o que existia. Mas o que é ainda mais espantoso é que o ministro da educação não considere necessário explicar-se quando altera o modelo de avaliação de alto a baixo. Sim, existia consenso quanto à necessidade de melhorar aspectos desse modelo. Mas existiam inúmeras opções para alcançar esses objectivos de melhoria – por exemplo, as sugeridas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que foram completamente ignoradas pelo governo. O ministro julgou as suas escolhas e o seu modelo melhores do que as alternativas – e está no seu direito. Contudo, o mínimo exigível é que esclareça o país sobre os porquês. Até porque esta reforma tem problemas muito sérios, dos quais vale a pena destacar quatro.
Primeiro problema: a política pesou mais do que a avaliação dos factos. No parlamento, a revogação dos exames foi proposta (por PCP e BE) e aprovada no dia seguinte à tomada de posse do governo, obedecendo apenas a critérios políticos. No governo, a velocidade a que tudo se desencadeou provou que era indiferente a avaliação do modelo que vigorava. Entretanto, as garantias dadas por António Costa viram-se desrespeitadas, para satisfação de PCP e BE. Do princípio ao fim deste processo, a política falou mais alto e sobrepôs-se aos factos e aos interesses da escola pública.
Isso teve efeitos concretos. Durante semanas, ouviram-se apelos à supressão dos exames justificados no pressuposto de que estes eram eliminatórios e potenciavam a reprovação – e isso era afirmado explicitamente por PCP e BE, e foi reiterado por PS nas várias vezes que qualificou o exame do 4.º ano como “salazarista”, associando-o ao antigo exame da quarta classe. Acontece que os factos desmentem esse pressuposto, como demonstra o relatório técnico publicado pelo CNE: os exames são irrelevantes para a reprovação dos alunos. Apenas 0,3 a 1,9% dos alunos com nota interna positiva terminam o ano lectivo com classificação final negativa por causa do exame. E, sendo isso problemático, bastaria reduzir o peso do exame na ponderação da classificação final – de 30 para 25% – para que o seu impacto ficasse matematicamente reduzido a zero. Ou seja, esta reforma teve por raiz uma oposição aos exames que se provou desajustada dos factos – a diferença entre exame e prova de aferição é, afinal, mais reduzida do que os partidos à esquerda asseveravam.
Segundo problema: fragiliza a avaliação dos alunos. Se os exames tendem a ser sobrevalorizados (com o que de negativo isso implica para a aprendizagem e para o funcionamento das escolas), as provas de aferição tendem a ser subvalorizadas (com implicações igualmente negativas). A questão é essa: a grande diferença entre exames e provas de aferição nunca esteve nas reprovações (onde impacto é irrelevante), mas no envolvimento dos vários agentes educativos e da importância que estes atribuem à avaliação externa. E, no caso das provas de aferição, geralmente atribuem pouca. Isto é, pouca gente valoriza as provas de aferição e os seus resultados.
O problema é antigo. Os relatórios referentes à aplicação das provas de aferição no passado (2001–2012) mostram-no: ano após ano, os alunos apresentam as mesmas fragilidades, demonstrando que o diagnóstico das suas dificuldades não promoveu alterações significativas no ensino. Ora, se os alunos não estudam, se os pais não se interessam, se os professores não usam os resultados para melhorar as práticas pedagógicas, para que servem as provas de aferição? É a pergunta fundamental. Como tal, ou o ministro tem previsto algum incentivo para valorizar as provas de aferição, ou a sua existência equivale, na prática, a um simulacro de avaliação – e se isso poderá agradar a PCP e BE, custa aceitar que o PS caia nesse erro.
Terceiro problema: esta reforma rompe com a compilação estatística dos desempenhos escolares e impede a prestação de contas no sistema educativo. A opção de ter as provas de aferição nos 2.º, 5.º e 8.º anos tem uma implicação directa: os alunos deixarão de ter avaliação externa no final do 1.º e do 2.º ciclo (i.e. nos 4.º e 6.º anos), algo que não acontece desde 2001. E, assim, não só deixaremos de monitorizar as aprendizagens na transição de ciclo, como deixaremos de ter informação estatística comparável entre anos lectivos, pois não há dados para comparar nos 2.º, 5.º e 8.º anos. Ou seja, esta opção do ministro é de uma irresponsabilidade incompreensível.
Ou, pior, só é compreensível para quem defende a suspensão da prestação de contas no sistema educativo. Porque, realmente, só fica a ganhar com isso quem achar que a opacidade tem mais valor do que a informação. Se não é possível avaliar alunos, não é possível avaliar professores e escolas. Os rankings de escolas para os 4.º e 6.º anos (com virtudes e defeitos) acabam. E os professores ficam a isentos da responsabilização (no ministério, nas escolas, nos jornais e nas famílias) pelos desempenhos escolares dos alunos. Por opção política, deixou de haver escrutínio no ensino básico.
Quarto problema: mais instabilidade no sistema educativo. Desde 2000, esta reforma é a 15.ª alteração legislativa ao modelo de avaliação externa. Faz-se e desfaz-se, sucessivamente, há mais de uma década e a um ritmo alucinante. O ministro não é responsável pelo que foi feito antes de tomar posse. Mas é-o pelo que fez agora. Uma alteração profunda do sistema de avaliação que não resulta de consensos no sector, nem de um debate público alargado e demorado, nem de um compromisso a longo prazo com outros partidos. A eliminação de elementos de avaliação, como o exame de inglês resultante da parceria com a Universidade de Cambridge, sem lhe dedicar uma única palavra. E a aplicação imediata das suas decisões, exigindo de alunos e professores uma adaptação espontânea. Simplesmente, o ministro impôs as suas regras, tal como outros antes dele fizeram no seu lugar – tendo sido justamente criticados por isso e tendo visto as suas reformas sucumbir às mudanças de governo. Pela forma como procedeu, o actual ministro da educação garantiu que, com ele, acontecerá o mesmo.
Concluindo, o balanço é simples de fazer: o ministro tem de elucidar o país acerca das suas ideias, porque os problemas desta reforma são tão óbvios que só não vê quem não quer. Os representantes dos directores das escolas criticam o timing da reforma, a sua implementação imediata e a ausência de explicações por parte do ministro. Os representantes dos dirigentes escolares censuram a falta de diálogo e a escassez de informação. A FNE lamenta não ter sido consultada e que não se tenha procurado compromissos pela estabilidade. E a confederação de pais (Confap) está preocupada com a desvalorização social das provas de aferição e afirma ser inoportuna e precipitada uma tal alteração a meio do ano lectivo. Quem ficou satisfeito com o anúncio do ministro? A Fenprof que, entre elogios, saudou as mudanças no tempo certo. São estes os beijos que matam.