Ministério Público pensou acusar a hierarquia da Igreja por não ter denunciado padre
De 21 a 24 de fevereiro, o Papa Francisco reúne no Vaticano bispos de todo o mundo para debater os abusos sexuais na Igreja Católica. Como tem agido a Igreja em Portugal? Durante três meses, uma equipa de jornalistas do Observador investigou os últimos casos denunciados, num trabalho com dados, documentos e depoimentos inéditos.
O relato da filha não lhe saía da cabeça. Já a 16 de novembro, num dia em que foi buscar Ana à catequese, foi abordada por uma familiar que lhe contou que se falava que o padre Júlio era suspeito de ter abusado de uma jovem num acampamento dos escuteiros. A informação desestabilizou-a completamente. Correu para o carro e desatou a chorar. Percebeu naquele momento que a filha não mentia e que não tinha sido a única vítima.
Naquelas seis semanas de 2013, as hierarquias da Igreja e dos escuteiros mantiveram o crime em segredo. O padre da Golegã tinha abusado sexualmente de uma rapariga de 12 anos durante um acampamento e, duas semanas depois, de uma outra durante a feira anual do cavalo. Quando se deu o segundo caso, já a diocese investigava o sacerdote, porque a menor contou tudo às chefes de escuteiros que estavam no acampamento. O silêncio só foi quebrado quando um jornal regional trouxe o caso a público — e ao conhecimento da Polícia Judiciária.
O comportamento da Igreja e dos escuteiros não foi bem visto pelo Ministério Público, que chegou a ponderar acusá-los de omissão de denúncia. Só que a lei apenas obriga à denúncia polícias e funcionários públicos no exercício das suas funções. Mais: o crime de omissão de denúncia só se aplica, entre estes, a superiores hierárquicos que não tenham comunicado crimes cometidos pelos seus subordinados. E há ainda um outro mas: só quando se trata de crimes contra a humanidade. Isto mesmo foi sustentado pelo procurador Teotónio Reis da Silva logo no início do despacho, que, a 27 de junho de 2014, acusou o padre de dois crimes de abuso sexual de menor.
“Ponderou-se a eventualidade de crime de omissão de denúncia, por dirigentes da instituição do Corpo Nacional de Escutas (CNE) e da própria Igreja Católica que, tendo tido conhecimento de factos integráveis em crimes de abuso sexual de crianças, não os haviam transmitido (no decurso de alguns dias) às autoridades com competência investigatória”, lê-se.
Não existe, porém, na lei “um tipo de crime de omissão de denúncia em termos gerais”. Ou seja, um cidadão comum — neste caso um chefe de escuteiros ou um membro da hierarquia da Igreja — não pode ser punido criminalmente por não ter denunciado à polícia um crime do qual teve conhecimento. Embora, no caso dos crimes públicos, como é o do abuso sexual de menores, a simples comunicação por qualquer pessoa seja suficiente para que o Ministério Público abra um inquérito.
Ainda assim, as normas do CNE, que é um movimento da Igreja Católica e que inclui na sua estrutura membros do clero nomeados pelos bispos, obrigariam as dirigentes escutistas a reportar o caso à polícia. Segundo explicou ao Observador fonte oficial da associação, “o CNE, em caso de situação de abuso, cumpre a lei, comunicando o caso às autoridades, acompanhando a sua evolução, colaborando com as autoridades e protegendo todos os intervenientes da exposição e agressão possíveis em circunstâncias destas, acompanhando em todo o processo as possíveis vítimas e respetivas famílias”.
O processo analisado pelo procurador Teotónio Reis da Silva só foi aberto a 6 de dezembro de 2013, mas o primeiro crime que lhe deu origem aconteceu durante um acampamento na noite de 26 para 27 de outubro. E foi imediatamente reportado à hierarquia dos escuteiros pelas chefes escutistas. No “Relatório de ocorrência n.º1”, a que o Observador teve acesso e que foi feito ainda no dia 28 de outubro, a Chefe de Unidade Cátia Moita e a instrutora Ana Madalena descreveram como tudo aconteceu.
Segundo elas, o padre António Júlio teria informado que, depois da missa da tarde de sábado, 26 de outubro, iria ter com o grupo de escuteiros ao acampamento nas Lapas, no concelho de Torres Novas, para jantar com eles. Já depois da refeição e de algumas atividades, as responsáveis preparavam a hora de dormir quando ouviram o padre dizer, para o interior da tenda onde dormiam quatro raparigas: “Então já há espaço para mim?”. Pouco depois, o padre terá dito a uma das chefes que ali queria pernoitar — e ela até lhe emprestou um saco-cama. Contudo, segundo o relatório, o padre informou que iria para a tenda dos rapazes e que não ficaria toda a noite por causa das dores de costas.
Acabou, porém, na tenda das raparigas.
Só no dia seguinte, depois do pequeno-almoço, as chefes souberam o que se tinha passado. Uma das menores, incentivada a falar por uma colega, disse que o padre lhe tinha tocado no corpo, “desde o peito até à zona do baixo ventre”, por cima do saco-cama. O padre ainda lhe perguntou se a incomodava e ela respondeu que sim. Ele parava, mas depois voltava a tocar-lhe. Acabou por adormecer e, quando acordou, ele já não estava lá.
Procurador admitiu possibilidade de as chefes das escuteiras terem cometido um crime de abuso sexual por omissão
As chefes dos escuteiros reuniram-se ainda no domingo, dia 27 de outubro, com outros dirigentes do agrupamento, e apressaram-se, depois, a contar o caso à mãe da vítima. A chefe de agrupamento ficou ainda de contactar com o Chefe Regional — responsável pelos escuteiros católicos na diocese de Santarém — para saber o que fazer. Ninguém, naquele momento, pôs em cima da mesa a hipótese de ir à polícia.
Num segundo relatório, já com a data de 18 de novembro, a chefe do agrupamento da Golegã, Carla Ferreira, explicou os detalhes da reunião, realizada com caráter urgente naquele domingo, logo após os abusos, com os outros dirigentes. Nesse encontro, tendo havido uma “situação de assédio de um adulto a uma criança de 12 anos”, os escuteiros decidiram procurar quem os pudesse ajudar: o Chefe Regional dos escuteiros e um psicólogo. A mãe da vítima, a quem tudo foi explicado no final dessa reunião, por confiar nas chefes da filha, aceitou delegar neles o processo.
Mais uma vez, ir à polícia não foi uma hipótese.
“Decidimos ainda que, dada a gravidade, o assunto não deveria ser transmitido a ninguém fora deste círculo até que sejam tomadas todas as previdências de atuação em conformidade quer com o CNE [Centro Nacional de Escutas] quer ainda com a Igreja”, lê-se no relatório.
Apesar de a mãe da vítima nunca ter apontado o dedo às chefes dos escuteiros, até porque era comum que o padre António Júlio, assistente do agrupamento, pernoitasse com eles nos acampamentos, para o Ministério Público da Golegã esta situação mereceu escrutínio. O procurador Teotónio Reis da Silva chegou mesmo a ponderar acusar as escuteiras do crime de abuso sexual por omissão, por “terem permitido” que o padre “pernoitasse em tenda de campismo, destinada a quatro raparigas (…), deitado entre duas delas (…) não lhe tendo solicitado que saísse dessa tenda”.
Segundo o despacho final do inquérito, na parte relativa aos arquivamentos, as dirigentes “tinham o dever de garantes, de acautelar riscos ou perigos para aquelas crianças escuteiras, protegê-las (…), prevenir riscos ou evitar perigos para a integridade física, a saúde, a formação e integridade sexual delas”. O procurador explica que os indícios do crime foram ponderados, as responsáveis foram novamente inquiridas e analisou-se a possibilidade da sua constituição como arguidas. No final, porém, entendeu que só existia crime “se tivessem omitido, conscientemente, a ação adequada a evitar a ocorrência”. E não se podia exigir às duas dirigentes prever o que aconteceu. “Não tinham razões para suspeitar de que ele fosse pessoa para fazer o que fez; até, pelo contrário, confiavam na respeitabilidade de capacidade daquele também chefe escutista e orientador espiritual”, lê-se.
Igreja já investigava padre na altura do segundo abuso
O segundo relatório das dirigentes dos escuteiros também deu conta dos contactos que foram feitos logo após aquele domingo em que foram conhecidos os abusos. Foi marcada uma reunião para a segunda-feira seguinte com o chefe de agrupamento, que se dispôs logo a falar com o padre Rui Silva, um anterior assistente nacional com quem se dava bem, para saber o que devia fazer.
No dia 1 de novembro, segundo a chefe Carla Ferreira, o caso era já do conhecimento do chanceler da diocese de Santarém, que até já tinha falado com o próprio padre abusador. Note-se que o chanceler é uma das figuras mais importantes da hierarquia de uma diocese, sendo um dos colaboradores mais próximos do bispo e responsável pelos atos administrativos.
Aliás, fonte da diocese de Santarém confirmou ao Observador que, nessa semana, após os abusos ocorridos no acampamento, a diocese já tinha em curso um processo de averiguação prévia e estava “atenta” ao comportamento do padre.
Ao chanceler, segundo o relatório, o padre António Júlio não confirmou o “toque” nem “o assédio”. Ao chefe regional dos escuteiros, Paulo Francisco, o sacerdote confirmou, depois, que tinha dormido na tenda das raparigas e que saíra a meio da noite com dores nas costas. “Como uma delas estava a comer bolachas e a fazer migalhas e a incomodá-lo, ele sacudiu e fez-lhes cócegas na ‘brincadeira’”, contou também Paulo Francisco, mais tarde, à juíza de instrução. O chefe regional ainda sugeriu ao padre que prestasse esse esclarecimento aos responsáveis pelos escuteiros, mas ele recusou fazê-lo. A menos que fossem ter com ele e lhe perguntassem. Eles não foram.
O facto de ter sido confrontado com uma situação de abuso sexual — e de saber que a diocese já se encontrava a investigar o seu comportamento — não inibiu o padre. Cerca de uma semana depois, a 8 de novembro, na Feira da Golegã, acabaria por protagonizar outro caso. Quando acompanhava um grupo de acólitos num jantar no recinto da festa de São Martinho, pôs “a sua mão esquerda no bolso do casaco da menor enquanto tentava mexer no corpo da mesma, sobre as roupas, na região das ancas”, lê-se no relatório da PJ. Mesmo depois de a vítima ter manifestado algum desconforto, “o arguido não interrompeu” e chegou a deslocar a mão para a “zona genital”. Ana, de 13 anos, ficou “muito assustada” e abandonou o local a chorar.
Igreja abriu processo interno, mas não disse nada às autoridades, invocando o respeito à família das vítimas
O tom de voz de Ana ao telefone foi suficiente para a mãe perceber que algo não estava bem. Amélia encontrou-se com ela no largo central da Golegã e ouviu o relato da filha. Às autoridades recordou que a filha lhe contou que o padre lhe tinha tocado. Amélia chegou a pensar que podia ser um ato inadvertido, mas a filha insistiu que não — tinha havido uma intenção. No domingo seguinte, ela recusou ir à missa. Começou a ficar mais ansiosa e abatida, descreveu depois a mãe. Olhando para o estado da filha, Amélia começou a acreditar nas suas palavras.
Dias depois, a mãe ainda frequentou um curso onde estava o padre António Júlio, na esperança que ele lhe desse uma palavra. Silêncio total. E ainda evitou o contacto, como testemunhou. O relato da filha não lhe saía da cabeça. Já a 16 de novembro, num dia em que foi buscar Ana à catequese, foi abordada por uma familiar que lhe contou que se falava que o padre Júlio era suspeito de ter abusado de uma jovem num acampamento dos escuteiros. A informação desestabilizou-a completamente. Correu para o carro e desatou a chorar. Percebeu naquele momento que a filha não mentia e que não tinha sido a única vítima.
Três dias mais tarde, o telefone de Amélia tocou. Era o padre António Júlio. A mulher ainda lhe disse que não era capaz de falar com ele, mas o sacerdote insistiu para que se encontrassem naquele mesmo dia na casa paroquial. No encontro, breve, António Júlio pediu-lhe perdão e justificou o seu comportamento por estar doente. Mas ela não foi capaz de o perdoar. Afinal, ele não era só um padre. Era um amigo da família. E pediu-lhe que desaparecesse.
Nesse dia o padre Júlio já não compareceu para presidir à missa.
O sacerdote foi depois ter com o bispo de Santarém, D. Manuel Pelino. Perturbado com as conversas que tinha tido e que já sabia estarem a correr pelos paroquianos, decidiu que não tinha condições para continuar à frente da paróquia. E pediu ao bispo que o dispensasse de funções.
Por iniciativa própria, o padre deixou a paróquia da Golegã e passou a residir no seminário de Santarém com outros padres. A fragilidade da situação emocional de António Júlio já se tinha agravado antes, mas a medicação que tomava era incerta.
Nos últimos anos, tinha perdido os pais e um cunhado cometeu suicídio. Por isso, quando foi viver para o seminário, o seu estado, marcado por “sintomatologia depressiva, com ideação suicida”, tinha-se agravado. E começou a ser acompanhado psicologicamente. Em tribunal, os seus irmãos viriam a testemunhar que sempre foi uma pessoa “muito ansiosa e nervosa, sendo que há três anos parecia estar com um esgotamento, apresentando dificuldades em dormir”, lê-se na sentença, nos factos que o tribunal deu como provados.
Aquele segundo caso, na feira da Golegã, foi determinante para que a diocese de Santarém, que já investigava o comportamento do padre António Júlio dos Santos, tomasse a decisão de o dispensar de funções. Até ali, a presunção de inocência e alguma cautela tinham adiado ações mais concretas. E o processo de averiguação prévia, feito de acordo com as normas próprias da Igreja Católica, avançou mais rapidamente a partir dali — e responsáveis da diocese encontraram-se, pessoalmente, com as famílias das duas vítimas.
O próprio bispo de Santarém, D. Manuel Pelino, encontrou-se cara a cara com Amélia, a mãe da acólita de que António Júlio terá abusado na feira da Golegã. Nesse encontro, o bispo informou-a de que a Igreja estava a fazer uma averiguação interna para perceber o que se tinha passado. O responsável pela diocese de Santarém perguntou-lhe se era sua intenção avançar com uma queixa-crime. Amélia respondeu que não queria que a comunidade soubesse o que a filha passou. Só queria que o padre António Júlio fosse penalizado pelo que fez e fosse afastado do contacto com as crianças. A outra mãe soube do processo canónico pelos escuteiros.
Este foi o argumento da Igreja para não comunicar o caso às autoridades civis. Quis respeitar a vontade das famílias que pensavam, assim, estar a proteger e a salvaguardar as vítimas. Aliás, mesmo depois de o caso chegar ao Ministério Público, nenhuma delas avançou sequer com pedidos de indemnização.
Polícia Judiciária só soube das suspeitas através da imprensa
Só a 5 de dezembro o caso acabaria por chegar ao conhecimento da Polícia Judiciária, com uma notícia do jornal regional O Mirante. O artigo relatava que António Júlio dos Santos “desapareceu subitamente” da paróquia “sem falar com nenhum dos seus colaboradores mais próximos” e deixou de atender o telemóvel.
A notícia do semanário regional citava o responsável pela comunicação da diocese, padre Aníbal Vieira, também vigário geral, que explicava: “Perante as informações que chegaram à diocese e porque há determinações para se actuar com celeridade em casos do género, foi de imediato aberto um processo de averiguações e o senhor padre foi retirado da paróquia. Ainda não há mais informações que possam ser fornecidas. Ele também está a ter acompanhamento médico porque, desde o falecimento de sua mãe (em maio de 2012), estava com problemas”.
Perante a notícia, a diocese de Santarém sentiu necessidade de esclarecer publicamente a situação. Fê-lo através de um comunicado publicado no site oficial, em que confirmou “ter iniciado um processo canónico de averiguações a propósito de suspeitas sobre um padre da diocese”. No mesmo comunicado, confirmava-se que a diocese estava “em contacto com os familiares para dar todo o apoio necessário” e “disponível para colaborar em tudo com as instâncias civis”.
A investigação judicial ao caso foi aberta logo no dia seguinte à publicação da notícia. No processo consta a informação de um telefonema que a PJ fez logo para o Ministério Público a dar conta de um possível crime praticado por um padre da zona. O coordenador da Judiciária também telefonou logo ao padre Aníbal Vieira — que lhe confirmou estarem perante um caso de suspeitas de abusos sexual de menores. Foi o inspector Olegário Sousa quem, ainda nesse dia, foi à diocese de Santarém falar pessoalmente com o vigário geral. Falou também com o chanceler diocesano Ricardo Madeira e com Paulo Francisco, responsável dos escuteiros. Dias depois, o processo ficou em segredo de justiça.
Logo no primeiro contacto com a PJ, o padre Ricardo Madeira — chanceler diocesano e pároco do Entroncamento, que tinha sido nomeado pelo bispo para acompanhar o processo canónico e para gerir a paróquia da Golegã de forma interina — confirmou que o padre suspeito já era alvo de um processo de averiguação prévia, necessário para a abertura do processo canónico.
Ricardo Madeira explicou ainda aos inspetores da Judiciária que as primeiras informações que chegaram à diocese vieram de uma das chefes dos escuteiros, que deu notícia das suspeitas, mas confirmou que o próprio padre António Júlio dos Santos contactou a diocese e relatou as duas situações aos responsáveis da Igreja na altura em que pediu para ser dispensado. Para dar seguimento ao processo canónico, o sacerdote falou com os chefes dos escuteiros da paróquia da Golegã e da diocese de Santarém e com as mães das duas menores envolvidas.
O padre Ricardo Madeira foi mais longe e facultou à PJ três relatórios respeitantes ao episódio do acampamento que constavam do processo canónico aberto no mês anterior: dois escritos pelas chefes dos escuteiros que acompanharam a atividade e um pela mãe da menor. Nos três documentos, foi descrito ao detalhe o que se passou no acampamento de escuteiros.
Dois abusos e o regresso à vida paroquial
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15 escuteiros da Golegã vão acampar durante o fim de semana, em Torres Novas. O padre António Júlio dos Santos junta-se ao grupo para jantar e decide dormir no acampamento.
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O padre António Júlio dos Santos dirige-se para uma das tendas, onde estão a dormir quatro raparigas.
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Ao pequeno-almoço, uma escuteira incentiva a outra a contar o que se passou. Ela acaba por contar às chefes que o padre lhe tocou no corpo durante a noite.
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Os chefes dos escuteiros reúnem e decidem informar a mãe da criança. Multiplicam-se as reuniões entre responsáveis dos escuteiros, incluindo com o chefe regional, que pede uma audiência ao bispo de Santarém.
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O padre António leva os acólitos da paróquia da Golegã à Feira do Cavalo para jantar e ver um jogo de horseball. Na feira, toca na zona genital de uma das acólitas. A vítima conta à mãe.
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O chefe regional dos escuteiros de Santarém telefona à chefe do agrupamento da Golegã: conseguiu falar com o padre António, que disse apenas ter feito cócegas, e cancelou o pedido de audiência com o bispo, porque já há processo canónico em curso.
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Mãe da acólita é abordada por uma cunhada que lhe fala dos abusos no parque de campismo. Percebe que não é a sua filha não é caso único.
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O padre António conversa com a mãe da acólita e diz-lhe que está arrependido do que fez. Diz-se doente. A mulher não o perdoa. Nada se sabe do padre. Deprimido, o padre António pede ao bispo de Santarém a suspensão das suas funções e passa a residir no seminário e a receber apoio psicológico.
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O bispo de Santarém pergunta à mãe da acólita se pretende formalizar queixa, fala-lhe do processo canónico. A mulher responde que não e que apenas quer o padre afastado de crianças.
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O jornal regional O Mirante noticia o processo canónico do padre da Golegã. A diocese emite um comunicado a confirmar a informação. A PJ toma conhecimento do caso pelas notícias e abre uma investigação.
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A PJ detém o padre. Dois dias depois é presente a tribunal.
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O padre António Júlio dos Santos é condenado a 14 meses de prisão com pena suspensa pelo tribunal de Santarém. A diocese aplica-lhe em simultâneo uma pena canónica: não ter funções como sacerdote enquanto dura a pena decretada pela justiça.
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A pena extingue-se e o padre ainda está algum tempo sem funções pastorais.
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O padre António Júlio dos Santos voltou a trabalhar como sacerdote. Hoje é vigário nas paróquias de Póvoa da Isenta e Vila Chã de Ourique, em Santarém, e não está impedido de se aproximar de crianças.
Padre só contratou advogado no dia da notícia que deu origem à investigação
Foi no dia em que a PJ começou a investigar que o padre António Júlio dos Santos contactou o advogado Rui Rodrigues, da Marinha Grande, para o representar legalmente. O nome do advogado, conhecedor da realidade eclesiástica, foi sugerido ao sacerdote por alguém no interior da estrutura da Igreja. Ao Observador, Rui Rodrigues garantiu que a Igreja agiu “de forma exemplar” neste caso. “A postura do bispo foi a de ‘investigue-se o que há para investigar’ e ele preferiu manter-se distanciado do caso”, disse o advogado.
Rui Rodrigues acredita que “se não tivesse havido notícia no jornal, a Igreja iria denunciar” o caso. Mas não concretiza porquê. “Fiquei com essa ideia”, diz Rui Rodrigues, que, durante a defesa de António Júlio dos Santos, contactou frequentemente com a diocese de Santarém. “Tinha de fazer a investigação canónica e, se houvesse crime, avançava-se com a queixa”, disse ao Observador.
O que não quer dizer que a estrutura da Igreja não tenha sido rigorosa com o padre António Júlio dos Santos. Apesar de o ter acolhido no seminário, a diocese de Santarém retirou ao padre o salário que recebia enquanto pároco na Golegã. António Júlio dos Santos, que tinha de suportar um empréstimo referente a um apartamento que comprara, passou dificuldades para pagar os honorários ao advogado e chegou a achar que a Igreja o estava a colocar de parte. D. Manuel Pelino, porém, “não abandonou” o padre, explica o advogado.
“A Igreja funcionou como a família dele. Não vejo que a Igreja tenha que deixar à sorte os membros da sua família”, argumenta Rui Rodrigues.
Sublinhando sempre que foi contratado pelo padre em questão e não pela estrutura da Igreja, Rui Rodrigues recorda que a primeira ação que tomou, logo no dia seguinte àquele em que foi contactado, foi ir ter com as famílias das vítimas para lhes pedir desculpa em nome do sacerdote.
Investigação encontrou mais duas vítimas
Durante a investigação, a Polícia Judiciária teve conhecimento de que havia mais queixas contra o padre, que nunca tinham sido relatadas nem à hierarquia da Igreja, nem às autoridades, mas cujos prazos legais para acusar podiam já ter sido ultrapassados. Ainda assim, os inspetores ouviram as duas alegadas vítimas e os seus familiares. E, a 24 de maio de 2014, enviaram a informação ao Ministério Público para que o procurador decidisse o que fazer.
Uma das vítimas queixava-se de que, em 2009, na Sexta-feira Santa, foi confessar-se e o padre tocou-lhe na perna, “acariciando-a”, tinha ela 14 anos. Disse ainda que considerava o comportamento suspeito porque, à data, não tinha qualquer ligação espiritual com aquele padre. Já a segunda vítima contou que era acólita e que, por duas vezes, na sacristia, o padre lhe tinha tocado. Uma vez no peito, outra na nádega. Disse que se desviou e que ele nada mais fez. Ambas as vítimas tinham uma ligação familiar e já tinham falado sobre isso com as suas famílias. O caso foi mantido em segredo até virem a público os outros dois que chegaram à barra do tribunal.
A decisão em relação a estes dois casos consta também do despacho final do inquérito, quando se refere aos factos que acabaram arquivados. O procurador concluiu, para ambos, não estar perante um crime de abuso sexual — por as vítimas terem já 14 e 16 anos –, mas sim de um ato sexual com adolescente. O que significa que, não sendo um crime semi-público, o prazo para a queixa se extinguira em seis meses. O Ministério Público ainda ponderou se podia estar perante um caso de importunação sexual, este sim de natureza pública, mas, não tendo havido constrangimento, limitação ou coação da ação da vítima, acabou por arquivar o caso em relação a elas. Deste comportamento não resultou “um prejuízo real e injusto”, foram apenas “contactos fugazes”, concluiu.
O mesmo não se considerou em relação às duas vítimas cujos crimes terão sido praticados já em 2013. O relatório psicológico feito às duas menores revelou que nenhuma delas estava a fantasiar e ambas revelaram ter consciência do que tinha acontecido, apesar do pouco conhecimento que mostraram ter sobre sexo. As vítimas disseram aos especialistas que, meses depois, ainda tinham dificuldades em dormir. E que muitas vezes se sentiram afetadas na sua rotina diária por causa do que viveram às mãos do padre. A uma delas foi mesmo diagnosticada perturbação pós-stress traumático, como ficou, depois, provado em tribunal e pode ler-se no acórdão.
O despacho de acusação refere mesmo que o padre “utilizou a sua influência junto daquela comunidade escutista, na qualidade de seu assistente espiritual católico, e também na paróquia da Golegã, como pároco católico dessa paróquia junto daquelas crianças”. E acabou por acusá-lo de dois crimes de abuso sexual agravado, a 27 de junho de 2014.
As diferentes versões do padre que agiu por “impulso” e ficou preso numa freguesia
As justificações que o padre António Júlio foi dando ao longo de todo o processo não foram sempre iguais. E, para o coletivo de juízes presidido por Rita Seabra, não convenceram.
Primeiro, quando foi confrontado pelo chefe dos escuteiros, o padre António Júlio disse que, no caso do acampamento, estava incomodado com o facto de as miúdas estarem a comer bolachas na tenda e que apenas fez algumas cócegas a uma delas. Dias depois, à mãe da rapariga que o acusou de abusos em pleno recinto da festa, pediu desculpa e admitiu estar doente.
Já depois de detido, nas instalações da PJ, a 16 de dezembro, António Júlio acabaria por recusar prestar declarações. Só o fez perante o juiz, 48 horas depois. No resumo da versão que apresentou, e que consta no processo, o sacerdote explicou que, quando estava no acampamento, sentiu-se mal e com vertigens e uma das menores convidou-o a jogar às escondidas.
Como estava indisposto e a achar que não devia conduzir, acabou por ficar. Insistiu que foram as escuteiras que pediram que dormisse na tenda delas e que se limitou a fazer uma massagem a uma das raparigas. Se lhe tocou, foi inadvertidamente. Até porque ela se mexia, lê-se no processo. Já quanto ao episódio da Golegã, justificou que pôs a mão no bolso de Ana para lhe tirar um lenço para se assoar.
No relatório que a PJ já tinha feito para o processo, e que antecedeu a detenção do padre, os inspetores sugeriam que, por força da sua condição de sacerdote, o padre podia tirar partido da sua ampla rede de contactos e implantação da estrutura da Igreja Católica em território nacional, no espaço da União Europeia, da Comunidade de Países da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa, dispondo assim de condições para a fuga. A PJ explicava assim os motivos para que o padre fosse detido e ficasse em prisão preventiva.
O advogado do padre, no entanto, aproveitou o primeiro interrogatório judicial para rebater estes argumentos. E lembrou que o padre deixou voluntariamente as três paróquias em que prestou serviço sacerdotal, que os factos em causa poderiam eventualmente não ser considerados de relevância sexual e que o risco de perturbação da investigação era inexistente.
A juíza de instrução acabou por obrigar o padre a pagar uma caução de 3500 euros pela liberdade. Mas a liberdade não foi total. O padre foi proibido de sair da freguesia de Santarém, onde está o seminário para onde foi residir, e foi igualmente proibido de permanecer nos concelhos de Torres Novas e da Golegã e de contactar com menores e com escuteiros. Na prática, o padre ficou preso a uma freguesia, só autorizado — mais tarde e a pedido do advogado — a ir a Lisboa para consultas médicas.
Quando foi conhecida a acusação, o advogado do arguido viria a contestá-la. No documento, enviado a 14 de novembro de 2014 para o Ministério Público, o padre afirmou que nunca agiu no pressuposto de “praticar quaisquer actos sexuais de relevo”e de prejudicar o normal desenvolvimento das suas vítimas.
Diz que sempre usou “o normal carinho” que os adultos usam com as crianças. E que seria impossível querer satisfazer os seus instintos libidinosos por cima “de um saco de cama” ou de “um casaco de inverno”, como descrevem as vítimas.
O sacerdote foi sujeito a uma perícia psiquiátrica feita pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e a uma perícia de personalidade feita pela Direção Geral de Reinserção dos Serviços Prisionais. Acabou por admitir ter agido “por impulso que não controlou”. Nesses relatórios, concluiu-se que o padre não sofria de qualquer perturbação a nível da sexualidade, nomeadamente parafilias, mas que sofria de “perturbação depressiva moderada”. O tribunal deu como provado que, durante o julgamento, mostrou capacidade para criticar o comportamento que teve. Mas que, quando foi detido e saiu em liberdade para se recolher no seminário, não se sentia preparado para voltar para a paróquia.
Já em tribunal, o arguido manteve a versão do primeiro interrogatório judicial. Acrescentou que, se lhes tocou inadvertidamente, não sentiu, uma vez que, num caso, havia um saco cama e, noutro, um casaco de inverno. Uma justificação em que os juízes não acreditaram.
Padre voltou ao serviço sem restrição de contacto com menores
O processo canónico acompanhou a pena civil: o padre ficou suspenso de todas as funções sacerdotais enquanto decorreu o tempo da pena decretada pelo tribunal (de 14 meses, como veremos), como explicou ao Observador o vigário geral da diocese, padre Aníbal Vieira. Durante esse tempo, ficou sem qualquer serviço pastoral, a residir no seminário, de acordo com o anuário da Igreja Católica de 2016, consultado pelo Observador.
Ao contrário do que propunha o Ministério Público, porém, António Júlio dos Santos não foi condenado pelo tribunal à pena acessória de “proibição do exercício de função ou atividade que implique ter menores sob a sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância por um período de dois a quinze anos”. E o coletivo de juízes explicou porquê: é que, além de os factos praticados não terem sido considerados assim tão graves, a profissão de sacerdote não implica necessariamente que tenha menores a seu cargo. Aliás, a primeira vítima estava sob responsabilidade dos escuteiros. E, no segundo caso, o padre tinha ido jantar com um grupo de acólitos, “situação que poderia verificar-se igualmente noutro tipo de convívio social entre jovens e adultos”.
O tribunal considerou que o padre agiu conscientemente, mas que os atos sexuais que praticou não foram de “relevo”. Da forma como aconteceram, “não se pode concluir que as menores tenham ficado constrangidas, ao ponto de a sua liberdade e autonomia sexual ter ficado coarctada”, lê-se no acórdão final, do qual o padre não recorreu. Ainda assim, concluiu o tribunal que os atos praticados eram criminalmente puníveis e tinham sido uma agressão à liberdade sexual das vítimas.
O tribunal também teve, no entanto, em consideração o facto de o arguido estar a atravessar uma depressão nervosa, o que “poderá ter tido alguma influência” no seu comportamento, de estar inserido socialmente e de nunca ter praticado qualquer outro crime. Por isso, em março de 2015, condenou-o a 14 meses de prisão, suspensa por igual período.
A pena extinguiu-se a 20 de setembro de 2016. Por esta altura, já António Júlio dos Santos tinha sido nomeado pelo bispo de Santarém, D. Manuel Pelino, como vigário paroquial nas paróquias de Vila Chã de Ourique e Póvoa da Isenta, segundo o decreto de nomeações, datado de 16 de julho de 2016. É aqui que hoje presta serviço pastoral — apoiando o pároco responsável pelas paróquias —, apesar de continuar a residir, por indicação da diocese, no edifício do seminário, em comunidade com outros padres de Santarém.
O Observador tentou contactar o padre António Júlio dos Santos através do advogado Rui Rodrigues, mas este não se mostrou disponível. “Ele não quer falar porque quer pôr uma pedra em cima do assunto e viver em paz”, disse Rui Rodrigues ao Observador, depois de contactar telefonicamente o sacerdote.
Chefes de escuteiros agora têm de fazer formação sobre prevenção de abusos
Nos últimos anos, o Corpo Nacional de Escutas, organização dos escuteiros católicos em Portugal, tem acompanhado a Igreja na reação aos casos de pedofilia e implementou políticas de proteção das crianças e jovens. Uma delas, segundo explicou ao Observador fonte oficial do CNE, é a obrigatoriedade de todos os chefes de escuteiros fazerem uma formação específica sobre o assunto dos abusos sexuais.
“Todos os dirigentes a formar têm a obrigatoriedade de frequentar um módulo de formação específico sobre esta temática e, num prazo mais alargado (outubro de 2019), todos os restantes dirigentes terão que frequentar um módulo semelhante, mas ainda mais aprofundado, como condição mínima da condição de dirigente do movimento”, explicou fonte da associação.
O movimento segue também as normas adotadas pela Conferência Episcopal Portuguesa, em 2012, para o tratamento dos casos de abuso. Em 2016, três anos depois do caso da Golegã, o CNE começou a desenvolver um manual, no qual inclui normas destinadas a promover a proteção dos menores e que inclui orientações relativas à separação dos locais de pernoita por sexo e por idades.
“O Corpo Nacional de Escutas promove uma cultura interpares de respeito pela privacidade e intimidade de cada qual, em todas as circunstâncias”, lê-se no manual, onde o movimento se compromete a “acomodar, por sexo, as crianças e jovens no âmbito das atividades escutistas, bem como a garantir instalações ou espaços destinados a cuidados de higiene pessoal, respeitando, sempre que possível, a individualidade dos utilizadores”.
Mais à frente, o manual destaca que “a relação educativa entre os adultos e crianças e jovens” se rege “pelo princípio de respeito pela respetiva individualidade, integridade, privacidade e intimidade”, motivo pelo qual o movimento “promove espaços de dormida diferenciados para adultos e crianças ou jovens”, “rejeita a existência de relações inapropriadas e reage proativamente em casos de assédio ou abuso, obrigando-se a reportar situações que infrinjam a legalidade”.
Medidas que teriam sido suficientes para, desde logo, impedir que o padre António Júlio dos Santos acabasse a dormir na mesma tenda que quatro raparigas menores de idade.
* Os nomes das vítimas e dos familiares são fictícios para proteger as suas identidades-
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Texto João Francisco Gomes e Sónia Simões
Edição Sara Antunes de Oliveira e Miguel Pinheiro
Ilustrações Mariana Cáceres
Mapas Raquel Martins
Fotografia João Porfírio
Vídeo Nuno Neves
Reconstituição de documentos Tiago Couto
Web design e desenvolvimento Alex Santos
Coordenação multimédia Catarina Santos
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