Abusos sexuais. Igreja portuguesa escondeu pelo menos três casos nos últimos 15 anos
De 21 a 24 de fevereiro, o Papa Francisco reúne no Vaticano bispos de todo o mundo para debater os abusos sexuais na Igreja Católica. Como tem agido a Igreja em Portugal? Durante três meses, uma equipa de jornalistas do Observador investigou os últimos casos denunciados, num trabalho com dados, documentos e depoimentos inéditos.
Os poucos dados que existem estarão nos arquivos dos tribunais de cada uma das 21 dioceses portuguesas, uma vez que cada bispo é diretamente responsável por investigar e instaurar os processos canónicos sobre os seus padres. Para traçar um retrato o mais completo possível dos abusos na Igreja em Portugal, além dos casos que passaram pela Justiça, o Observador perguntou a cada uma das dioceses quantos casos investigou internamente. Apenas 15 responderam. E, destas, só nove aceitaram divulgar os números que recuperaram dos seus arquivos. As outras limitaram-se a assegurar que respeitam as normas da Santa Sé e da Conferência Episcopal Portuguesa no que diz respeito aos abusos sexuais — mas sem números.
É o crime que leva ao maior número de detenções na categoria das ofensas sexuais, mas são poucos os dados que permitam traçar um perfil exacto dos agressores. Em 2017, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, as autoridades detiveram 98 suspeitos de abuso sexual de criança. Sabe-se que idade têm, o género e até a escolaridade, mas desconhecem-se as profissões. Para esse ano, como para todos os outros, é impossível saber, por isso, quantos são padres ou exercem outras funções ligadas a instituições religiosas.
A Igreja Católica em Portugal também não tem dados estatísticos sobre os abusos sexuais cometidos pelo clero no país — foi essa a resposta que o Observador recebeu da Conferência Episcopal sempre que procurou essas informações. Esta terça-feira, porém, depois de confrontada com as duas primeiras reportagens publicadas pelo Observador, com os casos do Funchal e da Golegã, apareceu, afinal, um número. Ou um arredondamento, para sermos rigorosos.
Numa conferência de imprensa em Fátima, o porta-voz dos bispos, padre Manuel Barbosa, falou em “uma dezena” de investigações feitas pelas dioceses nacionais desde 2001 até hoje. Aos jornalistas, o padre Manuel Barbosa explicou que, num levantamento feito entre os bispos portugueses para preparar a reunião da próxima semana no Vaticano, chegaram à conclusão de que tinham sido investigadas cerca de dez denúncias de abusos, mas garantiu que mais de metade dos casos acabaram por não avançar, uma vez que a investigação prévia feita pelas dioceses não encontrou fundamentos para tal.
Não deu, porém, dados concretos: nem o número exato de casos, nem quantos seguiram em frente, muito menos como terminaram ou se o comportamento da Igreja, em cada um deles, foi correto.
O porta-voz dos bispos portugueses admitiu, porém, alguns erros. Disse que “aqui ou ali” pode não ter existido a “devida investigação”, para depois voltar a insistir que “os casos tratados nos tribunais eclesiásticos onde chegam as denúncias são pouquíssimos e, desses, mais de metade a investigação prévia parou por falta de fundamento”.
Esse número pequeno de casos (contado desde 2001 e que não tem em conta os casos que eventualmente tenham acontecido, mas que não resultaram em investigações dentro da própria Igreja — como no Funchal, por exemplo) serve de justificação para que a posição dos bispos portugueses se mantenha: para já, continua sem estar nos planos da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) a possibilidade de um estudo aprofundado à dimensão do problema em Portugal, como foi feito noutros países.
Essa hipótese já tinha sido descartada repetidas vezes. Em novembro do ano passado, o presidente da CEP, D. Manuel Clemente, afirmava claramente que um estudo dessa natureza não era necessário “para já”, uma vez que as normas publicadas em 2012 pelos bispos portugueses são “suficientes e esclarecedoras”. Mais recentemente, em janeiro, o porta-voz padre Manuel Barbosa frisou publicamente não estar “prevista uma investigação de âmbito nacional”, contrariando a iniciativa tomada noutros países, como a Suíça. Mais: quando questionado sobre se D. Manuel Clemente, planeava encontrar-se com vítimas de abusos em Portugal, como apelou o Vaticano, o responsável afirmou mesmo que “não há uma lista” dessas vítimas.
Os poucos dados que existem estarão nos arquivos dos tribunais de cada uma das 21 dioceses portuguesas, uma vez que cada bispo é diretamente responsável por investigar e instaurar os processos canónicos sobre os seus padres. Estão lá, mas muitas vezes perdem-se na desorganização dos arquivos, tendo em conta que alguns só muito recentemente começaram a mantê-los com uma preocupação de sistematizar os dados. Casos com mais de uma ou duas décadas, por exemplo, são praticamente impossíveis de encontrar, dificultando ainda mais um diagnóstico que parece envolto em mistério.
O Observador conseguiu, no entanto, fazer uma lista de, pelo menos, nove menores vítimas de três padres condenados em tribunal e que cumprem ou cumpriram pena por abusos sexuais. A estes somam-se dois menores vítimas de um padre do Funchal, que acabou por não ser acusado por falta de provas, e uma terceira vítima do mesmo padre, num processo que ainda está a ser investigado. Conseguiu-o depois de consultar os processos que correram no Ministério Público e nos tribunais portugueses e nos quais foram ouvidos os próprios sacerdotes, a hierarquia da Igreja, as vítimas, os seus familiares e os peritos que analisaram todos os seus comportamentos.
A estes dados juntar-se-ão ainda casos que acabaram arquivados sem provas. E os outros números que nunca serão totalmente conhecidos: os daquelas vítimas que não ousaram partilhar com alguém aquilo que sofreram, ou que partilharam e viram os seus casos encobertos, sendo aconselhadas a manterem-se em silêncio.
Para traçar um retrato o mais completo possível dos abusos na Igreja em Portugal, além dos casos que passaram pela Justiça, o Observador perguntou a cada uma das 21 dioceses portuguesas quantos casos investigou internamente. Apenas 15 responderam. E, destas, só nove aceitaram divulgar os números que recuperaram dos seus arquivos. As outras limitaram-se a assegurar que respeitam as normas da Santa Sé e da Conferência Episcopal Portuguesa no que diz respeito aos abusos sexuais — mas sem números. Entre dioceses que preferiram não divulgar os dados que têm, há algumas que terão registo de, pelo menos, uma investigação — como são os casos de Braga, Vila Real, Funchal ou Setúbal.
Feitas as contas — entre os processos consultados ou conhecidos e os dados divulgados a pedido do Observador —, a conclusão é de que, nos últimos anos, a Igreja investigou pelo menos nove casos de suspeitas de abusos sexuais praticados nas suas instituições. A este número poderão faltar casos registados pelas doze dioceses que não revelaram o número de investigações. E é preciso não esquecer que, mesmo as que divulgaram números, reportaram-se apenas a curtos períodos de tempo — quase sempre o período relativo ao bispo atual ou aos dois últimos.
O cruzamento de informações permitiu, depois, perceber como foram investigados estes casos e como a Igreja lidou com eles. Uma investigação, aliás, semelhante à que vários jornais internacionais de referência fizeram nos últimos anos, como foram as célebres reportagens do Boston Globe, em 2002, ou, mais recentemente, do El País, em Espanha. No caso espanhol, os dados revelados incluíam todos os processos abertos contra elementos da Igreja, não se referindo apenas a padres, nem só a vítimas menores de idade. Nuns e noutros foram, no entanto, revelados padrões de comportamento dos responsáveis da Igreja Católica que o Observador também encontrou em Portugal. Desde a não comunicação dos casos, à tentativa de mudar o padre de paróquia para fazer esquecer as suspeitas contra ele — ou, por antítese, a total colaboração com as autoridades.
O Observador contactou também a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), o organismo do Vaticano a quem todos os bispos têm de comunicar as denúncias credíveis e os resultados das investigações que fazem, para saber quantos casos portugueses ali chegaram. Pela via oficial, a porta também se fechou. A CDF preferiu remeter-se ao silêncio. Uma fonte próxima do cardeal espanhol Luis Ladaria, atual prefeito daquela congregação, disse depois ao Observador que Ladaria não se encontrava disponível para comentar o assunto. Outra fonte eclesiástica com conhecimento dos processos canónicos em Roma acabou por estimar que os casos portugueses não deverão chegar à meia dúzia.
Apesar do silêncio — e desta aparente incapacidade de apontar, com certeza, dados gerais sobre a realidade portuguesa —, o Vaticano tem números sobre as penas aplicadas nestes casos em todo o mundo. E os últimos foram divulgados em 2014. Na altura, o arcebispo italiano Silvano Tomasi, representante da Santa Sé nas Nações Unidas em Genebra, revelou que, entre 2004 e 2013, a Igreja Católica tinha demitido do sacerdócio 848 padres condenados por abuso sexual. Além destes, outros 2.572 membros do clero foram, no mesmo período, sancionados pela Igreja pelo mesmo tipo de crimes.
Das notícias à cimeira inédita no Vaticano: os abusos sexuais na Igreja
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Papa S. João Paulo II demite o cardeal austríaco Hans Hermann Gröer, a figura mais importante da Igreja na Áustria, depois de ter sido alvo denúncias de abusos sexuais pela segunda vez.
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O Boston Globe publica a primeira investigação jornalística que expõe centenas de casos de pedofilia na Igreja dos EUA, ocultados durante décadas pela hierarquia católica.
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O cardeal de Boston, Bernard Francis Law, é o primeiro a resignar. Dois anos depois, é nomeado para um cargo cerimonial em Roma — que lhe deu a cidadania do Vaticano.
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É divulgado na Irlanda um relatório com perto de 30 mil potenciais vítimas que sofreram abusos em instituições católicas entre os anos 30 e os anos 90.
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O Papa Bento XVI escreve uma carta aos católicos da Irlanda a condenar os abusos.
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Na Austrália, comissão do governo ouviu mais de 1.200 testemunhas e investigou meia centena de instituições religiosas. Concluiu que houve milhares de abusos.
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34 bispos chilenos apresentam a renúncia ao Papa Francisco na sequência do escândalo dos abusos no país, agudizado pela visita do Papa ao Chile em janeiro.
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Divulgado relatório no estado da Pensilvânia, EUA, com mais de mil casos de abusos sexuais de menores cometidos por 300 padres. O relatório reabriu a discussão no país.
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Após o relatório da Pensilvânia, o ex-embaixador do Vaticano nos EUA publica uma carta a exigir a demissão do Papa. Argumenta que Francisco sabia dos abusos desde 2013.
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O cardeal australiano George Pell, ex-ministro da Economia do Vaticano e número 3 da hierarquia da Igreja, é considerado culpado de cinco crimes de abusos sexuais.
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Os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo, os superiores das congregações religiosas e outros líderes católicos, vão reunir-se no Vaticano para debater a resposta da Igreja aos abusos. A cimeira, inédita, é a decisão mais recente do Papa Francisco para lidar com o problema.
Na Justiça também não há números
A dificuldade de chegar a um número exato ou a um levantamento estatístico específico dos casos relacionados com padres estende-se também à Justiça. Sabe-se que, no final de 2017, 282 reclusos cumpriam pena de prisão nas cadeias portuguesas por crime de abuso sexual e abuso de menores dependentes, mas, como já foi dito, desconhecem-se as suas profissões — esse dado não é sistematizado pelo Ministério Público, responsável pelas investigações criminais.
Os 98 detidos por crimes de abuso sexual de crianças nesse ano eram, na maioria, homens (96,1 %), com idades entre os 31 e os 40 anos. Também a maior parte das vítimas (80,5%) é do sexo masculino e, segundo os casos registados em 2017, tem entre 8 e 13 anos. No Relatório Anual de Segurança Interna, que reúne dados comunicados por todas as forças de segurança, é dito que, à semelhança do ano anterior, a maior parte dos abusos ocorre no seio familiar. Ainda assim, em 10% dos casos é referido que se desconhece qual o tipo de relacionamento entre agressor e vítima e que tal não foi possível apurar durante as investigações.
Um inspetor da PJ, numa tese que fez para a Universidade de Salamanca, encontrou quatro processos possivelmente relacionados com a Igreja, abertos em cinco anos. Em “Abusadores Sexuais, Uma Perspetiva Neurológica”, o investigador concluiu que, entre 2003 e 2007, dos 5128 crimes de abusos sexuais investigados em Portugal, quatro foram contra “tutores religiosos” e apenas três deles resultaram numa acusação. A tese não especifica, porém, se são padres da Igreja Católica.
As notícias dos últimos anos também não andam longe destes números. Em março de 1993, uma década antes da janela de tempo em que o inspetor Pedro Pombo se focou, o padre Frederico foi condenado a 13 anos de cadeia. O tribunal de júri, na Madeira, considerou-o culpado de um crime de homicídio e de um de homossexualidade com menor (tipo de crime que entretanto mudou) — um rapaz de 15 anos. No final do julgamento, o padre, que trabalhava como braço direito do então bispo do Funchal, D. Teodoro de Faria, e de quem recebeu sempre apoio, disse aos jornalistas que era completamente “inocente” e que o caso tinha sido “construído pela PJ”.
O tribunal deu como provado que, depois de tentar ter atos sexuais com o adolescente, Frederico Cunha atirou-o de uma falésia. Quando leu a sentença, o juiz foi claro: “Neste julgamento, não foi sentenciada a Igreja nem a religião católica”. Além da prisão, ficou também decidido que o padre seria expulso do país quando acabasse de cumprir a pena (por ser um cidadão estrangeiro — no caso, brasileiro) e que teria de pagar uma indemnização de oito mil euros à família da vítima. Frederico, porém, acabaria por aproveitar uma saída precária, em 1998, para fugir para o Brasil, onde ainda se encontra a viver com a mãe. Neste caso, o bispo D. Teodoro Faria não chegou a abrir um processo canónico, pelo que a Igreja Católica nunca puniu o sacerdote.
Entre os processos tornados públicos, há ainda a história do padre Francisco Serra que, em 2000, foi acusado de abuso sexual de uma rapariga de 12 anos, acolhida pelo lar Flor-de-Lis. A vítima viria a negar tudo em julgamento e o sacerdote acabaria por ser absolvido pelo Tribunal de Leiria. E há também outros casos de padres que foram investigados por abuso sexual, mas que vieram a revelar-se falsos, ou sobre os quais o Ministério Público não conseguiu, depois, provas suficientes para sustentar uma acusação.
São disso exemplo duas denúncias relacionadas com o mesmo padre, Anastácio Alves, investigadas em anos diferentes, no Funchal, e que acabaram por ser arquivadas por falta de provas. Os dois processos, consultados pelo Observador, revelam que, no caso de 2005, a vítima acabou por vir mudar a versão dos factos e dizer que era tudo falso. Na queixa feita por uma outra vítima, dois anos depois, a PJ considerou que o seu depoimento não era coerente e o Ministério Público arquivou o caso. Também nesta altura, era o bispo D. Teodoro quem estava à frente da diocese. Dez anos mais tarde, já com o padre colocado numa paróquia estrangeira, surgiu uma nova queixa, dirigida à diocese através de uma carta anónima e mantida em segredo. A PJ só soube deste terceiro caso pela Comissão de Proteção de Menores meses depois, em 2018. Essas novas suspeitas estão ainda a ser investigadas, mas o padre está desaparecido.
Entre os casos que levaram padres a tribunais, há três mais recentes, todos eles consultados pelo Observador. O mais conhecido será, provavelmente, o do padre que, à data dos abusos, era vice-reitor do Seminário do Fundão e que cumpre agora uma pena de dez anos de cadeia, a que foi condenado em 2013. O sacerdote Luís Mendes nunca assumiu os seus crimes e ainda hoje se diz inocente. Contratou, aliás, o advogado de José Sócrates, João Araújo, para tentar que a sua pena seja revista.
Dois anos depois desta condenação, um padre da Golegã foi também condenado por abuso sexual de menores, mas a uma pena suspensa de 14 meses. António Júlio Santos já está, atualmente, de novo em funções, depois de ter cumprido as penas civis e canónicas.
E mais recentemente, em 2016, um padre de Vila Real que manteve diálogos com teor sexual com duas crianças que estavam acolhidas numa instituição em Bragança foi condenado a uma pena suspensa de 20 meses. Pedro Ribeiro ainda se encontra recolhido num mosteiro, a cumprir a pena canónica.
Como agiu a Igreja em Portugal? Depende do bispo
Perante a falta de números na Igreja e na Justiça, é praticamente impossível saber se as estruturas eclesiásticas investigaram todas as suspeitas chegadas ao seu conhecimento e se as reportaram às autoridades civis, ou as mantiveram em silêncio. Os quatro casos investigados pelo Observador mostram que não há um padrão: as várias dioceses reagiram de forma diferente perante as suspeitas de crime. Houve quem procurasse manter os casos longe dos olhos da polícia e em silêncio, mas também quem colaborasse desde o início e até fosse mais longe no castigo ao padre do que os próprios tribunais.
Do ponto de vista formal, quase todas elas seguiram as regras canónicas aplicáveis: abriram processos de investigação prévia e remeteram as conclusões para o Vaticano. Exceção feita no caso do Funchal, em que a Igreja só decidiu investigar o padre à terceira suspeita. E, mesmo assim, não a comunicou à polícia.
Em três dos quatro casos a que o Observador teve acesso, as denúncias que deram origem a processos judiciais partiram sempre ou das famílias das vítimas ou da imprensa. Só num dos casos foi a própria estrutura eclesiástica a dirigir-se ao Ministério Público para comunicar as suspeitas.
Na ilha da Madeira, o padre Anastácio Alves foi alvo de denúncias pela primeira vez em 2005. Dois anos depois, outro menor apresentou queixa na PJ contra ele. Nessas duas ocasiões, segundo explicou ao Observador uma fonte próxima da diocese do Funchal, o bispo em funções, D. Teodoro de Faria (o mesmo que, em 1993, testemunhou a favor do padre Frederico), optou por não abrir um processo interno, tendo esperado pelo desenrolar das investigações policiais.
Uma informação que não foi possível confirmar, uma vez que aquele bispo, hoje reformado, não respondeu a nenhuma das tentativas de contacto do Observador e a diocese recusou esclarecer o que foi feito na altura.
O que é certo é que, quando a primeira investigação policial começou a inquirir pessoas da estrutura da Igreja Católica, Anastácio Alves foi mudado de funções e enviado para auxiliar de outro sacerdote em quatro paróquias da diocese. Mais tarde, após o arquivamento do segundo caso, e já com D. António Carrilho no lugar de bispo, foi colocado na Suíça, para prestar apoio numa paróquia de emigrantes portugueses.
Só mais de dez anos depois — já em 2018 e numa altura em que o tema dos abusos sexuais na Igreja se tinha tornado um escândalo internacional, com recados frequentes do Papa —, a diocese reagiu de forma diferente. Perante uma terceira denúncia, que chegou numa carta anónima, o bispo D. António Carrilho decidiu afastar de funções o padre, que, à data, estava numa paróquia em França. Ainda assim, não disse nada às autoridades. Fonte próxima da diocese argumentou que foi a família da vítima que pediu para não o fazerem.
Também no processo do ex-vice-reitor do seminário do Fundão, Luís Mendes, que foi condenado a uma pena de prisão de dez anos, a Igreja não disse nada à polícia, apesar de já ter conhecimento dos casos. Segundo se conclui pelos documentos que constam no processo, o relato dos abusos chegou ao conhecimento da hierarquia eclesiástica pelo menos três semanas antes de os pais dos menores terem apresentado queixa na Polícia Judiciária. Mas o padre que recebeu essa denúncia não a transmitiu ao bispo, segundo disse a diocese ao Observador.
Durante a investigação policial que se seguiu, porém, a diocese da Guarda colaborou com as autoridades, disponibilizando elementos e permitindo às autoridades o acesso aos espaços da Igreja. Ainda assim, numa reunião com os pais dos seminaristas após a queixa, o bispo da Guarda, D. Manuel Felício, não escondeu o desagrado e disse-lhes que, antes de formalizarem a queixa, deviam ter ido à Igreja — como se lê no processo consultado pelo Observador. Já em fase de julgamento, através de um parecer de D. Manuel Felício e de um especialista em Direito Canónico, a diocese conseguiu invalidar o testemunho do único padre que, ouvindo as vítimas, acreditou nelas, argumentando que o sacerdote tinha sabido do caso em contexto de direção espiritual, estando obrigado ao sigilo.
Atualmente, segundo fontes próximas da diocese ouvidas pelo Observador, o bispo continua a acreditar na inocência do padre — mesmo após a sentença ter sido confirmada por dois tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, em 2017. D. Manuel Felício visita-o regularmente na prisão e encoraja os padres da diocese a fazerem o mesmo. O Observador sabe ainda que o advogado João Araújo, que representa José Sócrates no processo Marquês, foi contratado para tentar reabrir o caso e tirar o padre da cadeia da Guarda, onde se encontra a cumprir 10 anos de prisão.
Em Vila Real, onde o padre Pedro Ribeiro foi condenado a 20 meses de pena suspensa por abuso sexual de menores, por manter conversas sexualmente explícitas através da Internet com duas menores de 10 e 12 anos, o caso foi bem diferente. A denúncia às autoridades partiu da própria estrutura eclesial e o processo canónico acabaria por resultar numa pena mais longa para o padre do que a aplicada pelo tribunal — quatro anos de residência num mosteiro, durante os quais está suspenso das suas funções enquanto sacerdote, estando apenas autorizado a celebrar missas no interior da propriedade, acompanhado pelos outros padres que lá residem. A Igreja pediu-lhe ainda que se abstivesse de utilizar as redes sociais. Apesar de a pena civil se ter extinguido no ano passado, o sacerdote ainda se encontra a cumprir a pena canónica.
Já no processo do padre António Júlio dos Santos, da Golegã, condenado a 14 meses de pena suspensa por ter abusado de duas menores, as autoridades só souberam das suspeitas quando o jornal regional O Mirante publicou uma notícia. Nessa altura, porém, as hierarquias da Igreja e dos escuteiros católicos (um dos abusos foi cometido num acampamento de escuteiros) já sabiam do caso e até já havia um processo de investigação interno a decorrer.
Aliás, segundo explicou ao Observador uma fonte próxima do processo, a diocese de Santarém começou a estar “atenta” ao comportamento do padre e a investigar as ações dele logo após o primeiro abuso, durante o acampamento no final de outubro de 2013. E o padre sabia que já estava a ser investigado quando repetiu o abuso, sobre outra menor, no início de novembro. Mesmo assim, a Igreja manteve tudo dentro de portas e só em dezembro, depois da publicação da notícia, é que a PJ investigou o caso.
A Igreja acabaria por decidir suspendê-lo do exercício do sacerdócio, como pena canónica, durante os 14 meses da pena suspensa decretada pelo tribunal. Em 2016, porém, ainda antes desse prazo, o bispo de Santarém nomeou o padre para duas novas paróquias, onde hoje ainda está.
Vítimas nem sempre foram tratadas como “vulneráveis”
Helena Gonçalves é a procuradora do Ministério Público responsável pelo gabinete da Família da Criança e do Jovem. Olha para os crimes de abuso sexual praticados por membros do clero da mesma forma que para os mesmos crimes praticados por outros suspeitos. “Em regra, a especificidade da investigação de crimes de abuso sexual de crianças não se situa em aspetos relacionados com a qualidade do agente do crime, mas com a vítima. De facto, relativamente a este tipo de crime, as diligências a determinar serão as que se afigurarem adequadas e necessárias ao esclarecimento dos factos, tenham elas natureza testemunhal, pericial ou documental, e sem quaisquer restrições que não sejam as respeitantes a meios de prova proibidos”, respondeu, por escrito, ao Observador.
A magistrada refere mesmo que os “contactos com a Igreja Católica são efetuados de acordo com o previsto nas normas processuais penais, nos exatos termos dos contactos realizados com outras entidades que possam ter intervenção no processo”. Ou seja, não é por estes crimes acontecerem dentro da estrutura da Igreja que têm um tratamento diferente. Talvez seja por isso que a Justiça não analisa os processos, em termos estatísticos, de acordo com as suas profissões.
Helena Gonçalves lembra que, de acordo com a lei, as crianças vítimas de crimes sexuais são consideradas vítimas especialmente vulneráveis, o que significa que gozam de determinados direitos. Por exemplo, devem ser ouvidas o mínimo de vezes possível e sempre acompanhas pelo seu responsável legal. As inquirições e os exames médicos devem decorrer sem atrasos e deve ser-lhes fornecido apoio psicológico. Regras que nem sempre foram tidas em conta nos processos consultados pelo Observador.
No caso de Vila Real, em que o padre foi condenado por manter conversas de teor sexual pelo Facebook, não consta no processo qualquer perícia às vítimas e as declarações para memória futura só foram recolhidas um ano depois da queixa-crime.
Já no processo aberto em 2005, no Funchal, as perícias psiquiátricas levaram quase um ano a serem feitas. E, no dia em que essa vítima foi ao Ministério Público mudar o depoimento e dizer que, afinal, era tudo mentira, ia acompanhada de uma pessoa que não era a sua representante legal — pelo contrário, era uma pessoa com ligações à Igreja. Recorde-se que este rapaz, apesar de, à data, viver no seminário, tinha formalizado a queixa acompanhado do pai, que não foi informado deste volte face no processo até a denúncia ser arquivada.
Sem falar em casos concretos, a procuradora refere também que estas vítimas têm direito a ser indemnizadas, “ainda que não tenha sido deduzido pedido de indemnização civil”. De facto, tanto o tribunal do Fundão como o de Bragança, alargaram a todas as vítimas os pedidos de indemnização que tinham sido feitos apenas por algumas delas. Já no caso da Golegã, nenhuma mãe avançou com qualquer pedido de indemnização e o tribunal nada disse.
O que mandam as normas da Igreja?
A Igreja Católica tem normas muito concretas para reger todo o seu campo de ação. Por um lado, existem as leis do Vaticano, um Estado independente com o seu próprio território. Por outro lado, existe a Santa Sé, uma entidade de direito internacional que tem relações diplomáticas com praticamente todos os países do mundo, incluindo Portugal. A Santa Sé tem soberania sobre a cidade do Vaticano e tribunais próprios para julgar os membros do clero e as instituições religiosas abrangidos pelo direito canónico.
É no Código do Direito Canónico, publicado em 1983, que estão todas as normas de como a Igreja deve agir quando um dos seus membros comete um crime. Em 2001, porém, o Papa S. João Paulo II passou o julgamento dos delitos mais graves, entre eles os de abuso sexual, para a competência exclusiva da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF, um dos principais “ministérios” do governo da Igreja). E passou a ser a própria cúria romana a dar indicações aos bispos de como deviam agir.
Nove anos depois, e já na sequência do escândalo na Irlanda, o Papa Bento XVI reforçou as indicações sobre os delitos mais graves cometidos pelo clero. E, em 2013, a Conferência Episcopal Portuguesa — tal como muitas outras no mundo — adotou orientações próprias para que os bispos portugueses agissem.
A Igreja tem de dizer à polícia?
De acordo com a lei, a Igreja não tem de denunciar os casos à polícia. Nem a lei civil portuguesa nem a canónica obrigam padres ou bispos ou qualquer outra pessoa na estrutura da Igreja a denunciar um crime. É certo que também não proíbe ninguém de o fazer, mas aconselha, pelo contrário, alguma prudência.
Confrontado com uma denúncia, um bispo deve avançar, primeiro, com uma investigação prévia (interna), que deve ser feita “com o devido respeito, a fim de proteger a discrição à volta das pessoas envolvidas, e com a devida atenção à sua reputação”, lê-se nas normas da Conferência Episcopal Portuguesa para os casos de abuso. Uma ideia reforçada no Código do Direito Canónico, que estabelece que se deve evitar que, com a tal investigação prévia, “se ponha em causa o bom nome de alguém”.
Ao Observador, várias fontes eclesiásticas reconhecem que a questão não é consensual nem dentro da própria Igreja. Um dos exemplos apontados é o do padre Abel Maia, de Fafe, que foi investigado pela Polícia Judiciária depois de o bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, ter entregue aos investigadores uma denúncia que tinha acabado de receber por parte de outro padre. Abel Maia acabaria ilibado das acusações, já as suspeitas tinham sido divulgadas pela comunicação social — com todas as consequências reputacionais que daí surgiram.
Por outro lado, mesmo que a averiguação prévia conclua que há razões para acreditar numa qualquer denúncia, o bispo continua a não estar obrigado a comunicá-la à justiça civil. Deve, isso sim, aconselhar as vítimas a irem, elas próprias, à polícia, enquanto faz avançar, internamente, um processo canónico.
É isso que dizem as normas da CEP, que falam do aconselhamento às vítimas como uma forma de “promover a participação imediata dos factos às autoridades civis competentes”. Foi isso também que defendeu o cardeal D. António Marto, vice-presidente da CEP e uma das figuras cimeiras da Igreja em Portugal, numa entrevista ao Observador no ano passado, ao afirmar que uma das prioridades de um bispo ao saber de uma suspeita é “aconselhar as pessoas a fazer a denúncia à autoridade civil”.
O cardeal lembrou que há países em que “é obrigatório a própria diocese fazer a denúncia à autoridade civil”, destacando que está até previsto o “julgamento canónico dos bispos ou cardeais” que “incorram no encobrimento dos casos” e que “não os divulguem às autoridades civis”. Mas sublinhou que, em Portugal, “em princípio, deverá ser a vítima” a denunciar o caso à polícia.
Estas referências são frequentemente usadas como argumento para a hierarquia da Igreja não apresentar logo às autoridades civis as denúncias que lhe chegam, associadas ao facto de a lei portuguesa não obrigar os cidadãos, de uma forma geral, a reportar suspeitas de crimes e somadas à posição de muitas famílias, que preferem guardar os casos em segredo.
Pelas regras da Igreja em Portugal, a obrigação de colaborar com a justiça — e com transparência total — vem apenas depois, quando e se houver uma investigação judicial em curso. Paulo Adragão, especialista em Direito Canónico, lembra que “os membros da Igreja, para além de batizados, são também cidadãos do seu país, pelo que não é pelo facto de pertencerem à Igreja que estão isentos de cumprir a legislação civil”. O professor sublinha mesmo que as normas da CEP “determinam transparência, prontidão e estreita colaboração com a justiça civil”.
Mais: “Cada pessoa jurídica canónica cooperará com a sociedade e com as respetivas autoridades civis; tomará em atenção todas as indicações que lhe cheguem e responderá com transparência e prontidão às autoridades competentes em qualquer situação relacionada com abuso de menores, na salvaguarda dos direitos das pessoas, incluindo o seu bom nome e o princípio da presunção de inocência”, lê-se na parte do documento referida por Paulo Adragão.
A “enorme obrigação moral” de denunciar
Segundo a lei penal, os crimes de abuso sexual contra crianças são, por natureza, públicos — ou seja, não é preciso que a vítima se queixe para que o Ministério Público avance com a abertura de um inquérito. Aliás, a investigação deve avançar mal as autoridades tomem conhecimento do crime, mesmo que a vítima não o pretenda. E esse conhecimento pode chegar através de uma denúncia (mesmo que anónima) ou, por exemplo, através de uma notícia na comunicação social.
Como já vimos, os padres e os bispos, como qualquer outro cidadão, não estão obrigados, por lei, a comunicar à justiça um crime de que tenham sabido. A lei apenas obriga à denúncia polícias e funcionários públicos no exercício das suas funções. E, entre estes, só incorrem no crime de omissão de denúncia os superiores hierárquicos que não tenham comunicado crimes cometidos pelos seus subordinados. Mais: este crime de omissão só se aplica em crimes contra a humanidade, como a tortura, refere o Código Penal.
É segundo este princípio que nenhum membro da Igreja pode ser obrigado ou responsabilizado penalmente por não comunicar às autoridades um crime de que teve conhecimento. Há, porém, quem entenda que, apesar de não haver uma obrigação legal, há uma obrigação moral — a mesma que pode haver para qualquer cidadão comum que tenha conhecimento de um crime. Ainda para mais nos casos de abuso sexual de menores — que, pela tal natureza pública, não dependem da queixa da própria vítima. “Qualquer bispo é como qualquer outro cidadão”, resume Hans Zollner, o jesuíta alemão que o Papa Francisco encarregou de organizar o encontro inédito com todos os presidentes das conferências episcopais do mundo, que decorre no final de fevereiro no Vaticano, e onde a cúpula da Igreja Católica pretende encontrar soluções para o problema dos abusos sexuais.
Ao Observador, Hans Zollner lembra também que é diferente falar de casos recentes ou de outros que aconteceram há várias décadas — como são muitos dos conhecidos dentro da Igreja. “Quando uma pessoa vem ter comigo e me diz que, há trinta anos, sofreu abusos deste ou daquele padre, a maioria delas — e eu falei com muitas — não querem, pelo menos à partida, que isto seja público”, adverte o teólogo e psicólogo alemão, também presidente do Centro de Proteção de Menores da Universidade Gregoriana e membro da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores.
“Para mim, isto é muito diferente de um caso em que eu saiba de abusos que estejam a acontecer agora. Aí, em alguns países, eu tenho uma obrigação legal de reportar, mas isto é apenas em alguns países. Mesmo na Europa, apenas alguns países obrigam qualquer cidadão a reportar imediatamente. Mas tenho uma enorme obrigação moral de reportar, claro”, acrescenta.
Questionado sobre como deve ser a cooperação entre a hierarquia da Igreja e as autoridades civis, Hans Zollner diz que a resposta é “muito simples e muito clara: a Igreja tem de respeitar a lei e tem de fazer tudo o que puder ser feito para ajudar a polícia a descobrir a verdade”. Além disso, o alemão sublinha que a própria investigação interna da Igreja só tem a ganhar com a colaboração, uma vez que as autoridades civis têm maior capacidade para investigar os crimes e as conclusões dos inquéritos policiais podem servir de base à investigação interna.
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Texto João Francisco Gomes e Sónia Simões
Edição Sara Antunes de Oliveira e Miguel Pinheiro
Ilustrações Mariana Cáceres
Mapas Raquel Martins
Fotografia João Porfírio
Vídeo Diamond Dallas/Shutterstock
Web design e desenvolvimento Alex Santos
Coordenação multimédia Catarina Santos
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