A carreira de Sidibé começa sem querer em 1955 por convite de um fotógrafo francês, em cujo estúdio se formou como assistente. Em 1956, adquire uma primeira Brownie Flash, instrumento da sua autodeterminação como fotógrafo profissional. Em 1958, estabelece-se então por conta própria no hoje lendário Studio Malick, em Bamako, onde passaria o resto dos dias tirando retratos por tuta e meia, desbaratando negativos por quem os quisesse levar, fazendo conversa, bebendo chá. Contou, certa vez, de sorriso estampado, que antes de algumas sessões fotográficas, clientes seus passavam perfume pelo corpo, esperando que perpassasse para os retratos. De certa maneira, tinham razão.

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Malick Sidibé (foto: galeria Magnin-A)

Cerca de dois anos após a abertura do Studio Malick, o Mali decide copiar Sidibé, por assim dizer, conquistando a independência de França em 1960. Tal produziu no país, entre outras, duas mudanças relacionadas — embora, de certo modo, antagónicas. Por um lado, o Mali passa a viver sob o socialismo, em regime militar; por outro lado, passa a ouvir-se música rock e soul por toda a parte. Notabilizando-se entre as gerações jovens pelas suas fotografias a preto e branco em festas e bailes em Bamako, o primeiro período do trabalho de Sidibé captura uma deflagração sem retorno da música norte-americana e inglesa na cultura popular maliana. Tal reputação conduziria um sem-número de pessoas ao Studio Malick ao longo dos anos 1960 e 1970, em parte com o intuito de se retratarem como estrelas pop. Assim se tornou Sidibé, para centenas de malianos anónimos, enquanto fotógrafo de bairro, um género de Richard Avedon ou Andy Warhol disponível. Com uma diferença talvez fundamental. Como observou recentemente o escritor Teju Cole a propósito de Seydou Keïta (outro extraordinário retratista maliano, de uma geração um pouco anterior), trata-se de um negro fotografando negros; e de negros deixando-se fotografar por um negro — condição de possibilidade, naquele contexto histórico particular, de um olhar não colonial. Em vez de fotografias de indígenas, passámos a ter retratos de indivíduos.

A partir dos anos 1990, a par de um interesse internacional por outros grandes artistas malianos como Ali Farka Touré e Salif Keita, Malick Sidibé viria a obter o reconhecimento mundial que nunca procurou (tal como Keïta). A sua obra acabaria por ser exposta em todos os grandes palcos da fotografia e a ser editada em livro. Antes de morrer, Malick Sidibé receberia ainda o Hasselblad Award (2003); o Leão de Ouro da Bienal de Veneza (2007); e o Prémio de Carreira ICP Infinity Award (2008) — três dos mais prestigiados reconhecimentos reservados a fotógrafos. Entretanto, Malick Sidibé nunca deixou de ser encontrado à porta do Studio Malick, recebendo pessoas, desbaratando negativos por quem os quisesse levar, bebendo chá. A sua morte entristece o mundo da fotografia, ao qual resta no entanto a alegria de o poder celebrar.

Humberto Brito dirige a Forma de Vida. É actualmente pós-doc do Instituto de Filosofia da Nova e do Programa em Teoria da Literatura.

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