Já vivemos mais anos sem ele do que com ele: River Phoenix morreu aos 23 anos há 25 anos. Não admira por isso que comecem agora a surgir jovens adultos que, tendo-se desencontrado do ator em vida, o mitificam em Tumblrs e blogs de homenagem. Uma fã, que tinha três anos quando ele morreu, escreve:

“Invejo as pessoas com a capacidade de o ver apenas como um grande ator, mas questiono-me se essas pessoas de facto existirão”.

A morte precoce de um ator bonito, ainda por cima por overdose, tem um efeito retroativo na sua vida, reescreve-a em função das especulações que melhor servem o mito: River Phoenix era um ingénuo, um inadaptado, uma alma torturada pelos impositivos da fama como qualquer menino-prodígio de Hollywood, já a dar sinais de uma assustadora maturidade emocional em filmes como “Stand by Me” (de 1986) ou “Fuga Sem Fim” (de 1988, que lhe valeria uma nomeação para o Óscar de Melhor Ator Secundário).

[o trailer de “Stand By Me”:]

Mas talvez se recorde quem já cá andava nos seus tempos áureos, que ainda em vida ele era também o que a indústria queria que ele fosse. As miúdas compravam a Bravo para ficar com o poster das páginas centrais. De cabelo louro pelo queixo, de um lado atrás da orelha, do outro acompanhando a inclinação da cabeça, pose muito típica daquela época.

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Irritava-me, snob desde cedo, que essas miúdas lhe chamassem “River Fóinix” como chamavam ao seu contemporâneo “Jóni Dip”, e não conseguissem nomear um único filme em que ele tivesse entrado. Aqui residia o paradoxo Phoenix, um ídolo teen a fazer de prostituto narcoléptico num filme de Gus Van Sant (“My Own Private Idaho”, em Portugal “A Caminho de Idaho”, de 1991).

[o trailer de “A Caminho de Idaho”:]

E os conflitos interiores não paravam aqui: River Phoenix era um missionário numa era tendencialmente individualista. Defendia ativamente o veganismo num tempo em que, pelo menos cá pelo burgo, se um vegetariano pedisse qualquer coisa sem carne, propunham-lhe uma omelete de fiambre e ainda se riam. Felizmente as coisas mudaram muito nesse aspeto, mas não sei como sobreviveria a mensagem de Phoenix aos folclores dietéticos do século XXI. A todos os folclores, aliás.

Nas entrevistas, parecia sempre relutante e inseguro ou simplesmente impaciente. Não se empenhava no marketing pessoal como nas causas ou no trabalho. Desceu aos confins da condição humana para estudar para o seu papel em “My Own Private Idaho”, de tal forma que se diz ter começado nessa altura a consumir as drogas que o viriam a matar, à porta do Viper Room a 31 de Outubro de 1993.

E agora um dado realmente curioso (ou talvez não): no dia em que River Phoenix morreu, a minha mãe ofereceu-me um porquinho-da-índia a que chamei Devo. Devo era o nome da personagem protagonizada por Phoenix na comédia “Amar-te-ei Até Te Matar”, de Lawrence Kasdan (1990).

[River Phoenix em “Amar-te-ei Até te Matar”:]

Essa personagem, um bocado esotérica e um bocado perigosa, encarnava exatamente o rapaz dos meus sonhos aos 11 anos. E eu — que na verdade só era snob porque não tinha com quem andar aos melos atrás do pavilhão como as miúdas que diziam “River Fóinix” e “Jóni Dip” — agarrei-me de tal forma a esse namorado imaginário que senti mais a morte de Phoenix do que poderia esperar. Ainda bem que a minha mãe trouxe o porquinho-da-índia para me distrair da perda. É pena que o nome Devo não tenha colado e nos tenhamos todos habituado a chamá-lo de Bichoca.

Não me considero por isso uma das “pessoas com a capacidade de o ver apenas como um grande actor”. É triste que uma vida seja apropriada por tantas narrativas diferentes, cada qual quiçá mais longe da realidade, mas seria muito arrogante da minha parte assumir que reconheço a sua importância apenas pelo seu talento — que era muito, diga-se. River Phoenix, Fóinix, Devo, não interessa: 25 anos depois, sentimos todos falta de quem éramos quando ele era vivo e do que ele ainda tinha para viver.