Se a importância de um músico se medisse pelo número dos discos gravados, o contrabaixista inglês Dave Holland, hoje com 72 anos, teria poucos rivais. Nem ele sabe exatamente em quantos entrou: “Não os tenho contado. Há uma discografia no meu site que provavelmente não está completa. É uma boa lista, mas provavelmente haverá mais alguns”, conta o músico ao Observador, por telefone e a partir da Bulgária. Na tal lista estão 188 discos. Um dos últimos, Aziza, editado em 2016 e gravado com uma nova formação de Holland — que o une ao saxofonista Chris Potter, ao baterista Eric Harland e ao guitarrista Lionel Loueke — será apresentado esta quinta-feira, 8, em Portugal, no festival Guimarães Jazz, com Kevin Eubanks a substituir Loueke em palco.

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O número de discos salta à vista, mas se o critério fosse antes o gabarito dos parceiros musicais, Dave Holland também teria trunfos impressionantes para apresentar. Poderia gabar-se disso, dizer que ao longo da carreira tocou com alguns dos mais importantes músicos da história, de John McLaughlin a Chick Corea, de Sam Rivers a Evan Parker (com quem ainda este ano gravou), de Anthony Braxton a Pat Metheny, de Herbie Hancock a Stan Getz, de Jack DeJohnette a Wayne Shorter. E acima de todos o monstro sagrado do jazz Miles Davis, no seu pico de criatividade.

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Quantos se podem gabar de ter integrado a banda do grande trompetista do Illinois precisamente na transição de Miles Davis do jazz acústico para o elétrico, dos discos canónicos e grandiosos que tinha acabado de gravar, como Nefertiti (sobretudo) e Miles in the Sky para os desafiantes, inclassificáveis e fabulosos Filles de Kilimanjaro e (sobretudo) In a Silent Way e Bitches Brew, em que Holland já tocou? Poucos, muito poucos. Dave é um deles.

Aos 72 anos, ninguém cobraria ao inglês se estivesse a viver de louros passados, a ir para estúdio de forma esparsa ou a não ir de todo, a dar alguns concertos esporádicos por ano (entre o Reino Unido em que nasceu e os Estados Unidos da América onde vive há décadas) ou a não atuar sequer. Holland, porém, só olha para a frente, tem permanentemente na mira o próximo concerto, a próxima ida a estúdio. Com o Observador, aliás, terminaria a conversa dando pistas sobre o que acabou de gravar, depois de uma digressão de verão. Sobre o que planeia editar de seguir. Antes, porém, convém voltar atrás.

Nascido em Wolverhampton, a 1 de outubro de 1946, Dave Holland começou pelo ukulele, em que se iniciou com apenas quatro anos. Seguiu-se a aprendizagem da guitarra, que serviu de antecâmara para o baixo e só depois o contrabaixo, numa época (final dos anos 1950 e início dos anos 1960) em que os seus ouvidos estavam atentos sobretudo à grande moda da época em Inglaterra, a música skiffle, espécie de mistura entre jazz, blues e folk, que serviu de inspiração a muitos músicos rock do final dos anos 1960.

Dave Holland conta como não ficou imune ao vírus do pop-rock e só descobriu o jazz alguns anos depois: “Tinha dez anos e ouvia tipos como o Buddy Holly e o Little Richards na rádio. Tocava ukulele mas pedi uma guitarra para o meu décimo aniversário — e comecei a aprender a tocar aquelas canções”.

A música skiffle tinha um grande impacto na Inglaterra desses tempos, no final da década de 1950, início da década de 1960. Influenciou muitos jovens músicos da altura, que depois prosseguiram e formaram bandas de rock and roll. Gente como os The Rolling Stones e os The Beatles. Era dessa geração e, aos 13 anos, formei uma banda com uns amigos, começámos a tocar essa música [skiffle] e a música popular que ouvíamos na rádio”, refere o contrabaixista inglês.

Aos 15 anos, Dave Holland tomou uma decisão radical: abandonar a escola e “tornar-se profissional”. Na altura, o sonho era ser músico de pop-rock e a guitarra o principal instrumento. O jazz viria mais tarde, mas a paixão pela música existia há muito, conta: “Passava muito tempo a tocar e aos 15 anos tive uma oportunidade de fazer algum dinheiro tocando em cafés e bares. Comecei a conseguir viver da música, não ganhava muito dinheiro mas ganhava algum. Comecei a focar-me na música e em tocar com outros músicos. Na vida, há que seguir os sonhos. Não sabia onde é que aquilo me levaria, não sabia que terminaria aqui, mas queria seguir a minha paixão e ver no que dava”.

Começar a tocar guitarra baixo demorou um par de anos (iniciou-se aos 17), interessar-se pelo jazz também. “A paixão pelo jazz evoluiu à medida que tomei contacto com ele”, explica. “Isso levou-me para Londres, eventualmente, mais tarde para Nova Iorque — e por aí fora”.

Dave Holland, alguns (bons) anos mais novo. Fotografia do site oficial do músico

Se há cidade que foi decisiva para a afirmação de Dave Holland foi precisamente Londres. Foi aí que pôde estudar com James Edward Merrett, reputado músico que tocava à época na Orquestra Filarmónica de Londres e que viria a tocar na Orquestra Sinfónica da BBC. Foi aí que, por sugestão de Merrett, candidatou-se a uma bolsa para estudar durante três anos na Escola de Música e Teatro de Guildhall, que lhe foi concedida. Foi aí, também, que começou a tocar com a nata do jazz britânico. E foi aí, igualmente, que Miles Davis o ouviu pela primeira vez, numa noite que funcionaria como rampa de lançamento para a sua carreira internacional.

A noite em que chamou a atenção de Miles Davis não teria existido se antes Dave Holland não tivesse feito o que fez. Por um lado, a aprendizagem académica deu-lhe uma bagagem musical e cognitiva que o músico ainda hoje reconhece ter sido decisiva. Por outro lado, as muitas horas a tocar não foram menos importantes. Holland ensaiava numa garagem, a mesma que até 1959 albergou o famoso clube de jazz Ronnie Scott (o número 39 de Gerrard Street, na zona do Soho). Depois, atuava na nova morada do clube, bem como noutros clubes e pequenas salas de concerto locais.

Não consigo contar o número de horas [que tocava], mas tinha ensaios a tocar música clássica, tocava ao final do dia, à noite, às vezes numa jam session a horas tardias… Eram várias horas por dia. Era o meu amor, a minha obsessão, tocava a maior parte do tempo [risos]. Também passava muito tempo a ouvir música”, refere.

Londres, para Dave Holland, “foi uma grande oportunidade para aprender mais sobre música. Havia muitas abordagens diferentes ao jazz a acontecer ali, ouvia-se do estilo mais tradicional ao mais contemporâneo. Também tocava e ouvia música clássica. Os quatro anos que passei em Londres foram um período fantástico de aprendizagem histórica e musical e de perceção do que vinha da América — a música de John Coltrane, do Cecil Taylor e por aí fora”. Durante esses quatro anos (entre 1964 e 1968), chegou a tocar também com Jimi Hendrix, que morreria pouco depois, em 1970. “Recebi uma chamada para ir para estúdio com o John McLaughlin e passámos uma noite a tocar música com o Jimi. Era um guitarrista incrível, um artista fantástico”.

Uma noite de 1968, Miles Davis, acompanhado pelo baterista Philly Joe Jones, dirigiu-se ao número 47 da Frith Street, em Londres. Entrou no interior do clube de jazz Ronnie Scott (depois de ter mudado de morada) para ouvir o trio do pianista Bill Evans. Quem abria o concerto, contudo, era Dave Holland, com um grupo cujos restantes elementos a história esqueceu. Miles ouviu e decidiu que queria ter Holland na sua banda. “Passadas três semanas, recebi uma chamada do manager dele perguntando-me se poderia voar para Nova Iorque num par de dias, para trabalhar com ele”. O inglês assim fez, juntando-se, mal chegou, ao baterista (e não só) Jack DeJohnette e ao pianista e teclista Herbie Hancock, que se preparava para ir de lua de mel para o Brasil, sendo substituído por Chick Corea.

A simplicidade com que Dave Holland remata o assunto é desconcertante: “Depois trabalhei com ele [Miles Davis], gravámos algumas coisas”. Algumas coisas, sim, alguns dos melhores discos da carreira de um dos maiores músicos norte-americanos da história. Um tipo que “era um músico incrível, muito focado, muito criativo, muito curioso, muito interessado em desenvolver a sua música e com quem era muito inspirador estar e tocar“. Um músico que Holland não encontrou inteiramente no filme Miles Ahead, de Don Cheadle, que “acho que é fictício, não é baseado na realidade, não conta uma história verdadeira, nunca aconteceu da forma como é descrito, não tem nada a ver com o verdadeiro Miles Davis”.

Dave Holland andou na estrada com Miles Davis durante dois anos. Começou por trocar contrabaixo, com o tempo teve de mudar para o baixo elétrico, já que o trompetista apostava cada vez mais num jazz desafiante, cheio de eletricidade, fundindo géneros musicais com futurismo.

A viagem terminaria em 1970, mas Dave Holland tinha muita música por mostrar. Em 1972, ano em que partilhou palco com o pianista Thelonious Monk, lançou o seu primeiro disco em nome próprio para a distinta editora de jazz ECM, com um quarteto por si liderado que incluía Sam Rivers, Anthony Braxton e Barry Altschul. Isto já depois de ter tocado com os dois últimos e com Chick Corea no grupo vanguardista Circle.

Apesar de ter voltado a editar pela ECM nos anos 1970 em nome próprio, os discos mais marcantes que gravou nessa década foram com outros — Where Fortune Smiles, com John McLaughlin, John Surman, Stu Martin e Karl Berger, A. R. C., com Corea e Altschul e Gateway, que registou a estreia de um trio homónimo que juntava Holland a John Abercrombie e Jack DeJohnette (trio que só regressou às edições nos anos 1990). Isto além de vários discos de remonta gravados com o explorador do free-jazz Anthony Braxton, um dos seus grandes parceiros desta década, a par de Kenny Wheeler e Sam Rivers.

Formado na londrina Guildhall School of Music and Drama, Dave Holland já deu aulas e palestras em instituições como a Royal Academy of Music, o New England Conservatory. Fotografia retirada do site oficial do músico

A função de líder de banda foi testada amiúde por Holland, mas foi nos anos 1980 que se intensificou e muito, com vários discos gravados para a ECM, destacando-se o trio Seeds of Time (de 1985), The Razor’s Edge (de 1987) e Triplicate (de 1988). “Foi um momento de responsabilidade, musical e profissional. Esses anos foram uma oportunidade para pensar sobre o tipo de música que verdadeiramente queria fazer e com quem queria realmente fazê-la. Foi o início de uma jornada que continua hoje”, refere o músico ao Observador.

Ser um chamado líder de grupo também tem a ver com dar oportunidade às pessoas desse grupo que se lidera, uma hipótese de também elas assumirem a responsabilidade musical. Tentei e continuo a tentar encontrar músicos que sejam capazes de trazer algo à música, a quem podemos dar algumas ideias de um certo aspeto de composição, mas fora isso podemos deixá-los tocar e expressarem-se dentro do grupo. Isso é algo que vi o Miles Davis e o Duke Ellington fazerem. Essas são as pessoas que para mim são grandes exemplos de como ser um líder de uma banda e ao mesmo tempo dar liberdade aos músicos do grupo para se expressarem à sua maneira”, aponta.

Essa jornada musical a que Holland alude, iniciada nos anos 1980, passava e passa por assumir riscos, recusando repetir notas ou estilos de composição demasiado apegados ao cânone e ao passado. Passa por aproveitar o improviso, o experimentalismo e a fuga a terreno seguro como motores de criação. Foi o que o músico explorou, também, nos anos 1990, uma década especialmente produtiva (e subvalorizada) da sua carreira, em que começou a colaborar mais estreitamente com Herbie Hancock, em que lançou excelentes discos como ExtensionsPoints of View (para a editora ECM, editados com o seu nome e com formação por si liderada) e em que participou ainda em discos de relevo como Voices in the Night, de Charles Lloyd, Trio Fascination: Edition One, de Joe Lovano, Unspoken, de Chris Potter, Angel Song, de Kenny Wheeler, Black Science, de Steve Coleman e da sua banda Five Elements e Thimar, de Anouar Brahem.

A ligação à ECM terminaria na primeira metade dos anos 2000. “Gravei com eles durante mais de trinta anos, tinha uma relação muito boa com a ECM, mas há algum tempo que desejava começar a minha própria editora, para ter mais controlo sobre decisões como datas de lançamento de discos e horários de gravação”, refere o músico. Nascia, então, a Dare2. “Era um sonho há muitos anos e houve a possibilidade de o tornar realidade por volta de 2004. Desde os anos 1990 que produzia os meus discos, portanto não houve nenhum problema técnico. Foi algo que me deu mais controlo sobre o marketing e a agenda das coisas, além da posse das gravações, que é importante. Numa relação normal com a ECM, a editora seria dona das gravações. Achei que era uma oportunidade para as poder passar a ter em minha posse”, refere ainda.

É na Dare2 que Dave Holland tem editado os seus discos em nome próprio desde 2005. Com menos impacto junto do público, não deixam de ser um bom retrato das fases e explorações recentes de Dave Holland. Este ano editou Uncharted Territories, uma viagem aprazível pelo free jazz ao lado do veterano saxofonista Evan Parker (com quem começou a tocar nos anos 1960), do baterista Ches Smith e do proeminente pianista Craig Taborn. Há dois anos, editou Aziza, ancorado no groove do funk-jazz pan-africano, que agora apresenta em Guimarães. Seguir-se-á a edição do álbum que gravou com Chris Potter (também membro dos Aziza) e Zakir Hussein este verão, depois de andarem em digressão.

A vitalidade que Holland ainda demonstra deve-se, em grande parte, ao facto de ainda se sentir desafiado pelo jazz, como explica: “Acho que o jazz foi sempre uma música inclusiva. Continua a crescer, a absorver e incluir todos os tipos de influências, as mais diferentes. Nesse sentido continua a ser o mesmo, ao mesmo tempo que continua a desenvolver-se e a mudar”.

Alertando que “é difícil generalizar”, porque o jazz “é uma música feita por indivíduos, por ideias criativas individuais”, Dave Holland sublinha que “ainda há uma tradição afro-americana na música que é muito importante e depois há a influência que o jazz teve nos outros géneros todos de música, desde logo o hip hop e o rap”. Por outras palavras, mesmo que eventualmente menos popular e reduzido aos nichos, o jazz continua presente noutros géneros musicais pop. “Tal como blues, porque as origens quer do jazz quer do hip hop remontam originalmente aos blues”.

Ele, Dave Holland, quer continuar a levar o jazz para a frente, com uma fonte de música que parece inesgotável — o seu contrabaixo, que o acompanha nas viagens pelo mundo desde que há 50 anos abandonou Londres rumo a Nova Iorque, ao encontro de um trompetista do Illinois.