Aos quatro ou cinco anos – “não me lembro muito bem” – Vicente Wallenstein já era um ator chateado. Ou, melhor, já se chateava enquanto ator. Era o filho de Miguel Guilherme e Ana Padrão em “Gente Feliz com Lágrimas”, uma série da RTP com realização de Zeca Medeiros, que era amigo da família e o trouxe para a sua primeira experiência na representação. “A minha avó é que me acompanhava nas rodagens e ela conta que a dada altura estávamos a rodar uma cena em casa e tivemos três horas para gravar aquilo e tal e que eu tive um momento de ator chateado, ‘epá isto não pode ser, são duas da manhã, tenho que me ir deitar, assim não se respeitam as pessoas’, assim à vedeta. E acho que o Zeca Medeiros me disse: ‘tens toda a razão’”, conta.

Hoje, com 23 anos, Vicente Wallenstein é um dos grandes novos valores do teatro português e que vai estar, a partir da próxima sexta-feira, em “Um outro fim para a menina Júlia”, novo espetáculo de Tiago Rodrigues, a partir de August Strindberg, para ver no Teatro Nacional D. Maria II até dia 24 de Março. Interpreta João, o criado que se torna marido da aristocrata menina Júlia, numa encenação onde Tiago Rodrigues promove uma possibilidade diferente ao suicídio de menina Júlia, sugerido por Strindberg no original. E se eles tivessem mesmo fugido? Esta é a primeira vez que Vicente trabalha com Tiago Rodrigues, que no resto do elenco tem atores mais velhos da casa e alguns dos estagiários que se formaram no ano passado na Escola Superior de Teatro e Cinema e que estão por um ano no Teatro Nacional D. Maria II. “Foi uma surpresa agradável, sou um bocado o outsider do espetáculo. Por um lado pode, inicialmente, ser um bocadinho assustador, porque percebemos que não vamos ter muito tempo, mas é a forma do Tiago trabalhar, quando começamos os ensaios ele explica-nos, muito claramente, o conceito, há liberdade para criares, mas tens pouco tempo. Por outro lado é muito desafiante, esta coisa da rapidez da resposta, coisa com a qual ele joga, há pouco tempo e tens que responder, acredito que colocando os atores em situações ligeiramente desconfortáveis se chega a novos sítios, a sítios fixes, ele nunca me disse isto mas acho que é isso que ele provoca”.

Uma outra educação

Não foi meramente o facto de Zeca Medeiros ser amigo da família que levou o ator-quase-bebé da altura a participar na série “Gente Feliz com Lágrimas”. Talvez pelo tio (José Wallenstein) e pela prima (Catarina Wallenstein) serem atores, talvez pela mãe (Madalena Wallenstein, coordenadora da Fábrica das Artes, programa para crianças e jovens do CCB) o levar muito ao teatro, aos serviços educativos e a espetáculos diversos, talvez por tudo isto e mais alguma coisa, muito precocemente Vicente dizia que queria ser ator.

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Cá há esta coisa de meter as pessoas a decorar, não se promove o pensamento, a educação aqui é antiga. Não podendo alterar isso, existe a possibilidade de criar contextos onde se pode complementar o ensino. Acho essencial que se faça isso”.

Nasceu e viveu em Lisboa até aos seis anos, tendo-se mudado com a mãe e com o irmão (Afonso Wallenstein, afinador de pianos e músico) para Cascais. “Onde a minha mãe tinha uma escola de música e de artes em casa, basicamente. A casa era uma moradia, tinha um anexo e as aulas eram nesse anexo, vivia no meio da malta que estava ali a ter aulas de piano, expressão dramática; comecei com a minha mãe, na verdade. Poucos alunos, um modelo bastante pessoal e próximo das pessoas. Para mim foi fixe, tinha os amigos das aulas em casa, depois eles iam jantar e eu ficava em casa”. Coisa boa. A isto temos ainda que juntar o facto de do primeiro ao quarto ano a sua mãe o ter posto numa escola de ensino moderno, onde o dia se dividia por aulas  das disciplinas básicas, português, matemática, etc, da parte da manhã e atividades — barro, expressão dramática, etc — à tarde. “Foi uma influência grande para mim, interessa-me muito a coisa da educação pela arte, vem da minha mãe. O ensino moderno é algo que está cada vez mais a ser desenvolvido, normalmente por colégios privados, muito inspirados no Brasil, porque lá o ensino moderno está muito desenvolvido. E acho mesmo que as escolas públicas podiam pensar nisso. No Brasil, tens miúdos que juntamente com os tutores definem quais são os seus programas de estudo, o que querem aprender, a avaliação é feita ao caso e tornam-se autónomos desde o início. Há quem diga que é meter uma pressão muito cedo, mas por que não? Há pouca liberdade de pensamento”, afirma.

© André Dias Nobre/Observador

O seu exemplo mais próximo é a Fábrica da Artes, onde, admite, se deleita a observar a ligação que os mais novos estabelecem com a casa, com as pessoas, com as propostas, debates de filosofia e tudo. Ora é claro que Vicente Wallenstein, com toda a sua história, só pode achar que “em Portugal, a educação está profundamente datada, a escola está centralizada na repetição das matérias”, diz antes de continuar. “Tive um professor de geografia que escrevia a matéria no quadro e nós tínhamos que escrever como ele escrevia e responder nos testes com aquele esquema. Há esta coisa de meter as pessoas a decorar, não se promove o pensamento, a educação aqui é antiga. Não podendo alterar isso, existe a possibilidade de criar contextos onde se pode complementar o ensino. Acho essencial que se faça isso”.

“A cabeça entre as mãos”, o novo ciclo para explicar o cérebro aos mais novos

Dito isto tudo, será de estranhar que ao chegar ao décimo ano, incitado pela mãe, o ator tenha optado por um curso do ensino corrente? “Ainda pensei, na passagem do nono para o décimo ir para teatro, mas os meus pais não acharam muita piada. Sugeriram que fosse fazer um curso normal, e eu, menino da mamã, acatei a sugestão e fui para ciências. E depois era ‘então o que é que vocês querem ser?’ e eu dizia ‘ator’ e era estranho, perguntavam-me logo o que estava ali a fazer. Dizia ‘olhe, agora tenho que acabar isto’”, enquadra. Terá ficado respondida a nossa pergunta? Pelo menos uma parte sim. Sobretudo pelo conhecimento tido, pelas experiências já vividas ao nível da educação, por esta coisa da complementaridade, que sempre esteve presente no seu crescimento: “A minha mãe disse: não vás para a escola de teatro, tiras um curso normal e vais fazendo uns workshops. O Teatro da Garagem tem um workshop semanal, com uma apresentação no Verão, durante os três anos do secundário fiz sempre esse workshop e fui estando ali. Nunca foi uma coisa que levasse muito a sério, não lia teatro, só quando se começou a aproximar o fim do secundário é que comecei a pensar no Conservatório”.

Os palcos não escolhem idades

Vamos repetir, apenas para fins estatísticos: Vicente Wallenstein tem 23 anos. Ainda não tinha acabado o Conservatório quando se estreia na Comuna com “Play Loud!”, uma encenação de Álvaro Correia, que funcionou “como um estágio a meio da escola”, garante, aquela teoria que defende que meter as mãos na massa – ou conhecer efetivamente o sítio onde imaginamos trabalhar no futuro – por uns meses vale muito mais que vários anos em salas de aula. No mesmo tem a sua primeira incursão na Companhia de Teatro de Almada, em “As Possibilidades”, de Howard Barker e encenação de Rogério de Carvalho: “Foi duro, ainda me sentia bastante verde, como ator, o trabalho com o Rogério é uma coisa muito mais ao pormenor, o Rogério é muito exigente no bom sentido, ele apertou, sofri, mas foi assim o segundo momento que foi chave para perceber como era como ator, o que precisava de melhorar, as minhas características, por aí”.

Voltou a ser encenado por Álvaro Correia na Comuna em “Depois do Silêncio”, de Arne Lygre. Álvaro Correia foi por isso “basilar” neste começo, neste primeiro apalpar de palco. Tal como Cláudia Varejão, bem antes da estreia em palcos e da Escola Superior de Teatro e Cinema. Foi com a cineasta que se estreou em cinema, no filme “Um Dia Frio”, de 2009. “Depois da série [“Gente Feliz com Lágrimas, RTP, 2002] ficou a ressoar aquela coisa de que já tinha sido ator e queria continuar ou experimentar outra vez. Apareceu o casting, conheci a Cláudia, a gente deu-se muita bem, acabei por ficar e foi uma experiência incrível, era uma curta e ainda que não fosse uma grande produção já era assim qualquer coisa, na altura para mim foi fascinante. Foi depois dessa curta que ganhei mais consciência, que comecei a repetir mais a coisa de ‘se calhar quero mesmo ser ator’”, garante.

Às vezes os atores têm aquela coisa de trabalhar a imagem e já cheguei a pensar que tenho que ir ao ginásio e cuidar da minha imagem, mas depois as pessoas dizem-me que tenho uma aparência muito particular e mais vale ficar assim”, diz.

Entretanto, acabado o Conservatório, prossegue o trabalho. Funda As Crianças Loucas – companhia que tem com João Cachola, Bruno Ambrósio, Rodrigo Tomás e Sílvio Vieira – trabalha como ator com Os Possessos – estrutura de Catarina Rôlo Salgueiro, João Pedro Mamede e Nuno Gonçalo Rodrigues – em “A Marcha Invencível” e “O Novo Mundo”; com o Palco 13, encenação de Gonçalo de Carvalho de “Purificados”, de Sarah Kane; e ainda novamente com a CTA, desta vez para “O Mártir”, texto de Marius Von Mayenburg e encenação de Rodrigo Francisco. Se em “O Novo Mundo” era um de dois gémeos (a par de Guilherme Moura) que eram uma espécie de narradores da coisa e onde passava grande parte do espetáculo a fazer cavalinhos numa cadeira de rodas, em “O Mártir”, fazia de um jovem que se radicalizava pelo cristianismo, numa interpretação brilhante, num bem-dizer do texto incrível, tudo no ponto. E isto faz-nos perguntar-lhe se se considera um ator de texto:  “O que me importa mais é estar sintonizado com aquilo que o espetáculo quer comunicar. Sou um bocado um ator de texto, sim, sou, gosto de dizer exatamente aquilo que lá está, dar-lhe corpo mas tentar respeitar o que foi escrito dizendo da forma mais precisa. Mas gosto e teria interesse em explorar um bocado mais a questão do corpo, portanto, sou um ator de texto mas pode vir aí mais”.

Uma criança louca

De criança já não lhe sobra muito. Talvez ainda o rosto claro e juvenil, uma limpeza livre de acne, o cabelo encaracolado pouco penteado, a forma como segura a mochila. Talvez isso, pouco mais. Mas é inegável que Vicente Wallenstein tem um aspeto particular. E não esconde que já foi escolhido por isso, pelas pernas fininhas: “Já me assumiram isso. Lido bem com isso, não sei se é uma mais-valia, é o que é, é uma circunstância. O João Pedro Mamede assumiu-me muito isso, foi algo do género ‘pessoas para este espetáculo que é muito estranho?’ e alguém disse: “epá, o Vicente tem umas pernas muita fininhas”. Às vezes os atores têm aquela coisa de trabalhar a imagem e já cheguei a pensar que tenho que ir ao ginásio e cuidar da minha imagem, mas depois as pessoas dizem-me que tenho uma aparência muito particular e mais vale ficar assim”, diz.

De louco, pelo menos assim, à vista desarmada, também não tem muito. E seguramente não será louco um jovem artista querer ter trabalho e espaço para ensaiar e apresentar. Depois de criadas As Crianças Loucas, cujo espetáculo de estreia, “E todas as crianças são loucas”, texto de João Cachola, se deu em Dezembro de 2017, na Escola de Mulheres, a estrutura tem estado em processo de criação para um segundo capítulo da sua breve história: “Lisboawood”. Situação que promove uma rápida análise às artes em Portugal: “Neste meio falta investimento, falta condições, estamos a tentar arranjar um espaço para estrear o próximo espetáculo d’As Crianças Loucas, somos muitos e isso assusta um bocado as pessoas, já houve quem nos dissesse que sim e depois a coisa acaba por não correr bem. O que estamos a sentir é que não existe espaço para toda a gente, temos coisas a dizer, sabemos que faz todo o sentido fazer este espetáculo em Lisboa e pronto, não tem dado. Quando digo que deve haver espaço para todos é mesmo para todos, não acho que os mais velhos tenham que desaparecer para os mais novos terem lugar, e já que é impossível haver espaço para todos pelo menos pede-se um esforço maior, isto não é simples, mas quem está em cima tem que ter mais vontade de arranjar soluções”, defende.

Não lhe dissemos, estimado de leitor, que isto de louco não tem nada? Muito menos terá a vontade de ter um espaço para a companhia, onde possam desenvolver uma atividade que gostavam que superasse a criação artística e que passasse, por exemplo, pela formação. Estão até a ponderar, sem se afastarem muito, dialogar com algumas autarquias circundantes a Lisboa que mostrem mais disponibilidade em acolher um grupo de jovens atores e criadores, com vontade de dizer algumas coisas. Mas vamos por fases, sem querer acelerar demasiado as coisas, sem querer queimar etapas, As Crianças Loucas, mais do que qualquer outra coisa neste momento, querem um palco para apresentar Lisboawood: “É um espetáculo que reflete sobre a situação da cidade de Lisboa, o núcleo central é assim uma mãe e uma filha que são donas de uma geladaria antiga e depois tens uma Presidente da Câmara e uma arquiteta maquiavélica que desenvolvem um projeto horripilante de pegar naquele espaço e de torná-lo o maior arranha-céus do mundo, fala, acima de tudo, nesta coisa de não arranjarmos espaço, o que é curioso, porque aquilo que queremos dizer é aquilo que está a acontecer, não conseguimos um espaço”, remata.