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O cenário "histórico", o romance forçado e o herói sensualão: eis a receita do sucesso de "Bridgerton"

Este artigo tem mais de 3 anos

Susana Romana viu a série da Netflix e chegou a uma conclusão gastronómica: é uma refeição televisiva feita de noodles instantâneos sem sabor. Há pratos melhores, mas às vezes basta matar a fome.

Simon Basset (Regé‑Jean Page) e Daphne (Phoebe Dynevor), as personagens principais de "Bridgerton"
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Simon Basset (Regé‑Jean Page) e Daphne (Phoebe Dynevor), as personagens principais de "Bridgerton"

Simon Basset (Regé‑Jean Page) e Daphne (Phoebe Dynevor), as personagens principais de "Bridgerton"

Tenho um espaço considerável no meu coração para séries que simplesmente dispõem bem. A televisão pode e deve servir para várias coisas, e é legitimo que uma dessas utilidades seja simplesmente fazer companhia a uma manta e a um pacote de bolachas numa tarde de domingo. Por isso, percebam que quando digo que “Bridgerton” é muito fraco, não o digo de uma posição de sobranceria de quem acha que todas as séries têm de ser o “The Wire”. Aprecio uma boa carbonara caseira com guanciale importado, mas às vezes tudo o que eu quero é uma lasanha do LIDL.

O problema é que a nova série produzida por Shonda Rhimes (criadora de “Anatomia de Grey”, “Scandal” ou “How To Get Away With Murder”) e criada por Chris Van Dusen não é uma gulosa e calórica lasanha do LIDL. É um daqueles noodles instantâneos de 54 cêntimos, sabor artificial, um enjoo pegado, rapidamente esquecível, que uma pessoa come porque era o que estava no pelotão da frente na dispensa. E se “Bridgerton” tem estado mesmo à frente dos nossos olhos: estreado em pleno dia de Natal, já foi visto por mais de 63 milhões de contas de Netflix, tornando-se para já no quinto original da plataforma mais visto de sempre.

[o trailer de “Bridgerton”:]

E sobre o que é a série? Bom, “Bridgerton” é sobre… os Bridgerton. Uma família da alta sociedade londrina composta por uma viúva e oito filhos, durante o período da Regência Britânica (início do século XIX). A narrativa principal da temporada assenta na apresentação à sociedade da mais velha das filhas, Daphne, e da sua busca por um marido. Outras famílias aristocráticas são embrulhadas na trama, com o folhetim de cusquices anónimo de uma misteriosa Lady Whistledown a colar tudo. A sua identidade é secreta, mas na narração que faz dos acontecimentos toma o papel de narradora, com Julie Andrews de “Música no Coração” a dar a voz.

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Na verdade, e apesar de ter visto todas as oito horas da série, tive alguma dificuldade em escrever esta muito básica sinopse. É que as motivações das personagens são geralmente uma balbúrdia, criada para artificialmente injetar interesse a uma trama que anda entre o simples e o simplista. O grande mote é a história de amor entre Daphne e um muito sensualão Duque Simon Basset, mas os seus avanços e recuos são mais forçados que o sorriso do José Figueiras. Mesmo os plots secundários são encaixados atabalhoadamente, os personagens meros peões. A cola entre narrativas é apenas uma pasta de farinha com água, que só aguenta as fundações desta casa se ninguém respirar nem fizer perguntas muito complicadas.

O sucesso da série já se antevia, e não apenas por ter a mão de Midas da autora de “Anatomia de Grey”. “Bridgerton” é baseado nos romances da autora Julia Quinn e são um fenómeno de vendas

O sucesso da série já se antevia, e não apenas por ter a mão de Midas da autora de “Anatomia de Grey”. “Bridgerton” é baseado nos romances da autora Julia Quinn e são um fenómeno de vendas. Uma visita rápida ao catálogo numa livraria nacional revela o pior: capas medonhas com ilustrações ultrarrealistas de mulheres envoltas em tule e títulos em letras muito desenhadas e muito fushia. Quinn é norte-americana, nascida e criada entre Nova Iorque e Califórnia, e o seu conhecimento histórico sobre a Inglaterra de 1820 parece-me claramente insuficiente e assente em clichés úteis, mesmo que imprecisos. A autora deve ter feito pesquisa para os seus romances “históricos” como eu consulto as instruções para um eletrodoméstico novo: leio meia página de instruções, aborreço-me, marimbo-me para o resto, improviso e com sorte talvez tire umas dicas de um vídeo de Youtube.

Mas há outro truque para este fenómeno. Presença firme nos tops de visualizações da Netflix desde que estreou como original da plataforma, “Bridgerton” ocupa o espaço de volúpia baunilha deixado vago pelo fim das sagas “Twilight” e “50 Sombras de Grey”. Enfim, é um género. O problema, em parte, é que a série de Shonda Rhimes se faz de sonsa em relação a esta funcionalidade de soft porn. Até ao episódio cinco de um total de oito, “Bridgerton” é quase (excetuando algumas cenas mais furtuitas e fogosas) uma série que podia ser vista juntamente com crianças que apreciem cenas de baile e histórias de princesas. Daí para a frente, a partir do momento em que vislumbramos as covinhas do rabo ginasticado do duque Simon Basset, torna-se noutra coisa, com longas e lânguidas cenas de sexo com um propósito muito concreto: fazer calores nas zonas íntimas do público feminino. Nada contra, mas não era preciso andar a fingir que se era uma série de época a brincar à credibilidade. Este erotismo é um filão que a Netflix percebeu que tem, porque ainda é socialmente muito mais aceitável que uma mulher em idade fértil tenha conta de Netflix ao invés de um Red Tube Premium.

[o guarda roupa de “Bridgerton”:]

Em abono da verdade, esta luxúria vem já dos livros, aparentemente mais gráficos até do que a série. E, em determinados momentos, servem para dar alguma modernidade à coisa. Mas até nesta questão do tom este drama é uma trapalhada, mudando conforme lhe dá jeito. As versões em hits recentes (como “Thank U, Next” de Ariana Grande) com uma roupagem erudita de época desaparecem ao fim de dois ou três episódios. O cast etnicamente diverso não se percebe nunca bem se é uma maneira de tomar uma (válida) posição política sobre representatividade — já que a série mandou o rigor histórico ir dar uma curva – ou se tem de facto um propósito na trama (quase no final da série, uma das personagens negras fala brevemente sobre como tiveram de lutar para que a sua raça não ditasse o seu estatuto social).

É que, ainda por cima, este mix entre real e imaginário, entre moderno e histórico, já foi feito em 2020 – e muito, incomparavelmente melhor. “The Great”, disponível na HBO, pega na Rússia do século 18 e faz tudo isto com mais graça, imaginação e propósito – elenco racialmente amplo incluído. Larguem esses noodles de pacote. Há uma lasanha do LIDL ainda quente no serviço de streaming ao lado.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa

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