Quando Lara Mesquita começou a explicar a algumas pessoas o intuito e forma deste espectáculo disseram-lhe para ter cuidado. E um programador cultural perguntou-lhe se este espectáculo ia pelo mesmo caminho do que um outro, também feito por atrizes/criadores negras. Estamos em Portugal e este não deixa de ser o país onde Cláudia Simões foi gravemente espancada às mãos da Polícia de Segurança Pública, onde Bruno Candé foi morto a tiro por dá cá aquela palha, onde o primeiro-ministro não hesita em colocar Mamadou Ba e André Ventura no mesmo saco. Portanto, não será estranho que tenham dito a Lara Mesquita para ter cuidado com um espectáculo que aborda a questão da construção da identidade da mulher negra em Portugal. Sempre Que Acordo — que tinha estreia marcada para janeiro de 2021 mas foi adiado devido à Covid-19 e que entretanto venceu o prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina 2021 atribuído pela Companhia Cepa Torta — estreia esta quinta-feira no CAL­-Primeiros Sintomas e tem interpretação de Lara Mesquita e Cirila Bossuet.

Em cena, num cenário propositadamente branco — do tapete aos figurinos —, duas atrizes negras, em jeito de conferência-performance, olham o público nos olhos. Falam da sua complexa condição, da sua existência transversalmente marcada por episódios de racismo de vários tipos, falam porque é preciso continuar a falar, quantos professores negros tiveram na escola, quantos colegas negros tiveram na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), quantos Georges Floyds que não se tornaram mediáticos. Os números, os dados, as estatísticas, coisas duras de engolir, que adensam a maçã de adão, que sugerem a dimensão unilateral da realidade de Lara e de Cirila.

© Filipe Ferreira

Quando Lara Mesquita saiu da ESTC, em 2017, já tinha aquele bichinho de criar, fazer qualquer coisa da sua autoria. O trabalho não abundava e Lara já queria falar da questão racial e da ausência de atrizes/atores negras no meio da representação portuguesa era mais do que evidente. Ponderou pegar no Otelo, peça de William Shakespeare, que explora as relações inter-raciais (tema que também ocupa lugar neste Sempre Que Acordo), depois pensou agarrar Desdemona, peça de Toni Morrison, onde se explora a relação de Desdémona, mulher branca de Otelo, com a sua ama negra. Pelo caminho, leu um dos mais importantes escritos recentes sobre racismo: Memórias da Plantação, de Grada Kilomba, escritora, teórica e artista multi-disciplinar nascida em Lisboa e que reside em Berlim, onde o livro foi primeiramente editado em 2008. “Depois de o ler senti que afinal não estava doida, não era mania da perseguição, não era nada das coisas de que me acusavam quando falava sobre o tema, coisas como ‘caga nisso, não vamos estar sempre a bater na mesma tecla, as coisas estão a mudar’, depois de ler o livro percebi melhor que era mesmo preciso falar sobre isto”, explica Lara.

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Depois de ter visto Turma de 95 — espectáculo da criadora Raquel Castro que também se servia deste mecanismo da conferência e de uma certa forma de falar de frente para o público —, Lara percebeu o caminho era mais este do que uma costura de textos que a tinham influenciado, era mais um aqui-estou-eu-e-agora-vão-ouvir do que metáforas de repertório clássico ou contemporâneo. “De repente percebi que não precisava tanto das tais referências porque a minha voz era suficiente, a minha história e da Cirilia seriam suficientes. E já estava cansada de falar disto no contexto social, com amigos, pessoas íntimas, e estar sempre no ‘ah, mas não é bem assim’ ou no ‘ah, mas não é por mal’, então deixei de falar sobre o assunto nesses contextos e senti a necessidade de, aqui, falar para as pessoas, criar este espaço de comunicação”, confessa. Até porque, vejamos, a metáfora é uma forma de meter o dedo na ferida com mais cuidado e quando se mete o dedo na ferida o cuidado não é propriamente fator contemplado. Estando numa conferência não há personagens — bom, pode haver, claro —, mas ali estão Lara Mesquita e Cirila Bossuet, ponto. “A expressão ‘sem merdas’ tem que ver com isso, podíamos estar a fazer mais teatro, mas o nosso tempo é curto e não é o tempo de fazer o espectáculo, é o tempo de uma pessoa negra, nós temos de correr mais que os outros, temos de nos esforçar muito mais. Precisamos de dizer isto para sobreviver, para crescer, para continuar, no dia a seguir acordar com mais força porque fiz isto, dei o meu contributo. Para nós é muito importante fazer isto, é quase como afirmarmo-nos. Eu preciso de fazer isto para depois seguir porque não é fácil ser negro, não é fácil ser mulher negra, não é fácil ser atriz negra, nem ator negro, o nosso corpo é instrumentalizado constantemente. É um espaço solitário, vou falar sobre isto também para e por mim e não só sobre pelos outros. Nós precisamos de fazer isto, infelizmente”, esclarece Cirila.

© Filipe Ferreira

E o problema de fazer isto é que isto não começou aqui. Começou há 27 anos para Cirila Bossuet, há 35 para Lara Mesquita, há mais de 600 anos para todo um grupo de pessoas escravizado e marginalizado diariamente. O cansaço é, por demais, evidente. Na forma como se movem, interpretam, olham. Não queriam ter de explicar-se, não queriam ter de ter atenção na forma como desabafam, não queriam e não querem. Sempre Que Acordo assume então este lugar de fala, de deixem-me então dizer aquilo que naquela noite não cheguei a dizer porque inventei uma desculpa para uma saída à pressa.

Pelo caminho, a conferência tem um intervalo. Um dos melhores intervalos que uma conferência já teve. Numa tela branca, aparecem duas figuras maternais, Adélia Costa e Luísa Bossuet, mães das intérpretes, que revelam a sua perspetiva. O que foi isto de ser mãe num país diferente, com uma cultura diferente, o que foi isto de lidar com a hipocrisia da população branca que parece aceitar melhor que um filho namore uma rapariga negra se os seus pais forem médicos, engenheiros, por aí, o que foi isto da educação, o que foi isto de ser mulher de um branco (no caso de Adélia), o que foi isto de ouvir e ignorar. Ambas empregadas domésticas, têm a força e a sabedoria de duas mulheres que colocam tudo à sua frente, que depositam nos filhos a sua prioridade, que sabem que são olhadas de lado. Por isso, quando Luísa diz “sou empregada doméstica e tenho os meus três filhos quase formados. Às vezes acham que por se ser uma mulher preta não se sabe educar os filhos” é normal que baixemos a cabeça, que sintamos vergonha.

Por aqui, Adélia e Luísa são as referências, as heroínas: “As nossas mães são as nossas referências, nós como nascemos num país onde existem muito poucas referências, pessoas negras numa posição privilegiada é coisa que não existe, é raro, alguém que nos faça dizer ‘quando for grande quero ser igual àquele’. Então, de repente, as nossas mães, também por serem mulheres, são as nossas referências, se nós conseguimos mudar o chip para dizer que nossas vozes são válidas, as vozes das nossas mães já eram válidas há muito tempo. Então é esse suporte maternal que também sentimos a necessidade de trazer para aqui. E somos o que somos, estudamos, estamos a fazer teatro, que é um privilégio enorme, as nossas mães que são empregadas domésticas, onde é que está o microfone? Qual é o espaço que elas têm para dizer seja o que for? Se nós temos dificuldade…”

© Filipe Ferreira

Mães, filhas, todas revivam traumas ao acordar, todas revivam traumas em cena. E esta ideia de que as coisas estão a melhorar, de que o assunto está cada vez na ordem do dia só exacerba o quão trágico e profundo é o problema do racismo em Portugal. “Sim, o que está a acontecer ainda é um bocadinho para inglês ver, é o que eu sinto”, afirma Lara. Ao que Cirila acresce: “Portugal está em negação, por mais que se fale sobre isto, as pessoas não querem verdadeiramente falar, não querem aceitar, não querem rever os manuais escolares, não querem colocar este assunto dentro de rodas onde as coisas possam crescer. É preciso fazer essa pressão. Para Portugal faz sentido não falar disto. Não estamos num momento de transformação, está-se a falar, não é que falar não possa significar transformação, mas não me parece o caso. Agora é preciso perceber o que é que esta comunidade está a exigir para que as coisas se transformem realmente.”