Muitos não têm dúvidas. “Israel vai lançar a maior operação conjunta (por ar/terra/mar/espaço) contra Gaza na História.” O analista militar norte-americano John Spencer era um deles e fazia este aviso logo no domingo passado, ainda não tinham passado 24 horas desde o início do ataque do Hamas em território israelita.
Desde então, os sinais de que Israel está a preparar uma invasão de grande escala contra a Faixa de Gaza só se reforçaram. O país mobilizou 300 mil reservistas, o dobro do que costuma ter disponível — num país de cerca de nove milhões de habitantes. E, de acordo com o site Axios, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu já deu a certeza de que a invasão vai avançar a Joe Biden: “Temos de ir”, terá dito num telefonema com o Presidente norte-americano, de acordo com várias fontes israelitas e norte-americanas.
O tenente-coronel Richard Hecht, das Forças Armadas de Israel (IDF) também sinalizou aos repórteres que o ataque a Gaza deverá intensificar-se nos últimos dias: “Estamos num nível diferente. Estamos em guerra com o Hamas”, afirmou.
Neste momento, Israel já tem bombardeado a pequena faixa de território com ataques aéreos, ao mesmo tempo que lhe decretou um cerco, cortando eletricidade e impedindo a entrada de água e comida. Mas a invasão que se avizinha nos próximos dias deverá ser a uma escala nunca vista, dizem ao Observador vários especialistas.
“Vamos a assistir a algo em massa”, garante Avi Melamed, analista israelita e antigo agente dos serviços de informações do país. “Israel vai mudar a sua estratégia face a Gaza e entrar em força. O objetivo parece ser o de mudar a realidade em Gaza para os próximos 50 anos, estão determinados em esmagar as capacidades militares do Hamas e do grupo Jihad Islâmica.”
As dúvidas, neste momento, não parecem ser sobre se uma invasão vai ou não acontecer. São apenas sobre que forma irá esta tomar, bem como “até onde vai e quanto tempo irá durar a ocupação”, acrescenta Daniel Byman, professor da Universidade norte-americana de Georgetown especializado no Médio Oriente.
Mas, seja qual for a tática aplicada pelas IDF para entrar em Gaza, aquilo que se adivinha é um conflito duro e sangrento. “De uma perspetiva militar, não há uma forma boa de operar em Gaza, ponto final”, resume ao Observador Raphael Cohen, analista de estratégia no think tank militar RAND. “É um território com mais de dois milhões de pessoas e cheio de túneis subterrâneos. Por baixo, há o risco de haver minas. Acima de terra, há civis por todo o lado.”
Na prática, isso faz com que, independentemente do rumo da operação, só uma coisa é certa: “Israel vai perder muitos soldados e vai provocar muitas baixas”, acrescenta o especialista do RAND. “Algumas serão de militantes [do Hamas]. Mas, infelizmente, muitas serão de civis.”
Da “dissuasão” a uma nova doutrina, de “extirpar” o Hamas
Israel desocupou a Faixa de Gaza em 2005, na sequência de uma decisão do primeiro-ministro Ariel Sharon. O Hamas acabou entretanto por vencer as eleições e chegar ao poder no território no ano seguinte. Desde então, houve várias operações militares de Israel em Gaza, que resultaram num número de mortes elevado (sobretudo de civis palestinianos), mas nenhuma teve a dimensão que se pensa que esta terá.
Desde 2006 que houve vários confrontos entre forças do Hamas e o exército israelita, geralmente com disparos de rockets e bombardeamentos aéreos, o último dos quais em 2021. Mas Israel tem evitado uma invasão completa com nova ocupação do território. Embora em 2014 tenha havido infantaria no terreno, a maioria dos ataques continuou a ser através da Força Aérea.
Isto porque, até aqui, o modo de funcionamento dos israelitas em relação àquele território era de “dissuasão” e não de “vitória decisiva”, resume o think tank RAND no seu relatório “From Cast Lead to Protective Edge — Lessons from Israel's Wars in Gaza”, de 2017. “Por um lado, Israel quer punir o Hamas pelos seus ataques; por outro, não quer eliminá-lo, porque teme que a organização seja substituída por outra mais violenta”, pode ler-se no relatório. “Com as ações militares, Israel quer um castigo suficiente que torne o Hamas ineficaz por um período de tempo substantivo, mas não tão fraco que possa ser substituído por um inimigo pior.”
Raphael Cohen, que é um dos autores desse relatório, garante ao Observador que esta doutrina está agora em completa transformação. “Estes ataques do Hamas não têm precedente, com mais de mil mortos e 150 reféns. E esta escala de destruição alterou o pensamento de Israel”, resume. “Há uma mudança na opinião pública que considera agora que o Hamas já não é controlável apenas com ataques aéreos; precisa de ser extirpado.”
Por ar, terra e mar. Por onde podem entrar as IDF?
O especialista do RAND diz que não é possível saber de antemão qual o plano de operação que está a ser preparado, já que estará “no segredo dos deuses”, diz. Contudo, Raphael Cohen admite a possibilidade que a invasão não se limite à combinação de ataques aéreos com ação de artilharia e infantaria.
“A Marinha também está muito envolvida”, afirma, destacando como foi uma brigada naval quem capturou um dos comandantes do Hamas ao longo dos últimos dias. Por essa razão, não é de excluir que Israel prepare uma invasão que inclua entrada de infantaria por terra e um ataque anfíbio vindo do mar Mediterrâneo.
Quanto à entrada por terra, há várias opções. Israel pode começar com uma incursão limitada pelo norte, através da passagem de Erez ou de Beith Hanoun, que se situam numa zona mais rural, onde o número de baixas civis seria mais limitado. Pode também entrar por Burej, a sul da cidade de Gaza, ou mais a sul, por Khan Yunis, ou até por Rafah, na fronteira com o Egipto. Um ataque combinado com forças a entrar por todas estas rotas é também uma possibilidade, como aconteceu em 2014.
Certo é que, como nota o The Guardian, o Hamas sabe que estes são os possíveis pontos de entrada, e “coloca habitualmente as suas primeiras linhas de defesa nestas áreas, que já foram palco de combates intensos no passado”. Quantos combatentes tem o Hamas disponível é também uma incógnita. “Os seus números podem ir dos 10 mil aos 50 mil”, resumiu o especialista britânico em Defesa, Michael Clarke, à Sky News.
Daniel Byman também prevê, à semelhança de Rafael Cohen, que haja vários ramos das Forças Armadas envolvidas nesta invasão. “O ramo aéreo já começou. A artilharia irá começar em breve”, prevê. “E teremos uma combinação de infantaria convencional com blindados e raides das forças especiais.”
Essas forças especiais, como a unidade conhecida por “Fantasma” ou as Sayeret Matkal, deverão ter um papel particularmente relevante em missões para tentar resgatar os 150 reféns israelitas que estão neste momento em Gaza — mas cujo paradeiro exato não é conhecido.
O combate de guerrilha numa zona urbana e um Hamas “pronto para lidar” com a invasão
Assim que a invasão começar, porém, espera-se uma dura guerrilha urbana, em que a aparente superioridade das IDF não se traduz necessariamente numa vitória rápida. À medida que as tropas se aproximam dos centros urbanos, os tanques israelitas Merkava e outros blindados vão-se tornando cada vez mais ineficazes. Os soldados passam a ter de andar a pé e verificar a presença de combatentes do Hamas praticamente casa a casa, confirmaram as próprias IDF ao site Vox.
“Isto será muito difícil. E os túneis podem levar a ataques surpresa ao exército israelita, que podem levar a mais baixas e talvez até prisioneiros de guerra”, nota Daniel Byman. A rede de túneis subterrâneos do Hamas dentro da Faixa de Gaza pode servir para colocar explosivos e minas anti-tanques e antipessoais. O The Guardian lembra que durante a guerra de 2014, por exemplo, Israel perdeu 13 soldados numa só emboscada na área de Shujeiya, que combinou o uso de minas com metralhadoras.
A própria capacidade de resistência do Hamas é uma incógnita, lembram os especialistas. “O desequilíbrio tecnológico [entre IDF e Hamas] é o mesmo, mas o Hamas tem demonstrado uma impressionante capacidade de adaptação”, aponta Byman. Raphael Cohen também avisa que o grupo terrorista não pode ser subestimado: “O Hamas tem evoluído ao longo dos anos. Tem tido mais tempo para se preparar, mais apoio do Irão e mais capacidade para construir infraestruturas”, diz, com destaque para a rede de túneis.”
“Se o Hamas planeou um ataque como este, com esta escala, sabia que iria provocar uma enorme reação. Portanto, é de pensar que está pronto para lidar com ela”, acrescenta.
Civis de Gaza serão os afetados por uma crise humanitária
No meio da incerteza sobre como pode evoluir uma invasão à Faixa de Gaza, só há um ponto do qual ninguém tem dúvidas: a guerra será sangrenta e o número de mortes muito elevado.
Não apenas em termos de baixas de militares israelitas e combatentes do Hamas. Num dos territórios mais densamente povoados do mundo (cerca de cinco mil pessoas por quilómetro quadrado, em contraste com 400 pessoas por quilómetro quadrado em Israel), em arquitetura urbana, o número de civis afetados será enorme.
A que se soma as práticas de violação do Direito Internacional de ambos os lados denunciadas pelas Nações Unidas: o uso de “escudos humanos” por parte do Hamas ao estabelecer infraestruturas e armamento militar no meio da população civil; e a falta de precauções para limitar os danos civis em alguns ataques por parte do exército israelita.
Na invasão de 2014, que durou apenas 19 dias, 1.462 civis palestinianos e seis civis israelitas (a que se somam 789 combatentes do Hamas e 67 soldados israelitas) morreram na sequência dos combates, segundo dados das Nações Unidas. Desta vez, o número poderá ser muito superior.
Neste momento, só na sequência dos ataques aéreos, 123 mil habitantes de Gaza já tiveram de abandonar as suas casas e cerca de 400 mil estão afetados pela falta de água e saneamento básico. Nos próximos dias, a crise humanitária deverá deteriorar-se ainda mais. “Os civis de Gaza já estão a sofrer”, resume o professor Daniel Byman. “Nos próximos dias, isso só vai piorar.”