O regresso
Mãe e filho entre Portugal e a guerra
Especial multimédia. Yulia e o filho viveram sob bombas e fugiram da Ucrânia para Portugal. Depois decidiram voltar. O Observador fez com eles a viagem de regresso ao país que nunca mais será o mesmo.
A fuga para Portugal
Yulia Soboleva fechou um capítulo no dia em que atravessou a ponte destruída de Irpin com o filho Lev. Arrumou as memórias dos dias passados debaixo do som dos bombardeamentos, determinada a procurar um lugar longe do medo, para nunca mais ter de ouvir Lev dizer: “Mãe, tenho as perninhas a tremer.”
Yulia tinha 28 anos e Lev cinco meses quando, em novembro de 2013, milhares de manifestantes começaram a concentrar-se na praça Maidan, no centro de Kiev, exigindo um rumo mais europeu para o país. A revolução que se desenrolou nos meses seguintes resultou na morte de mais de 100 pessoas, na deposição do então presidente Viktor Yanukovych e num novo governo interino. A “ilegitimidade” do que apelidou de “golpe de estado” foi o argumento inicial de Vladimir Putin para iniciar um movimento de anexação da Península da Crimeia. Soltavam-se as primeiras faúlhas da guerra entre o governo ucraniano e separatistas pró-russos, apoiados por Moscovo, na região do Donbass.
“Foi complicado para mim, porque eu queria ir para Kiev, defender os meus direitos, mas tinha uma criança muito pequena nos braços”, recorda Yulia. A relação com o pai de Lev tinha terminado e praticamente não mantinham contacto. Era uma mãe solteira, regressada a casa dos pais, focada em criar um bebé que se tornou o novo centro da família Soboleva.
O nome Lev significa “leão”. Oito anos depois, o rapaz estuda música numa escola de Irpin, apura o treino de piano em casa com o avô, é dono de uma cadela e de uma tartaruga, desenvolveu uma atração especial por trampolins e adora a mistura de queijo quark com ervas que ninguém prepara como a avó.
A vida em Monte Redondo
Subitamente, a 24 de fevereiro, toda essa vida foi interrompida. O ataque russo obrigou-o a fugir de Irpin, cidade satélite de Kiev, a refugiar-se com a mãe numa pequena aldeia da Ucrânia ocidental e pouco depois a sair do país. Acabaram a bordo de um avião humanitário português.
Em maio de 2022, Lev está sentado na primeira fila de uma sala de aulas sem perceber a maior parte do que lhe é dito, a três mil quilómetros de casa, no centro escolar de Monte Redondo, em Leiria.
O autocarro deixa as crianças ucranianas na quinta que todos chamam de “Castelo”, um espaço desenhado para eventos e que a junta de freguesia de Monte Redondo reorganizou para acolher famílias refugiadas. Chegaram a estar ali 30 adultos e 20 crianças. A maioria chegou no mesmo dia que Yulia e Lev, a 26 de março — 40 de uma só vez. A lei marcial em vigor na Ucrânia refletia-se na composição do grupo: passaram por ali apenas três homens.
As paredes interiores estão forradas com desenhos que as crianças da freguesia dedicaram aos novos hóspedes, com mensagens de boas-vindas. Voluntários e vizinhos entram e saem a qualquer hora para trazer bens alimentares, roupas, brinquedos. Um grande salão foi transformado em dormitório e enormes panos pretos pendem do teto até ao chão, a inventar divisões. No exterior, uma bandeira de Portugal e outra da Ucrânia estão presas à madeira envidraçada que enquadra o espaço.
Yulia é designer de moda. Explica que gosta de se sentar com os auscultadores e deixar-se levar, sem saber o que dali vai sair. Estava prestes a abrir um atelier em Irpin quando a guerra começou.
Com a máquina de costura que os voluntários lhe providenciaram em Monte Redondo, entreteve-se a fazer bonecas de tecido com roupas tradicionais ucranianas. Por aqueles dias, um mês depois de aterrar num lugar pacato e rural, estar ocupada era parte da solução. Mas ter algum rendimento também seria fundamental para poder regressar. E Yulia tinha definido desde o momento em que saiu da Ucrânia que regressaria logo que possível.
Yulia e Lev fugiram de Irpin a 8 de março e aconselharam o resto da família a fazer o mesmo. Os pais, a irmã e a tia partiram no dia seguinte para Ukrainka, terra natal da mãe, 50 quilómetros a sul de Kiev.
As forças russas retiraram-se de Irpin no fim de março e a família regressou a casa assim que se tornou seguro, um mês depois. Por essa altura, Yulia já só pensava em fazer o mesmo.
No início de maio começou a rechear bolas de Berlim na Panidor, uma fábrica de alimentos sediada em Leiria, para juntar dinheiro para a viagem.
O turno de Yulia só lhe permitia regressar ao “Castelo” perto das 22h. Lev chegava da escola todos os dias às 17h30 e as outras mulheres ucranianas garantiam que jantava e que ia para a cama a horas. Era só juntar mais uma às várias crianças que corriam pelo espaço. Iam juntas à escola, continuavam juntas quando chegavam ao centro de acolhimento e brincavam juntas à guerra.
Num dos dias em que o Observador visitou o espaço, encontrou-os a fingir que as bicicletas eram tanques que protegiam cidades ucranianas dos russos. Rodopiavam entre risadas e vozes de comando, a ganhar velocidade no átrio da entrada, em torno da estátua de um leão. Naquele faz-de-conta, ninguém interpretava o inimigo. Eram todos soldados ucranianos.
O “íman” que puxa para casa
Gradualmente, o número de residentes no “Castelo” foi diminuindo. A junta de freguesia foi ajudando as famílias que queriam permanecer em Portugal a encontrarem outros alojamentos menos temporários. Em finais de maio, estavam quase todos empregados e já conseguiam alugar uma casa pelos seus próprios meios. Restavam nove adultos e 10 crianças na quinta.
Yulia foi acompanhando as saídas, percebendo como as vidas das outras mulheres evoluíam para novas etapas. “Vi a casa de uma delas, tem um anexo muito bonito. É uma casa com a minha cara, para uma rapariga criativa. Existem várias opções, mas eu, honestamente, não me interessei muito.”
Havia de explicar mais tarde que ela própria não compreendia inteiramente porquê, mas que sentia “um íman” a puxá-la para casa. “Eu tive dúvidas, desde os primeiros dias, mas não gosto nada disso. Não gosto quando alguém semeia aquele grão de dúvida.” As chamadas com os pais ajudavam a alimentar a decisão inicial.
A decisão estava tomada. Com um mês de trabalho já tinha dinheiro para os bilhetes de avião. Só faltava tratar dos documentos para poder viajar. Yulia não costumava sair do país, nem ela nem o filho tinham passaporte em dia. No caminho para Portugal não foi necessário, todas as vias estavam abertas a quem fugia do conflito.
Três dias depois, estava no consulado da Ucrânia, em Lisboa, a pedir um passaporte branco — um documento temporário que permitia apenas o caminho de volta.
Em circunstâncias normais, este tipo de documento é feito no próprio dia, mas o sistema estava em baixo e Yulia foi instruída a esperar por uma chamada telefónica para o levantar. As previsões apontavam para a semana seguinte.
Dois dias depois, assim que o salário caiu na conta, começou a procurar viagens. Tinha-se informado nas redes sociais, em grupos de ucranianos, e decidiu que o melhor seria apanhar um comboio direto de Budapeste para Kiev. Havia precisamente um voo para a capital húngara a sair do Porto a 14 de junho, a um preço muito inferior à média. Tudo parecia encaixar no plano traçado. Comprou a viagem e passados outros dois dias regressou ao consulado.
Os passaportes não estavam prontos. O problema era nos serviços centrais, na Ucrânia. Não sabiam quanto tempo mais demoraria.
A deslocação a Lisboa não teria sido em vão, contudo. Desta vez não tinha vindo sozinha e faltava cumprir outro propósito antes de partir.
A 26 de março, quando aterraram em Portugal, mãe e filho foram enviados imediatamente para Leiria. Yulia não queria ir embora sem conhecer a capital e sem levar Lev a ver o oceano pela primeira vez.
Quando chegaram a Leiria, Yulia e Lev traziam pouco mais do que a mochila de emergência que tinham feito ao sair de Irpin. A mala de regresso teria de ser bem maior para transportar todas as roupas e objetos que lhes ofereceram em Monte Redondo e algumas lembranças que foram comprando. Uma bagagem de porão de 30 Kg já precisava de engenho na hora de fechar. Algo teria de ficar para trás.
Dias depois, Yulia e Lev estavam novamente ao pé do oceano — desta vez em São Martinho do Porto, mais perto de Leiria —, prontos para se despedirem de duas pedras que tinham trazido de Slavske, na parte ocidental da Ucrânia, onde se refugiaram antes de virem para Portugal. “Essas pedras são duas metades de uma” e o objetivo inicial era levá-las um dia para casa “como uma lembrança de um canto pitoresco da Ucrânia.”
As pedras tinham agora um novo propósito. “Existe essa tradição: atirar uma moeda ao mar ou para uma fonte com o desejo de retornar ao local onde a moeda foi deixada. Nós decidimos deixar as pedras com a inscrição do nosso desejo.” Não as atiraram à água, optaram por enterrá-las na areia.
Na véspera do voo para Budapeste, mãe e filho estavam novamente na cave da moradia amarela do Restelo onde funciona a embaixada da Ucrânia. A chamada para levantar os documentos nunca chegou e a informação mantinha-se: havia um problema com os serviços na Ucrânia, possivelmente devido a um ataque, e não dependia do consulado.
Na demorada fila que se formava naquela manhã, Yulia aguardava pela resposta que receberia no balcão de atendimento — e que poderia ditar a perda do dinheiro gasto nos bilhetes de avião e um adiamento de todos os planos. “Ainda não está pronto, mas vai ficar hoje.” A garantia transmitida entretanto por uma funcionária arrancou-lhe um sonoro suspiro de alívio. A viagem podia começar.
A viagem
O comboio passou a fronteira de madrugada. Nas primeiras horas em solo ucraniano, Lev brinca com os pedaços de fita-cola que cobrem as janelas. Estão ali para impedir que os fragmentos dos vidros causem danos maiores, no caso de serem atingidos.
24 horas depois de entrarem no comboio, Yulia e Lev chegavam à estação de Kiev. À espera estava o amigo Oleksiy.
A metamorfose na chegada a casa
Fazer a viagem para Irpin ainda nessa noite era arriscado — faltavam pouco mais de duas horas para o recolher obrigatório. Os táxis e transportes semelhantes deixavam de aceitar passageiros pelo menos uma hora antes do limite. Yulia e Lev ficaram em casa do amigo Oleksiy, em Kiev.
Um primeiro teste à determinação no regresso aconteceu logo na manhã seguinte, quando desceram à rua e ouviram sirenes pela primeira vez em mais de três meses. “Eu perdi-me. Esqueci-me do que é suposto fazer. Pensei: ‘para onde correr?’ O miúdo olha para mim e pergunta: ‘Onde há um bunker?’”
Yulia olhou em volta à procura de respostas no comportamento dos outros. “Os pais não fizeram nada e as crianças pequenas continuaram a brincar, então pensei: ‘ficamos parados, veremos’.” Os receios que confessara na viagem de comboio recebiam um primeiro sinal para desinsuflar.
Chamaram um carro para completar o curto percurso que ainda os separava de casa. Normalmente, o caminho faz-se em menos de meia hora, mas naquele dia o trânsito estava mais intenso. Um pouco mais à frente, também em direção a Irpin, seguiam três chefes de Estado e um primeiro-ministro: o francês Emmanuel Macron, o alemão Olaf Scholz, o romeno Klaus Iohannis e o italiano Mario Draghi. A visita tinha um propósito claro: dali a uns dias, os Estados-membros votariam a possibilidade de a Ucrânia iniciar o processo de adesão à União Europeia. “Todos os quatro apoiamos o estatuto imediato de candidato”, afirmaria Macron nessa tarde.
Mãe e filho fizeram aquele percurso como se rebobinassem um filme gravado há meses, comparando o que deixaram e notando as transformações na cidade, como a diminuição de postos de controlo e de militares nas ruas. Passariam, pela primeira vez desde março, pela ponte destruída por onde fugiram e pelas ruínas que ainda não existiam na altura.
Assim que o carro estacionou à porta de casa, a disposição de mãe e filho alterou-se repentinamente. A transformação foi particularmente evidente em Lev, que passou de um temperamento ligeiramente dormente e pouco comunicativo para uma torrente de energia aparentemente inesgotável.
Os pais e a irmã de Yulia ainda estavam a trabalhar. É a tia Yevheniya — irmã do pai, que todos tratam pelo diminutivo Jeniya — que os recebe, surpreendida. Ninguém a avisou que estavam a regressar.
Jeniya está incrédula e retira-se para se recompor. Enquanto Yulia pára para respirar no alpendre, Lev inicia uma visita guiada improvisada pelo quintal. Está de volta ao seu território.
Mãe e filho correm a revisitar cada canto da casa, enquanto Jeniya vai interiorizando a ideia de os ter de volta. Aproveita cada segundo de pausa entre os gritos de entusiasmo de ambos para lhes perguntar se tiveram saudades, se estão felizes e, sobretudo, se não era possível terem ficado em Portugal mais tempo. Parece confusa com a ideia de terem saído voluntariamente de um sítio seguro. “É assustador, dizem que vai haver um novo ataque a Kiev”, argumenta, quando Yulia lhe explica que já tem clientes a ligar e que precisa de retomar o trabalho.
Jeniya conta com orgulho que é natural de Borodiyanka, a 30 quilómetros de Irpin, e que cresceu a falar apenas ucraniano. “Até aos seis anos, eu não sabia nem uma palavra russa. Provavelmente, eu falava em ‘surjik’ e não dominava a língua de literatura ucraniana, mas era o suficiente para me fazer entender no ambiente que tinha à minha volta.”
“Surjik” é um termo que define a mistura entre palavras russas e ucranianas e o seu uso é muito comum, um pouco por todo o país. É tão natural que o recurso a esta espécie de língua intermediária pode não ser permanentemente consciente. A casa da família Soboleva não é exceção: tal como a maioria dos ucranianos, são bilíngues, e a mistura de termos é frequente.
Jeniya lidou naturalmente com essa particularidade durante toda a sua vida, incluindo a nível profissional — foi pediatra e depois especialista em tuberculose. Mas naquele dia, no meio da excursão entusiasmada dos seus familiares regressados, foi com ar reprovador que, a dada altura, perguntou a Lev porque estava a usar palavras russas.
O reencontro com os pais
Desde que regressou a casa, no fim de abril, Jeniya ainda não visitou a cidade natal de Borodiyanka, também fortemente atingida pelos combates que ali decorreram. Nem sequer viu com os próprios olhos as zonas mais destruídas de Irpin. Aponta para o peito enquanto tenta explicar: “Era-me tão difícil que aqui estava tudo a chorar, a sofrer. O meu coração derramava-se em sangue.”
Acredita que as suas orações tiveram um papel na aparente aleatoriedade que ditou a destruição de algumas casas vizinhas e que poupou a sua. “Deus estava sobre nós. Ele abriu a sua asa e protegeu-nos.”
Apesar de estar ainda muito apreensiva com a evolução do conflito no país, Jeniya lê sinais na natureza. “Eu vi que, mesmo no meio de destroços, crescem flores, como a vida que ultrapassa tudo. A vida continua e é preciso preservá-la.”
O jardim dos Soboleva é agora espelho desse renascimento e exibe várias plantações recentes de flores, legumes e frutos. É obra de Maryna, mãe de Yulia — que apanhou todos de surpresa quando regressou do trabalho, nessa tarde, com um pequeno buquê nas mãos.
Interrompeu uma tentativa — fracassada — de convencer Lev a voltar a tocar piano. O rapaz tinha prometido à mãe que, se regressassem a casa, retomaria os estudos com afinco, mas a única pessoa capaz de o convencer com sucesso era o avô — que só chegaria algumas horas depois, cruzando-se acidentalmente com Yulia e Lev na rua.
Maryna fez anos a 16 de maio e naquele dia recebia o presente que mais desejava. “Celebrou os 60 anos e passado um mês regressou a filha com o neto”, resumia o marido. Apresenta-se como “Oleh Volodymyrovych segundo o passaporte”, mas todos o tratam por Alik.
Ela foi enfermeira durante 20 anos e hoje é gerente numa empresa de equipamentos para máquinas de café. Ele tem 67 anos e foi pianista no exército, no Conjunto Académico de Canção e Dança da Guarda Nacional da Ucrânia. Resume assim o currículo: “Toda a vida tive este emprego. Agora faço gravação de som. Sobrevivemos à guerra. Tenho duas filhas e um neto.” Maryna corrige-o: “Ainda não sobrevivemos, estamos a sobreviver.”
Alik está reformado, mas continua a colaborar com o exército — agora longe dos holofotes. Passou de músico a operador de som de forma gradual, por entender que “quando uma pessoa idosa vai para o palco não é bonito” e que deve dar o lugar a “jovens enérgicos”. Mesmo que tivesse outra visão sobre o assunto, acredita que a guerra teria acabado por ditar um afastamento dos palcos. “Infelizmente, depois daqueles bombardeamentos, a minha capacidade de audição diminuiu bastante.”
Bastaram aquelas duas semanas que a família aguentou em casa depois do início da guerra para sentir esse efeito. “Quando bombardeavam muito, tremia tudo de tal maneira que eu ficava em pé e segurava a porta da entrada. Pensava que elas sairiam, de tanto tremerem.”
Quando Alik regressou a Irpin, impressionaram-no os danos num terreno vizinho, nas traseiras, onde “restou apenas a base da casa”, e ficou atónito com a proximidade a que esteve a sua de sofrer o mesmo destino.
Em 2010, um incêndio iniciado na casa do lado destruiu grande parte da habitação dos Soboleva. Perderam quase tudo, incluindo uma biblioteca com mais de três mil livros, acumulados ao longo de três gerações. Alik conta que nunca tinha pegado num martelo e que aprendeu à força a reconstruir tudo. Poderia estar agora a recomeçar do zero novamente.
O primeiro choque com a realidade
Yulia tinha ouvido à distância as histórias das casas vizinhas destruídas, mas o único contacto direto com o estado em que ficou Irpin depois de fugirem acontecera nessa manhã, na viagem de carro de Kiev para casa. Decidiu, então, ir dar uma volta ao quarteirão. A intenção era fazer uma caminhada rápida e depois passear com Lev no parque. Acabaram por demorar mais de duas horas a fazer um percurso de 15 minutos. Uma certa revolta começava a revelar-se de uma maneira que não tinha antecipado.
Yulia terminou a volta ao bairro com ânimo oposto ao que experimentara horas antes — e determinada em afastar esse estado de espírito que lhe tolhia as forças.
No regresso a casa, aconteceria o reencontro que faltava dentro do núcleo familiar, já longe da presença do Observador. Victoria, a irmã mais nova, preferiu não ser filmada e não quis conversar com jornalistas.
O que aconteceu em Irpin
Dezenas de cartazes erguidos nas entradas da cidade emolduram Irpin como “cidade heróica”, título oficializado pelo Ministério da Defesa ucraniano pela resistência que impediu o avanço russo até Kiev. Era uma distinção comum a várias cidades da União Soviética, depois da Segunda Guerra Mundial. E é exibida com orgulho por estes dias por Oleksandr Markushyn, presidente da câmara municipal que liderou a defesa territorial local.
Nas quatro horas que intermediaram o primeiro contacto com a equipa do Observador e o momento em que conseguiu sentar-se no seu gabinete, Markushyn desdobrou-se em reuniões com estruturas militares e civis. A câmara já não é o quartel general de uma cidade em guerra — mas a meio de junho ainda parecia.
Quando a invasão russa começou, o presidente teve de reunir forças em tempo recorde. “Em 24 horas recrutámos profissionais, rapazes que sabiam e que queriam fazer aquilo que era mais importante: proteger.” Os combates ativos na cidade começaram a partir de 5 de março.
Pelo menos 300 civis e mais de 80 membros das forças de segurança e voluntários da defesa territorial morreram em Irpin, naquele março de intensos combates. A cidade chegou a ter 30% de área ocupada pelas forças russas. Conseguiu resistir e obrigar as tropas de Moscovo a recuar, contribuindo decisivamente para impedir que alcançassem Kiev.
Durante aquele mês, o autarca nunca saiu de Irpin. “Se o comandante se vai embora, toda a unidade se desfaz.” Apesar de não ter treino de combate, recorreu à experiência como caçador, vestiu o camuflado e passou a andar sempre com uma arma. “Naquele momento, a cidade precisava mais de um presidente da câmara militar do que de um civil e eu tomei a decisão de combater.”
A “primeira grande vitória”, considera, foi a retirada de 95% da população da cidade. Uma boa parte passou por baixo da ponte destruída, que se tornou símbolo da resistência ucraniana.
Oleksandr Markushyn sobreviveria a várias outras tentativas de assassinato ao longo da ocupação. A 28 de março, anunciava na sua conta de Telegram que tinham conseguido expulsar o inimigo da cidade, mas apelava aos cidadãos para não regressarem até estarem reunidas as condições de segurança.
Foi preciso quase um mês para restabelecer os serviços básicos de eletricidade, gás e água, limpar as ruas e desminar todo o território. E então começou um intenso movimento de regresso.
Metade dos homens que integraram a defesa territorial mantém posições em Irpin e outra metade foi posicionada na área do aeroporto de Kiev. “Os nossos rapazes são todos lutadores e foi-nos confiada a defesa de equipamentos estratégicos importantes.” A quantidade de trajes camuflados que continua a circular pelo edifício da câmara municipal contrasta com o aparente regresso à normalidade espelhado no largo em frente.
O calor exigia sombra ou mergulhos naquele sábado de manhã e as crianças fingiam evitar molhar-se nos jatos de água da fonte. Um “speaker” anunciava atividades lúdicas pelas colunas de um centro comercial ali ao lado.
De repente, de outras colunas irrompe o som de um alarme aéreo. Ninguém dispersa. Uma família reunida num banco de jardim continua tranquilamente a comer pizza, o passeio lento dos carrinhos de bebé prossegue sem solavancos. Os 55 mil habitantes que regressaram a casa até meados de junho estão empenhados em reaver a sua vida e isso implica bloquear a angústia a todo o custo.
"Nós sentimos isso, nós vemos isso, compreendemos que as pessoas estão cansadas”, nota Angela Makeeva, deputada da câmara municipal. Admite que tem sido um desafio encontrar o equilíbrio entre ajudar os cidadãos a “sair desse estado emocional de terror” e o apelo a que não baixem totalmente a guarda.
“Relembramos constantemente as pessoas de que permanece a ameaça de ataques com mísseis, de um segundo ataque à região de Kiev, que a guerra continua no nosso país, que ainda é preciso ter uma atitude responsável.”
Por aqueles dias, a autarquia endurecia os castigos para quem não cumprisse os horários legais para venda de álcool e o recolher obrigatório às 23h. Oleksandr Markushyn anunciara que os incumpridores seriam enviados para prestar apoio nas frentes de batalha.
Mesmo que não temessem a ameaça de um novo ataque, faltaria sempre um longo caminho para retomar a normalidade que se vivia a 23 de fevereiro. “Pagámos um preço muito alto por esta vitória. Mais de 50% da cidade está destruída”, incluindo escolas e jardins de infância, sublinha o presidente da câmara.
Só no setor da educação, mais de 20 edifícios ficaram afetados. “Jardins de infância, escolas, equipamentos desportivos... Não existe nenhum edifício dedicado à educação que não tenha sido destruído ou danificado”, elenca Angela Makeeva.
Era ela, a número dois de Markushyn, que estava ao lado de António Costa a 21 de maio, quando o primeiro-ministro português visitou Irpin. É a ela que cabe explicar a dimensão dos estragos a grande parte dos líderes políticos e figuras públicas que por ali têm passado. Todos são levados à zona norte da cidade, onde se localiza a maior fratura exposta.
Costumava ser um local tranquilo, típico de cidade-dormitório, com vários condomínios, árvores altas, emoldurado por ruas com vivendas. O que sobrou foi um amontoado de entulho, metal derretido, viaturas cravadas de balas e divisões abertas ao exterior, como maquetes de casas carbonizadas.
Tanya terá perto de 70 anos e caminha a passo firme entre o negrume dos edifícios e as ervas altas que tomaram conta dos espaços comuns. Vem das compras com um friso de calafetagem, a caminho de um dos prédios de vários andares que aparecem por trás das figuras de relevo que visitam Irpin.
Regressou no fim de abril e encontrou a casa sem janelas, mas habitável. “Voou tudo, o teto de plástico na varanda estava partido, o frigorífico ficou um pouco danificado”. Arrumou o que pôde e aguarda que a autarquia a ajude a arranjar o que falta antes do inverno. O presidente da câmara garantiu-lhe que iria “receber a neve já com janelas”.
À volta ouvem-se máquinas de obras nos pátios de alguns vizinhos. “As pessoas que têm rendimentos estão a arranjar sozinhas, a câmara disse para guardarem os recibos e que, num prazo de dois ou três anos, devolveriam o dinheiro, mas eu com uma reforma de 2100 hryvnias [cerca de 55 euros] não consigo colocar janelas. Por agora, tapei com plástico.”
Quando a guerra começou, Tanya aguentou quase três semanas, mas os cortes de água, gás e luz tornaram cada vez mais difícil permanecer ali. “Dormíamos vestidos, com dois cobertores, gorro. Na rua estavam -9ºC e no meu apartamento -2ºC. Era terrível.” Quando os combates se intensificaram naquela zona, o terror constante acabou por fazê-la sair. “Quando caíram aqui dois projéteis foi assustador. Matou um homem, foi levado pela Cruz Vermelha."
Numa das poucas casas térreas daquela fração do bairro, Volodymyr assistiu a tudo na primeira fila. “Nós estávamos aqui sentados a fumar quando caiu o primeiro projétil. Um homem morreu logo.” O mesmo aconteceu a pelo menos “seis ou sete” conhecidos seus. “Estão a ver onde estão as bandeiras? Ali dispararam contra uma pessoa.”
Nos dois postes para onde aponta o homem, erguidos junto à estrada principal, esvoaçam a bandeira nacional, azul e amarela, e outra preta e vermelha, símbolo da independência ucraniana pelo menos desde o século XIX — e, em diferentes momentos da complexa história do país, apropriada por grupos nacionalistas.
“Depois começaram a bombardear tanto que nem sei para onde foi o corpo, porque durante alguns dias não saímos para a rua de todo.” Num dos bombardeamentos, Volodymyr conta que viu uma varanda e um telhado levantarem e assentarem de novo, inteiros, no mesmo sítio. Refugiou-se num quarto sem janelas com a mulher acamada, porque não conseguia transportá-la para a cave, onde se escondiam a filha, o genro, os netos, o irmão e a cunhada. Saíram a 19 de março.
Fonte: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
Informação atualizada a 20-09-2022. Cálculo baseado nos dados oficiais existentes. Os números reais podem ser mais elevados. Dados da fronteira correspondem aos números de entradas e saídas registadas, não a indivíduos.
Quando Volodymyr regressou, a 25 de abril, encontrou um cenário desolador. “Não havia pessoas, nada. Estava selvagem. Era só silêncio e vento.” A casa estava bastante danificada, sem portas nem janelas, mas as paredes e o telhado resistiram e, com alguns arranjos, foi possível voltar a viver ali.
Admite que teve mais sorte do que os vizinhos do outro lado da estrada. “Na rua Bagirova, em 68 casas, apenas quatro não ficaram queimadas.”
As probabilidades não jogavam a favor de Valentyna Vasilivna, que morava nessa mesma rua. Quando ela saiu, a 24 de março, no pico de violência dos combates, a casa ainda estava inteira. Pelas fotos de drone que viu antes de regressar a casa, tinha esperança que os danos tivessem sido apenas no primeiro andar. O que encontrou foi bem pior do que imaginara.
Mas as probabilidades poderiam ter sido ainda mais catastróficas para Valentyna e para a sua família, tendo em conta os locais de residência de cada membro. Ela é a mais velha de três irmãos e vive em Irpin, uma irmã tem casa em Hostomel e outro irmão vive em Bucha — três dos locais onde a presença russa deixou um rasto mais devastador, nos arredores da capital. A casa da irmã chegou a estar ocupada por militares russos, já depois de ela fugir com o marido e os filhos. O irmão também conseguiu sair nos primeiros dias. “Graças a Deus que todos estão vivos, todos com saúde, está tudo bem.”
Durante três semanas, família, amigos e colegas de trabalho temeram outro desfecho. Valentyna fez 57 anos a 3 de março, mas nesse dia ninguém conseguiu ligação para a felicitar. A diretora do serviço onde trabalha, no banco TAC, chegou a enviar voluntários de Kiev para a procurarem, mas foram atingidos por disparos à entrada de Irpin, um ficou ferido e não conseguiram chegar até ela. Esteve incontactável nas três semanas seguintes. Todos pensavam que tinha morrido.
Agora, Valentyna vive temporariamente na casa de um amigo em Kiev. Só se desloca a Irpin para tratar de burocracias relacionadas com o processo de reconstrução, que não sabe quando começará. “Disseram que enquanto a guerra não acabar ninguém vai fazer nada.”
Por enquanto, a câmara municipal tem organizado alojamentos temporários para quem ficou sem nada. Há acampamentos, casas pré-fabricadas e até vagões de comboios a albergar famílias inteiras.
O mais urgente, entende o presidente da câmara, é reconstruir os equipamentos sociais e os prédios altos, que albergam várias famílias.
Oleksandr Markushyn tem, por isso, feito um périplo internacional à procura de apoios — tendo já visitado locais como a “cidade irmã” de Milwaukee, nos Estados Unidos, Paris, Bruxelas ou Cascais, que se juntou em junho à lista de cidades geminadas com Irpin. Na mala de viagem leva fotografias que mostram como estava, antes da invasão, cada um dos edifícios destruídos e um projeto de reconstrução com os custos estimados.
“Pedimos fundos às cidades e às grandes organizações, sugerindo que cada um escolha apenas um prédio” para apadrinhar. “Desta forma, juntos, conseguiremos reconstruir rapidamente.” O objetivo é colocar Irpin novamente de pé no prazo de um ano e meio. “Não para ficar igual ao que era, mas para ficar melhor”, ambiciona o autarca.
Reviver a fuga e o que ficou “bloqueado”
Os rumores da possibilidade de uma guerra começaram a intensificar-se nos últimos meses de 2021. Alla e o namorado, Yaroslav, não acreditavam que fosse mesmo acontecer, mas tinham uma mala de emergência pronta, dinheiro de parte e os documentos organizados.
Alla é madrinha de Lev e mora com o namorado a poucos minutos da família Soboleva. Quando a invasão russa efetivamente começou, ainda esperaram que “tudo terminasse rapidamente, que eles desistissem de atacar”, tendo em conta a perceção que tinham da resposta ucraniana — “nós até nos defendemos de forma bastante firme”, sublinha Yaroslav.
Na manhã de 8 de março, quando acordaram sem gás e sem possibilidade de aquecer a casa, decidiram que não podiam mais arriscar ficar em Irpin. Passaram por casa de Yulia uma primeira vez e perceberam que a família deveria estar escondida algures, porque ninguém os ouvia. Uma hora depois voltaram a tentar e ouviram o pai gritar: “Yulia, está ali a Alla, vai, corre!”
Sabiam que estava programado um corredor humanitário naquela manhã e não era certo quando haveria outro. Saíram todos juntos: Yulia e Lev seguiram Alla e Yaroslav, que levavam ainda o cão de raça husky de ambos.
Estavam preparados para fazer os 25 quilómetros que separam Irpin de Kiev a pé, mas depois de passarem a ponte perceberam que havia toda uma logística de transporte organizada por voluntários, com autocarros e ambulâncias.
Seguiram todos de boleia até Kiev e apanharam um comboio para Lviv. Alla e Yaroslav ficaram os três meses seguintes naquela cidade. Yulia seguiu com Lev para Slavske, para casa de conhecidos — e mais tarde para Portugal.
Alla não digeriu de imediato o que tinham acabado de viver. “Honestamente, eu não tinha nenhum tipo de medo, estava sob efeito de adrenalina. Tomas decisões automáticas e não consegues consciencializar o que está a acontecer realmente”. Só mais tarde, ao ver fotografias de situações idênticas à que tinha vivido, caiu em si. “Aí compreendi que foi, de facto, assustador e que nós poderíamos não ter sobrevivido.”
Nessa mesma noite, Yulia aconselhou os pais a replicar aquele caminho e a abandonar Irpin de imediato. Saíram todos no dia seguinte: o pai, a mãe, a irmã e a tia Jeniya. Ficaram dois meses em Ukrainka, a 50 quilómetros de Kiev, uma pequena cidade nas margens do rio Dnipro.
8 março | Yulia e Lev fogem de Irpin para Slavske. Ficam lá duas semanas.
24 de março | Yulia e Lev saem da Ucrânia em direção a Portugal. Ficam em Leiria dois meses e meio.
8 de março | Alla e Yaroslav fogem de Irpin para Lviv. Ficam nessa cidade três meses.
9 de março | Pais, irmã e tia de Yulia fogem para Ukrainka. Ficam lá um mês e meio.
Reaver a normalidade
Assim que as autoridades locais anunciaram que era seguro entrar em Irpin, em meados de abril, Alla e Yaroslav regressaram para avaliar o estado da casa. Um projétil tinha caído no quintal, o carro tinha sido atingido, o celeiro já não existia, havia fissuras nas paredes. Tinham um longo trabalho pela frente, mas era possível voltar a habitar ali. Gastaram o mês seguinte a limpar e a remover os destroços.
São ambos designers de equipamento e mantiveram os empregos, depois de um período de paragem.
Enquanto Yulia estava em Portugal, foram trocando fotografias e mensagens diariamente, viram o oceano pelo telemóvel da amiga, chegaram a imaginar fazer-lhe uma visita num futuro que permitisse férias, mas receberam empolgados o anúncio de que mãe e filho regressariam à Ucrânia.
Há uma incerteza permanente no horizonte, admitem, mas decidiram aceitá-la e aprender a viver com ela, guardando-a o mais possível longe da vista. Não colocam de parte a hipótese de outro ataque russo que os obrigue a fugir novamente, que lhes destrua a casa, que eventualmente os force a sair do país. Mas é com uma certa estupefação que reagem quando lhes é perguntado se conseguem imaginar-se a retomar a vida normal.
Domingo de família (com mísseis)
O mesmo grau de aparente normalidade sobressaía em cada movimento da família Soboleva, no primeiro almoço de domingo em família desde o regresso de Yulia e Lev.
Naquele final de manhã soalheiro e quente desprendia-se da cozinha um aroma adocicado. O vapor dos tachos acentuava o ar atarefado de Maryna, que preparava “varenyky” — um prato típico ucraniano, feito com massa cozida, cortada em pedaços do tamanho de rissóis e, naquele caso, recheada com batatas e ginjas. A acompanhar havia “smetána”, um creme de leite amargo muito tradicional nas mesas eslavas.
Enquanto se sentavam à mesa no alpendre, comentavam a passagem de três mísseis russos pelos céus de Irpin, horas antes.
A família estava reunida à mesa pela primeira vez em mais de quatro meses — com excepção da tia Jeniya, que estava a descansar, e da irmã de Yulia, que não estava em casa.
Não é algo que façam normalmente, cada um costuma ir comendo à vez. Mas naquela tarde ficaram mais um pouco a conversar e rapidamente recuaram aos primeiros dias de março, quando sair do alpendre parecia impossível, e a tudo o resto que só souberam depois de fugirem de Irpin.
Enquanto estiveram fora, um vizinho da frente ia-lhes dando conta do estado da casa e alimentando a cadela Shera, que ficou para trás, por receio de que os obrigassem a deixá-la pelo caminho. O facto de ter passado aqueles meses à solta no espaço exterior acabou, inadvertidamente, por providenciar uma segurança extra quando voltaram a casa.
As autoridades tinham alertado para o perigo de armadilhas, que podiam estar nas portas, em brinquedos ou mesmo em eletrodomésticos. “Pediam às pessoas para não terem pressa de regressar e aconselhavam a chamar um especialista, mas nós tínhamos o nosso próprio especialista a correr pelo quintal, portanto não tínhamos tanto medo. A cadela andava aqui a correr”, recorda Maryna.
O desespero que Shera terá experimentado enquanto esteve sozinha ficou gravado na porta de casa, que perdeu parte do revestimento. Ainda antes de a família fugir, quando os bombardeamentos mais intensos obrigavam a procurar a cave, a cadela ficava junto ao alçapão e descarregava o stress no linóleo do corredor.
Faltava uma tarefa na agenda daquele domingo em família: conseguir sentar Lev ao piano para finalmente retomar os estudos, interrompidos desde o início da guerra, em finais de fevereiro. Mas naquela tarde nada afastaria o rapaz do trampolim, montado à entrada de casa.
O máximo que o avô conseguiu negociar foi uma aula para o dia seguinte, com a promessa de que o fariam em modo formal, como numa audição, e que ambos tirariam da gaveta a roupa tradicional com bordados ucranianos.
“Obrigado, soldado”
A pequena lição decorre no espaço mais versátil da casa. Aquela divisão serve de sala de ensaios, quarto de mãe, filho e avós, de biblioteca e ocasionalmente de atelier de costura.
Terminada a exibição de piano, Yulia reorganiza a mesa central e começa a trabalhar nas encomendas mais recentes: t-shirts de homem, incluindo uma com a inscrição “Boa noite, sou de Irpin”, e equipamentos militares, como revestimentos de coletes à prova de bala e camisolas térmicas. É um desafio mais complexo, mas Yulia tem experiência na área — trabalhou no passado numa empresa de Irpin que produzia diversos artigos para o exército, incluindo fardas para equipas de desminagem.
Parte da motivação que sentiu desde o regresso deve-se também ao facto de agora perceber que pode contribuir, com o que melhor sabe fazer, para o esforço de guerra. Pouco mais de um mês depois da última entrevista com o Observador em Irpin, Yulia concluía a recriação de um uniforme militar feminino.
“Pela primeira vez em cinco meses sinto-me útil. É estranho estar a costurar roupa militar feminina, mas gostei. Experimentei o uniforme em mim, é confortável e útil. Mudei um pouco o corte, agora é um uniforme militar com um toque de designer”
Já no mundo particular que funciona dentro da cabeça de Lev, todos os problemas se resolvem com invenções, por mais improváveis que pareçam. Quando soube que iria para um país chamado Portugal, do qual nunca tinha ouvido falar, criou a expectativa de que seria um bom lugar para construir um foguetão e, quem sabe, o seu próprio avião. Perante o calor anormal que encontrou na primavera de Leiria, adaptou os planos e decidiu construir uma ventoinha, juntando canetas, réguas e parafusos.
Tudo isto é imaginário. Tal como a explicação que encontra para o facto de a Ucrânia continuar a resistir: “uma cúpula invisível”.
Quando voltou a entrar na Ucrânia, surpreendeu-se por ver, pelas janelas do comboio, que “as pessoas andam e os carros circulam”, um indicador de que afinal o país ainda funcionava. No fundo, Lev intuía que esse feito não se devia apenas a entidades fantasiadas. Por sugestão da sua professora ucraniana, decidiu escrever uma carta de agradecimento, que havia de chegar a alguém na linha da frente.
Olá soldado! O meu nome é Lev. Quero agradecer-te por ter podido regressar a casa em Irpin. Obrigado pelo facto de a minha mãe, a minha avó e o meu avô estarem vivos. Obrigado por todos os dias nós acordarmos e continuarmos a viver na nossa Ucrânia!
Reportagem
Catarina Santos e Diogo Ventura
Tradução e produção
Tânia Oliynyk
Web Design
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Texto
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Imagens de arquivo
Reuters e Getty Images