No piso térreo do Torreão Poente da Praça do Comércio, abriu há dias uma exposição dedicada a Miguel Ventura Terra, logo depois de “Lisboa que teria sido”, no Museu da Cidade, e pouco antes de “Implosões, construções e demolições”, que começará muito em breve no Arquivo Fotográfico da Rua da Palma. Ainda que participante das comemorações dos 150 anos do nascimento do arquitecto, integra também um coeso ciclo de exposições que celebra Lisboa como cidade em progresso ou que “em continuidade se renova” (sic), remetendo-nos subtilmente, mas num inevitável registo comparativo, para a actual, avassaladora e simultânea obra urbanística de Medina e Salgado, o presidente não-eleito e o vereador todo-poderoso da Câmara Municipal de Lisboa lançados na mais frenética renovação citadina com eleitoralismo premeditado de que há memória na nossa história recente.

A exposição que agora nos ocupa decorre até 21 de Outubro (prevista para de Abril a Junho, foi adiada e fica um mês a mais), a de fotografias vai até 18 de Novembro. Como Miguel Ventura Terra, Manuel Sande e Castro Salgado é um arquitecto com obra feita na cidade que se tornou um vereador municipal e se vem distinguindo por enorme influência em decisões de licenciamento edificativo com grande impacto urbano, fácil consentimento em intervenções de falso restauro em prédios nobres degradados, num contexto de inquietante gentrificação e cíclica inflação imobiliária, e que é de alguma forma “o cérebro” de todos estes trabalhos em curso. Pelo seu lado, Ventura Terra foi o primeiro a subverter a Baixa pombalina, com o edifício-sede do Banco Lisboa & Açores, na Rua do Ouro (hoje Santander Totta).

11 fotos

Depois que a Assembleia da República replicou em 2009 a extensa mostra que a Câmara Municipal de Esposende lhe dedicara um ano antes — com curadoria científica de Ana Isabel Ribeiro e publicando Miguel Ventura Terra. A Arquitectura enquanto projecto de vida, um álbum-catálogo de 500 páginas que é ainda a grande obra de referência sobre a obra do arquitecto —, pouco, muito pouco ou quase nada foi ou pôde ser acrescentado ao que de importante já se sabia acerca dele. Novas descobertas, sempre possíveis e sempre benvindas (e elas existiram, de facto), têm certamente valor, mas que não deixa de ser residual. E tanto assim é, que nem em Lisboa nem em qualquer outra parte a efeméride que formalmente terminou a 17 de Julho passado trouxe novidades substantivas (o call for papers para um colóquio na Universidade Lusófona foi atendido com indiferença pelos maiores nomes da historiografia da arquitectura portuguesa). 2016-17 foi basicamente assinalado pela publicação de Açôr, o Cão de Ventura Terra de Gisela Gil, um pequeno livro que não é mais do que uma biografia ficcionada, que pouca atenção recebeu (e melhor para ele…), e duas exposições locais sobre a sua obra: as moradias em Cascais-Estoril na Fundação D. Luís I, e o demolido balneário local na galeria municipal de Setúbal.

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O interessante projecto para um passeio marítimo do Funchal que o aproximaria da Côte Azur francesa não teve idêntica sorte, muito embora a estudiosa Teresa Vasconcelos o tivesse considerado, num livro de 2008, como “uma importante base no planeamento urbanístico da cidade do Funchal na primeira metade do século XX” e “um documento essencial para a compreensão do Funchal contemporâneo” — tão-pouco aparece, como merecia, nesta exposição, ao menos a título de contraponto ao projecto de Ventura Terra para a zona ribeirinha de Lisboa, da Rua do Arsenal ao Cais do Sodré e Santos.

Aliás, essa baixa expectativa de novos contributos acerca da obra do arquitecto levou as curadoras Ana Isabel Ribeiro, Hélia Silva e Rita Mégre a ignorar o trabalho de Gerbert Verheij apresentado em Abril passado como tese de doutoramento à Universidade de Barcelona (The Aesthetic of Lisbon. Writing and pratices during the early 20th century), em que este bolseiro da FCT comenta — sob nova perspectiva — o projecto ribeirinho, no capítulo “Urban aesthetics in republican Lisbon: Ventura Terra and ‘municipal aesthetic'”. Também desbarataram a oportunidade dum retrospecto “antológico” sobre a sua fortuna crítica e duma reavaliação da sua obra de gosto parisiense, cosmopolita e mundano face à de outros arquitectos da sua geração ou posteriores, tais como Adães Bermudes (1864-1948), Norte Júnior (1878-1962), Raul Lino (1879-1974), Luís Cristino da Silva (1896-1976), Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957) e Cassiano Branco (1897-1970), no panorama duma época tão singular de forte expansão da cidade, em que diversos estilos e técnicas de construção estiveram em claro confronto.

Certa pedagogia de “ver cidade”, que ajude a valorizá-la e talvez a salvaguardá-la, passa por visitas “portas abertas” de edifícios classificados, mas passa certamente também pela explicação acessível a todos — em realizações deste tipo — de como, quando, por quem e para quem novas construções foram erguidas ao longo dos anos, permitindo compreender melhor como certas parcelas duma cidade puderam ser tão desfiguradas (muitos prédios de aluguer de pouca qualidade, como nas Avenidas Novas, por exemplo), ou quem são aqueles que habitaram esta ou aquela casa notável e a sua relação com os meios artísticos, da arquitectura às artes decorativas. Dois casos apenas: o prédio de esquina entre as ruas Braamcamp e Duque de Palmela que foi durante décadas a sede histórica do semanário Expresso e hoje pertence a um banco chinês, depois de “convenientemente” desventrado, foi uma encomenda de Emílio Liguori, representante em Lisboa da moderníssima empresa de elevadores eléctricos e hidráulicos Stigeu, que ali sem dúvida instalou um seu, tornado ícone do próprio prédio; e o palacete Mendonça, recentemente adquirido para sede da Fundação Aga Khan, foi construído para residência dum “benquisto africanista” (sic), com fazendas e filantropia em São Tomé e Príncipe, donde vieram as madeiras utilizadas nos tectos, lambris e algum do mobiliário.

O grande débito português de consciência patrimonial carece que todas as oportunidades sejam aproveitadas para ajudar a construir paulatinamente uma identidade que nos preserve e aguente, e o caso deste arquitecto nascido filho dum pescador, entre uma dezena de irmãos que emigraram, e partiu de aprendiz de carpinteiro para se distinguir numa elite profissional formada em Paris e reconhecida ao mais alto nível pelo Estado francês, tem tudo para servir essa finalidade, pelo exemplo de empenho pessoal e público por uma sociedade melhor e mais inclusiva.

Paris-Lisboa

Miguel Ventura Terra foi vereador de Câmara Municipal de Lisboa em 1908-13 e 1917-19, presidiu durante largos anos à Associação dos Arquitectos Portugueses (que ajudou a fundar) e à Comissão dos Monumentos Nacionais, fez parte dum Conselho de Arte e Arqueologia, e riscou edifícios que de facto marcam — simbolicamente até, do berço aos livros — a vida de muitos milhares de lisboetas, entre os quais três grandes liceus (Camões 1907, Pedro Nunes 1908, Maria Amália Vaz de Carvalho 1915-35), uma maternidade, um lactário-creche, um teatro, um “banco-palácio”, uma sinagoga, vários “prédios de rendimento” e uma dúzia de boas casas — “casas artísticas”, como ele lhes chamou numa entrevista em 1910 — de magnatas da indústria, da imprensa e do comércio que ainda hoje (as que persistem, claro) se destacam em bairros e avenidas emergentes e que lhe valeram alguns prémios Valmor, além da sua própria, “paradigma dum novo habitar urbano” — que Ventura Terra deixou em benefício dos estudantes pobres das escolas de arquitectura de Lisboa e Porto, uma dádiva tão singular e admirável que ficou gravada em lápide na fachada e que, por incrível que pareça, a exposição preferiu subestimar…

Distinguiu-se também — e de maneira muito especial — como o arquitecto que, a convite de João Franco, converteu a partir de 1895 um velho convento na aparatosa sede do assim designado “Palácio das Cortes”, dando ao edifício de São Bento praticamente a aparência que ainda tem: “o mais importante, o mais grandioso, o mais belo de todos os recintos portugueses dos últimos cem anos”, na opinião avisada de Ramalho Ortigão no livro Arte Portuguesa (e que tanto contrasta com as palavras de Eduardo Ferro Rodrigues num livro subsidiado: “Não sendo eu um especialista em arquitectura ou urbanismo, a vida e a obra de Ventura Terra interessam-me, ou não fosse ele o arquitecto da fascinante Casa da Democracia, a que presido. — Fiquei agora a admirá-lo ainda mais, ao saber que Ventura Terra era, tal como eu, um homem que gostava de cães” — itálicos meus).

Miguel Ventura Terra, jovem arquitecto. Colecção de Alda Terra

Este trabalho no Parlamento foi tão relevante que em 1904 o rei D. Carlos — que anos antes estivera ao seu lado na cerimónia inaugural do monumento ao Duque de Saldanha, de que ele, ainda de Paris, desenhara o pedestal; e a cujo funeral Terra assistiu, representando a Academia Real de Belas-Artes do Porto, em que se formou — o fez Cavaleiro da “antiga, nobilíssima e esclarecida” Ordem de Santiago “do mérito científico, literário e artístico”, oferecendo-lhe noutra ocasião o compasso que o arquitecto João Frederico Ludovico (1673-1752) usou nos trabalhos do Convento de Mafra. Mas o Rei fez mais: por reconhecer nele a grande influência estética e professoral de Victor Laloux, concedeu ao arquitecto da Gare d’Orsay (também professor de Marques da Silva) a comenda da Ordem de Cristo, em Outubro de 1894.

Os dez anos passados em Paris (1886-96) moldaram a linguagem estética deste arquitecto cuja obra tem o seu epicentro mais representativo entre a ponta da Rua Alexandre Herculano (e adjacentes) que toca a Avenida da Liberdade e o topo da Avenida Álvares Cabral, junto ao Jardim da Estrela, mas se espalhou também por muitos outros lugares, como Seixas (Caminha), sua terra natal, Viana do Castelo, Monção, Valença, Póvoa do Varzim, Esposende, Porto (é o caso da sede filial do Banco de Portugal, na Avenida dos Aliados), Vila Nova de Gaia, Vidago, Alcobaça, Caxias, Salvaterra de Magos e Ferreira do Zêzere, além de Cascais e Setúbal, como vimos, e da Praia das Maçãs (Sintra), em cuja arriba se construiu em 1908 o hotel-restaurante Royal Belle-Vue, de quatro andares, destruído por um incêndio em 1921.

Embora a exposição do Torreão Poente realce no dispositivo sonoro o papel de Ventura Terra como vereador do município, et pour cause, a parte mais relevante do seu legado foi construída antes dessa função “política” e muito para além dela: além de a quase totalidade das casas particulares que desenhou precederem 1910, o imponente e arrojado Liceu Camões, erguido em 1907-9 na parte nova da cidade projectada pelo engenheiro Frederico Ressano Garcia, e o de Pedro Nunes, de 1908, traduzem na qualidade dos materiais e na excelência do projecto uma forte visão de futuro e de durabilidade que vinham de trás e só viria a ser retomada com Duarte Pacheco nos anos 1940; enquanto a desordem do novo regime, a crise financeira e a guerra mundial suspenderam ou paralisaram por mais de duas décadas — e para além da morte do seu arquitecto — a construção da Maternidade Alfredo da Costa e do Liceu Maria Amélia Vaz de Carvalho.

O seu empenho na campanha de 1917 pela remoção da macabra fábrica de gás da proximidade da Torre de Belém foi inconsequente até 1950, os seus generosos cuidados com a salubridade e ordenamento do bairro operário do Casal Ventoso, com a zona ribeirinha (1908) ou com a ocupação ajardinada do parque Eduardo VII (1909) também de nada serviriam afinal. A ideia duma “ponte monumental” sobre o rio Tejo, desde o Alto de Santa Catarina até ao Forte de Almada, proposta logo em 1908 e exibida oficialmente em Madrid, num congresso internacional de turismo, quatro anos depois, nunca foi verdadeiramente levada a sério (e felizmente a sua proposta de arrasar Alfama por imperativos de salubridade também não!), e o seu projecto para um Instituto Superior Técnico em 1915 — agora pela primeira vez revelado — não foi além do papel de esquisso em que o desenhou. O hospital Valentim Ribeiro, em Esposende, projectado em 1910, só foi construído em 1916. O monumento-santuário de Santa Luzia, em Viana do Castelo, projectado em 1899 a partir do estilo ecléctico do Sacré Cœur parisiense, teve a sua construção, iniciada em 1904, suspensa pela lei republicana de separação do Estado e da Igreja (1910), e retomada em 1926, já depois da morte do seu criador…

O belo Teatro Politeama (1911-13), em que José-Augusto França viu “grande inteligência de projecto”, é uma encomenda privada do empresário teatral Luís António Pereira, um homem de Guimarães que fez fortuna no Brasil, assim como a casa do escultor e pintor Artur Prat (1911-13), que em 1918-35 pertenceu à Condessa de Arrochela e hoje é sede nacional da Ordem dos Engenheiros. O referido trabalho urbanístico no Funchal, o projecto para o palácio do Congresso Nacional no Rio de Janeiro, a filial do Banco de Portugal no Porto, a sede do governo civil de Viana do Castelo, a Colónia da Sineta em Caxias (obra encomendada em 1910 por um amigo para valer a crianças pobres e actualmente um edifício em sério risco), o sanatório para cegos em Cascais, as escolas primárias de Salvaterra de Magos e de Ferreira do Zêzere, o exigente projecto precursor para um hospital da cidade do Porto (1916-19, em parceria com o irmão do escultor Teixeira Lopes, seu especial amigo e colaborador), múltiplas e variadas incumbências como jurado de prémios ou delegado a congressos no estrangeiro, e certamente também a crónica intermitência político-financeira que não podia deixar de atingir a autarquia e motivou o seu regresso temporário ao Ministério do Fomento, afastaram de facto o arquitecto-vereador dos destinos da cidade de Lisboa, muito mais do que à primeira vista seria expectável — e é dito nesta exposição.

Além da pequena falácia eleitoralista do arquitecto grande vereador municipal, para fazer lembrar um outro da actualidade, não fica nesta exposição suficientemente à vista a permissividade com que a autarquia permitiu a delapidação do legado artístico de Ventura Terra: a casa de Miguel Henrique dos Santos na Rua Rosa Araújo foi demolida em 2015, ano em que os prédios ditos de Joaquim dos Santos Lima na Avenida da República com Elias Garcia foram desventrados para darem lugar a um hotel de grande porte; o mesmo sucedendo para o citado prédio do comendador Liguori, arrasado por dentro e acrescentado num piso em 2004-5; e não são explicadas as razões pelas quais a casa de António Thomaz Quartim na Alexandre Herculano, prémio Valmor de 1911, pertencente à CML desde 1970, foi vendida a particulares em 2008.

Sem perder de vista o mérito das curadoras na pesquisa recente em arquivos municipais e outros (ainda inacessíveis à consulta de Maria Perdigão aquando da sua tese precursora de 1998, por exemplo), a ausência dum catálogo comprovado (raisonnée) — impresso a tempo e horas, nesta ocasião de especial efeméride — capaz de apresentar e representar um novo patamar de conhecimentos sobre a vida e obra de Miguel Ventura Terra, e a opção por um design expositivo e editorial protagonizado por quem não tem ainda o gabarito profissional (nem, certamente, a respectiva retribuição) de outros colaboradores habituais da Câmara Municipal e da EGEAC, enfraquecem consideravelmente esta homenagem, aliás justíssima, a Miguel Ventura Terra. É pena.