Nascida a 03 de agosto de 1937, Maria José Silva foi aplacando as agruras e felicidades da vida ao realizar 12 filmes ao longo de três décadas, sem descurar o trabalho ao balcão da Queijaria Amaral, no Porto.

Num estilo marcadamente amador, mas sobretudo empenhado, a queijeira escreveu, realizou, musicou e interpretou as suas obras com a ajuda da família, partindo de episódios da própria vida que depois ficcionou, e angariando amigos, conhecidos ou familiares para retratar uma perspetiva do mundo através de um cinema “verdadeiramente independente”.

A realizadora foi homenageada este fim de semana com a mostra de um documentário sobre o seu processo cinematográfico na Videoteca de Lisboa, cidade em que escreveu o primeiro filme – “Os velhos não são trapos” – numa iniciativa conjunta da galeria Pickpocket Gallery e a associação cultural portuense Inculta TV.

“Não é para me gabar, mas eu fui sempre uma pessoa humilde”, dizia Maria José Silva a caminho de Lisboa, onde assistiria ao ‘making-of’ do filme “Mulheres Traídas”, que produziu em 2007, descrevendo parte da razão por que não gosta de “filmes de ruindade, só de filmes amorosos”.

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“Só gosto de coisas bonitas, não gosto de filmes barulhentos”, afirmava, perentória, a caminho da projeção do filme que acabaria por servir de cerimónia de encerramento à mostra da sua filmografia, que esteve três meses em exibição na Pickpocket Gallery, na baixa lisboeta.

Para Miguel Marques, realizador portuense de 43 anos, dirigir o ‘making-of’ apresentado na Videoteca de Lisboa foi “quase inevitável”, até porque vivia na Rua de Santo Ildefonso, no Porto, e era portanto vizinho da queijaria de Maria José.

“O que me atraiu na sua obra foram as referências involuntárias à história do cinema português”, dizia à Lusa o realizador, sublinhando que “Maria José é uma historiadora involuntária do nosso cinema, porque podemos estar a ver um filme dela e lembramo-nos de [João] César Monteiro ou Manoel de Oliveira, por alguns ‘décors’ que ela usa e devido à sua ingenuidade muito forte”.

Maria José Silva não conseguiu conter o riso na Videoteca de Lisboa, enquanto assistiu à figura que fazia quando realizava, chegando a gritar “Silêncio! A realizadora está a falar, vocês têm de estar calados!” aos atores, ou “Aqui que manda sou eu!”, um riso que só seria abafado pelos do público que assistia ao ‘making-of’.

“Eu faço um filme. Escrevo-o. E depois penso: isto tem que ter um fim. Mas o fim já está na minha cabeça”, explicava aos assistentes em conferência improvisada no final da exibição do filme sobre os seus filmes, pouco antes de distribuir autógrafos.

Para Rui Poças, diretor da Pickpocket Gallery, a realizadora natural de Vila do Conde “representa um espírito de iniciativa que vai contra o que é muito habitual em Portugal, que é um certo queixume contra a falta de apoios, que tem costas largas para não se fazerem as coisas”.

“A Maria José é uma senhora que decidiu tomar a vida pelo pulso e que fez o mesmo em relação ao cinema”, considerou o galerista, frisando que “ela faz tudo e não anda a pedir ajuda a ninguém. Portanto, é um exemplo de que quando queremos fazer uma coisa, basta-nos a força de vontade.”

“Olhe, para mim, foi uma alegria que me deram”, dizia Maria José Silva no final da exibição, considerando estar “rodeada de amigos” que até lhe deram um certo incentivo para realizar um 13º filme, “O Filho do Conde”, que até já estava escrito, mas cujo argumento “foi levado por um senhor” para Inglaterra, para nunca mais voltar.

A realizadora garante, contudo, que vai vai voltar à carga: “Vou-me amarrar e vou escrever outra vez”, disse à Lusa, com a mesma certeza e iniciativa que a levaram a editar discos e livros, para além de filmes.

“Quando o fizer, eu digo”, assegurou, adiantando que quer voltar à cidade para o exibir, até porque tem “muitas amigas em Lisboa que gostariam de o ver”.

“Eu gosto muito do Porto/ E ao mais não sou tripeira/ Eu sou de Vila do Conde/ De São Simão da Junqueira/ Também gosto de Lisboa/ Que recordo com saudade/ Lá deixei os meus amigos/ E a sua grande amizade/, cantava Maria José a caminho da capital, que a havia de receber de braços abertos, pelo cinema “verdadeiramente independente” que se orgulha de ter feito.