O mundo dos videojogos é frequentemente confundido com um nicho quase tribal e exclusivamente masculino, constituído maioritariamente por miúdos imberbes e borbulhentos, cujas prioridades na vida se resumem a comer comida de plástico e a gritar com pessoas através do Skype, enquanto assaltam velhinhas e assassinam prostitutas no GTA. Em certa medida, não deixa de ser verdade.

Tomemos como exemplo o ano de 2014 e os múltiplos “casos” envolvendo mulheres que se identificavam como gamers, mas que eram constantemente objetificadas e até, em alguns casos, insultadas por alguns elementos mais puristas (usando o termo puristas de uma forma bastante lata, obviamente) da comunidade a que supostamente pertenciam.

O que é então, um Gamer? Um gamer é um estrangeirismo empregue para identificar alguém que de uma forma mais ou menos assoberbante, dedica grande parte do seu tempo aos jogos de vídeo. Posto isto, um gamer não é então, necessariamente, um nerd… Um nerd é alguém que normalmente também pode ser um gamer, não obstante apresenta uma unidimensionalidade tal que toda a sua vida gira em torno dessa atividade, ou seja, alguém sem vida para além disso (fala-se de jogos, mas, neste caso, poderá ser toda e qualquer atividade mais ligada à cultura e/ou tecnologia, ou até ao conhecimento de todas as falas de determinada série obscura dos anos 50).

É portanto errado pensar que um par de óculos de massa e jogar Tetris ou Wii qualifica uma rapariga como gamer. Basta passar brevemente num site de streaming de videojogos como o Twitch.tv, por exemplo, para se perceber que nos canais de raparigas/mulheres, estas são constantemente bombardeadas com comentários sexistas e abusivos. A opinião do leigo é que é um fenómeno do século XXI, que mostra como a Internet pode ser um meio para discussões fúteis sobre coisas que não interessam a ninguém, tais como cores de vestidos e gatinhos que fazem o pino em cima de um bebé (aviso sensato: não vá “googlar” isto por favor).

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Como referi anteriormente, o ano de 2014 foi particularmente fértil em discussões completamente desproporcionadas sobre a posição das mulheres na indústria dos videojogos. Refira-se o caso de Anita Sarkeesian, que ao tomar uma posição mais visível acerca da objetificação das mulheres representadas nos videojogos, viu todo um tsunami de insultos e ameaças de morte (e até violação) correrem na sua direção. Este caso e outros foram escalando até ao conhecido Gamergate, que de certa forma mudou a forma como as questões de machismo nos videojogos eram encaradas até então, e que culminaram com uma palestra de Anita Sarkeesian numa Universidade dos Estados Unidos que foi cancelada devido a ameaças terroristas.

Ou o caso do cientista do projeto Rosetta (cujos resultados poderão mudar a forma como encaramos a exploração espacial para sempre), que por aparecer numa entrevista com uma camisa havaiana com uma imagem de uma mulher seminua, viu-se também rotulado de machista e outras palavras pouco simpáticas. Depois, em setembro, a Nintendo faz uma parceria com a Playboy para promover o lançamento de um dos jogos mais polémicos do ano, Bayonetta 2. Este é um jogo conhecido como Hack n’slash (traduzindo para português, um género em que se bate muito em alguém) e no qual a protagonista é uma bruxa cuja indumentária é, digamos, quase inexistente. Escusado será dizer que, mais uma vez, choveram críticas de ambos os lados da barricada chegando por vezes a escalar para o deselegante, com acusações à própria Nintendo de ser uma empresa machista dirigida por machistas.

A polémica ainda assumiu mais estranheza devido ao facto de a Nintendo ser uma empresa associada a conteúdos mais “infantis”, onde os jovens compraram as suas consolas pelo Super Mario, Yoshi, ou um outro qualquer jogo da Wii que consista em dar aos braços em frente á televisão para fazer chegar água a um pote. Obviamente que a Nintendo é isto mas muito, muito mais. De qualquer forma, o espanto foi grande quando esta se associou à Playboy (que como se sabe é bastante conhecida pelo seus conteúdo mainstream) na promoção de um dos seus títulos, e que curiosamente acabou por ser um dos melhores jogos do ano, fazendo com que a partir dali, tudo fosse tratado com luvas de veludo por parte do departamento de comunicação da Nintendo. O jogo chegou até a ter a nota revista em baixo na sua análise de um dos mais famosos media especializados porque, embora fosse um jogo perfeito, a personagem estava demasiado despida.

Sem dúvida que existem exageros de ambos os lados. Mas algum dia chegaremos a um equilíbrio saudável entre ambas as partes? Acho muito pouco provável, pois à medida que nos vamos tornando mais “informatizados”, também assim aumentará proporcionalmente a nossa predisposição para dizer mal, criticar e julgar em tempo real, sem primeiro maturar um tema ou mesmo chegar a raciocinar sobre o mesmo; especialmente com fenómenos que não compreendemos, seja por questões de educação, ou apenas por que simplesmente vai contra as ideologias que nos foram incutidas. Esse foi e sempre será o grande fator de cisão entre fações na Internet. Claro que existem sempre aqueles que apenas querem ver tudo a arder, e portanto, quanto mais polémica melhor. Há de facto gente que goste de discórdia, de discussão, e faz tudo para que a mesma exista e bem acesa.

A questão do machismo, misoginia e objetificação das mulheres nos videojogos é, portanto, algo que infelizmente sempre existirá enquanto a comunidade de gamers for composta na sua esmagadora maioria, por homens/rapazes. Pois, no outro lado do espetro, estão as produtoras que, no seu bottom-line veem cifrões e arranjam sempre formas inovadoras e inventivas de os adquirirem. Tornando-se assim, obrigatório que se agrade à maioria dos seus consumidores. Claro que, num futuro utópico, existiria um equilíbrio perfeito de 50/50 entre a demografia de género na comunidade gamer, mas receio que até lá ainda tenhamos que esperar muito tempo.

João Candeias, Rubber Chicken