Salvador Sobral é a Água do Luso desta edição da Eurovisão, que decorre em Kiev até sábado. Isto se os russos não aproveitarem a distração provocada pelos decibéis e pelas lantejoulas para invadir a capital da Ucrânia. Começaram pela Crimeia, seguiram para o vale do Donbass, por aí fora. Se Putin se acobardar, há poucas chances de o caneco escapar a Portugal.

Explico-me. Salvador, cujo nome é ele próprio auto-explicativo, tem um talento inato. Não coloca uma nota fora do lugar. Aparenta ter nervos de aço. E sobressai com naturalidade nesta espécie de Rádio Eurovision, que transmite o mesmo ruído de fundo durante a maior parte do tempo. Algo entre o azeite euro-dance-teen-pop e as baladas sofridas e interpretadas por personagens que acha que cantar bem é sinónimo de cantar alto.

Dir-me-ão: “Mas são os lagares dessa Europa que vai do Cabo da Roca a Sidney (?!) que costumam produzir os vencedores do festival, ano após ano”. Certo. Acontece que o populismo tem sofrido alguns revezes eleitorais — e o processo de votação é agora mais democrático, apesar da chantagem das chamadas de valor acrescentado que favorecem os países ricos do Norte — e os ventos podem soprar a favor do nosso miúdo, que mantém uma atitude desconcertante e uma sobriedade a que não estávamos habituados.

No meio da tralha visual, das máquinas de fumos, do air sex com saxofones, das coreografias enfeitadas com Apolos e Adónis em tronco nu, a contenção de Amar Pelos Dois pode mesmo ser favorita. Mais. Salvador e a sua equipa abdicaram do aparato cénico e do novo-riquismo e apostaram tudo num pequeno pedestal colocado no meio do público. Um despojamento que remete com facilidade para a entrada triunfal do Messias em Jerusalém, com a vantagem de ter dispensado o modesto burrico (olá, Fernando Correia Marques, outro colosso do nacional-cançonetismo que não teria hipóteses em 2017) e as folhas de palmeira transportadas pelos groupies da Boa Nova.

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Para já, diria que o caminho está aberto para a consagração do nosso menino, se expulsar os vendilhões do templo — os chamados cinco grandes — mais a equipa da casa. É um caminho com espinhos mas diria que as hipóteses nunca foram tão boas. E num cenário de 13 de Maio em que podem caber uma vitória do Benfica, uma dupla canonização e um triunfo inédito na pop, alguém como eu, assim para o ateu, assim para o adepto do FC Porto, assim para o simpatizante do punk, há-de perguntar-lhe: Senhor, por que me abandonaste?

Aliás, amar pelos dois não será pecado?

Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante.