Era uma vez um homem imbecil, grosseiro, ignorante, covarde e servil que secretamente sonhava com o poder. Esse homem tinha uma mulher espertalhona, ambiciosa e perversa que soube convencê-lo que a melhor forma de conseguir os seus desejos era fazer-se passar por revolucionário…Hmmm, por esta altura já estão todos a ver a cara dele, não é? Não. Ele não é muito conhecido, apesar de ser muito imitado. Ele é Ubu, rei da Polónia, ou de sítio nenhum, que saiu do génio de Alfred Jarry, pai do Modernismo, do Dadaísmo, do Surrealismo e do Teatro do Absurdo.

Ubué o selvagem, o revolucionário, o anarquista, o ditador, o sanguinário, o pai de família, o padre da igreja que todos os tempos e sociedades conheceram, mas que poucas souberam usá-lo para rir e rindo erodiram o seu poder, esconjuraram o próprio medo e ganharam forças para o “sarrafaçalar”. Ou melhor, para o “sarrafasalazar”, como diria o poeta Alexandre O’Neill, que muito se divertiu a traduzir para a editora Minotauro esta peça que Jarry escreveu aos 15 anos e que António Pires e o Teatro do Bairro estreiam esta quinta-feira nas ruínas do convento do Carmo, como quem propõe uma nova revolução para vigorar durante até 20 de agosto, sem chaimites, mas com um palco que é um tanque cheio de água onde até a lua vem flutuar, passam gatos vadios e voam gaivotas entre as ogivas abertas para o céu.

Ubu, interpretado por João Barbosa, é uma sátira aos homens do poder, de Trump ao presidente da junta de freguesia

Jarry, que morreu há exatamente 100 anos, haveria de gostar destes acasos. Ou então sacaria do seu muito inseparável revólver e desataria aos tiros para se rir das caras de terror dos que o rodeavam. É que um homem pode sair de Ubu, mas Ubu nunca sai de um homem. E o poeta e escritor francês que inventou essa criatura brutal sanguinária mas acima de tudo covarde, que deveria ser afinal um espelho de todos nós, nunca recuperou dessa criação. António Pires, o encenador, conta que a eleição de Donald Trump, a governar por Twitter foi a sua grande inspiração para este Ubu, mas a interpretação de João Barbosa, de fato azul escuro e gravata, remete-nos muito mais para as figuras do pequeno poder que Herman José tão bem satirizou naquela personagem que a todo o momento gritava: “eu é que sou o presidente da junta!”. De Trump ao presidente da junta, todos os homens de poder estão satirizados nesta peça com a qual Jarry desejou que todos se sentissem insultados, público incluído.

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Merdre! é a primeira palavra da história e há-de ser repetida muitas vezes. O’Neill e Luís de Lima optaram por traduzi-la para “merdia”, tal como adaptaram muitas palavras inventadas por Jarry para soarem como bons insultos e vernáculo na língua portuguesa. Sabendo de antemão que a peça seria proibida pela Censura não se coibiram de gozar na sua tradução o que sabiam não poder gozar com a sua estreia em palco. Assim, o verbo favorito de Ubu, “sarrafar”, que é como quem diz matar, destruir, O’Neill, que sabia como poucos fazer trocadilhos apenas com a sonoridade das palavras, traduziu para “sarrafaçalar” e depois para “sarrafasalazar”. E a peça foi proibida pela censura não por retratar um tirano mas “por conter muitas palavras obscenas”. Viria a ser representada pela primeira vez em Portugal no ano de 1978.

Ubu e a máquina de extração do miolo

Já se sabe que os regimes totalitários operam pela “extração do miolo”, seja o cérebro, o dinheiro, a justiça. Basta atirar umas moedas, cantar umas cantiguinhas e o povo fica contente. Ubu é selvagem, sanguinário mas o povo também o é. Por isso, ao domingo gosta de vestir a sua melhor fatiota e ir ver o espetáculo da “extração do miolo” para se divertir. O escritor sabia, até pela mortífera História de França, como a violência é a coisa mais contagiosa que há. Por isso avisa o público: se “estiverem quietinhos e com atenção” até vão poder ouvir a hilariante canção “A extração do miolo” (aqui, é claro, na versão de O’ Neill e à qual António Pires acrescentou um ritmo bem à século XXI).

O povo crédulo, bajulador e violento é também alvo das invetivas de Alfred Jarry

Ninguém se salva nesta peça que o jovem excêntrico e precoce escreveu na adolescência. Aos 15 anos faz a primeira versão para teatro de marionetas, intitulada “O Polaco”, que depois continuou fazendo um ciclo de histórias em verso que tinham com personagem este Ubu. A sua fonte de inspiração terá sido o seu professor de física do liceu cuja figura era alvo de constante escárnio dos alunos.

Ubu, um ser desprezível que se faz passar por revolucionário e justiceiro, mata o rei da Polónia para afinal usurpar o poder e tornar-se ele próprio um tirano sanguinário. Não sabemos se o pobre professor de física chegou a saber que ganhou esta eternidade literária graças ao impagável Jarry, que morreu com apenas 34 anos e já não viu as outras peças do ciclo Ubu serem representadas. Depois de usurpar o poder, Ubu trata de aniquilar os nobres, os juízes, os financeiros gritando: “para o alçapão”. O alçapão nesta versão de António Pires é… um saco de supermercado. Para bom entendedor um bom símbolo basta.

Como sempre acontece nas peças deste encenador, as coreografias e figurinos têm um papel importante e aqui servem habilmente para acrescentar dimensão interior e simbolismo às personagens. Destaca-se a senhora Ubu, deliciosamente interpretada por Alexandra Rosa, a fazer uma boa paródia a todas as “primeiras damas” deste mundo com a sua malinha de verniz pendurada no braço , os seus sapatos de plástico vermelhos e os óculos de sol. Não há como não nos lembrarmos das mulheres inventadas por Pedro Almodôvar. Os figurinos são feitos por Dino Alves e, onde a peça de Jarry usava máscaras de cartão, Pires usa “aquele tipo de linóleo com que se cobria o chão das casas nos anos 80”. António Pires confessa que há aqui um pouco de Monty Phyton, mas também “andou a ver formaturas e paradas de exércitos chineses e coreanos” para colocar em palco os soldados comandados por Bardalau, um chefe militar corrupto e sedento de poder.

Alfred Jarry (1873-1907) foi, apesar da sua vida curta, um percursor do Modernismo, do Dadaismo e do Surrealismo

Claro que Ubu, “um cornupança” não terá um bom fim apesar de tentar aquecer-se no lume enquanto espera que lhe tragam a lenha, apesar dos seus conhecimentos em Patafísica, essa ciência das soluções imaginárias que apela a um mínimo de compreensão e ao máximo de generalização. Será despojado do seu cetro (que é, na verdade, um piaçaba) mas como escreverá o próprio Jarry, talvez acabe “por ser nomeado chefe das finanças em Paris”.

A peça, que estará em cena de terça a sábado, até 20 de agosto, é interpretada por atores do teatro do Bairro em conjunto com os finalistas da ACT e tem legendagem em inglês