Os irmãos Louis e Auguste Lumière podem ter ficado para a história como os inventores do cinema, e ao mesmo tempo, do cinema documental e realista, graças aos seus mais milhares de filmezinhos com cerca de 50 segundos cada, que registam a realidade, directamente ou encenada, mas também gostavam de se divertir. Como se pode constatar em “Lumière!”, uma compilação de 108 filmes (ou “vistas”) feitos por eles e pelos operadores do seu cinematógrafo em França e em várias partes do mundo, entre 1895 e 1905, muitos conhecidos, outros não, restaurados em 4K e seleccionados, organizados e comentados por Thierry Frémaux, Delegado-Geral do Festival de Cannes e director do “Templo Lumière”: o Institut Lumière de Lyon, que desde 2009 atribui o respectivo prémio (Wong Kar-wai é o galardoado de 2017).

[Veja o “trailer” de “Lumière”]

O sentido de humor e o gosto pela comédia de Louis e Auguste Lumière estão bem patentes em títulos como o conhecidíssimo “O Jardineiro Regado”, que contém o primeiro “gag” da história do cinema, mas também noutro em que um Romeu que subiu por uma escada à varanda da sua Julieta para melhor lhe fazer a corte, é “ensacado” por dois pândegos quando da descida; ou noutro ainda em que um dos familiares dos Lumière que está a jogar um jogo de sociedade faz uma birra por ter perdido e atira com o tabuleiro, sob o riso dos presentes; ou ainda naquele, ao jeito dos do seu rival Georges Mèliés, o inventor do cinema de espectáculo, de fantasia e dos efeitos especiais, onde um esqueleto dança freneticamente, se desarticula e refaz. (Foram também os Lumière os responsáveis pelo primeiro momento de terror no cinema: quando da projecção em Paris de “A Chegada de um Comboio a La Ciotat”, os espectadores fugiram, temendo ser colhidos pela composição que, na tela, vinha na sua direcção).

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[Veja a entrevista com Thierry Frémaux]

“Lumière!” abre com aquele que se convencionou ser o primeiro filme da história do cinema, “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière”, rodado em Março de 1895, que segundo Frémaux faz “do povo, da multidão”, a primeira personagem da história do cinema – que por sua vez iria transformar-se no espectáculo de massas por excelência, e na arte cimeira do século XX -, e testemunha a curiosidade dos irmãos Lumière em relação ao mundo circundante, e a sua sede em o registar em todas as suas declinações. Desde o instantâneo doméstico captado no seio da família, até às imagens recolhidas nas metrópoles dos EUA onde brotavam os arranha-céus, numa aldeia no coração do Vietname, durante um desfile de notáveis na Turquia ou entre soldados dançarinos em Espanha, passando pela Lyon onde residiam e trabalhavam, e um pouco por toda a França. O grande tema das “vistas” de Louis e Auguste Lumière é o múltiplo e inesgotável espectáculo da realidade.

[Veja “A Chegada de um Comboio a La Ciotat”]

https://youtu.be/b9MoAQJFn_8

Por tudo isto, “Lumière!” é um registo preciosíssimo, variadíssimo, divertido, comovente e muitas vezes inesperado de uma França e de um mundo desaparecidos, imortalizados pelo cinema em toda a sua pureza (e imperfeição) inicial. Ao som de música de Saint-Saens, Thierry Frémaux ordenou estes mais de 100 filmezinhos por grandes temas (A Família, O Trabalho, Paris, etc.), contextualizando-os e comentando-os brevemente. E mostrando que com os Lumière, o cinema não se limita a ser apenas um registo em bruto e passivo do real, querendo desde logo desenvolver uma linguagem própria e uma estética específica. No plano final, Martin Scorsese, Prémio Lumière 2016, faz a ponte entre três séculos de filmes, aparecendo exactamente no mesmo sítio de onde saíram os operários da fábrica Lumière e o cinema começou. E onde Louis e Auguste Lumière também inventaram o “remake”, já que há três versões de “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière”, rodadas em diferentes alturas do ano.