Quase 100 anos depois de um certo movimento artístico herdeiro do Modernismo, do Dadaísmo, do Cubismo e da Psicanálise ter sido batizado de “Surrealismo”, e 70 anos depois da fundação do 1.º Grupo Surrealista Português, ainda são poucos os que usam corretamente este substantivo que o tempo converteu em mero adjetivo que serve para classificar tudo o que as pessoas querem pejorativamente acusar de “bizarro”, “irreal”, “excêntrico”.

Esta desvirtuação do sentido da palavra mostra “como em Portugal este movimento carece de ser estudado, como ainda hoje não se reconhece a sua importância fundamental para a arte da segunda metade do século XX em geral e de como os surrealistas portugueses estão entre os melhores do mundo”, diz Perfecto E. Quadrado, o Zamorano, professor na Universidade das Baleares e que é o principal estudioso e divulgador do surrealismo lusitano, antes de citar Um Adeus Português de Alexandre O´Neill.

“O poema de O’Neill está para a poesia como Nadja de André Breton está para o romance, é a tradução perfeita dessa utopia surrealista que é o ‘amour fou’, o amor louco e livre de constrangimentos, o amor que nos aproxima do absoluto”, diz o catedrático que é também curador da Fundação Cupertino de Miranda.

Foi em 1924 que André Breton escreveu o célebre Manifesto Surrealista. Mas, se olharmos para a história da arte e da literatura veremos que séculos e séculos antes de haver um nome para a arte que procurava livrar-se dos constrangimentos da razão, da moral, resgatando imagens dos sonhos, do subconsciente, já muitos artistas a experimentavam. O Surrealismo é menos um movimento artístico do século XX e mais uma experiência humana da qual já o mito dos Argonautas dava conta: a busca do conhecimento funde-se com a exploração do desconhecido, a destruição das imagens (artísticas, morais, sociais, amorosas, etc) impostas pelo presente e a busca nas regiões obscuras da mente de novas formas de pensar e dizer.

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“‘Sentir tudo de todas as maneiras’, eis uma formula saída da boca do modernista Álvaro de Campos e que que serve na perfeição aos surrealistas”, explica Quadrado. Ao contrário do que pretendem tantos utilizadores da palavra, “Surrealismo” é, como o definiu Breton, “uma ação que nasce de um automatismo psíquico puro” que pretende aceder ao real pensamento, isto é, aquilo que está livre da censura estética ou moral e que visa também destruir essa censura.

Quem quer que, na noite de 17 de Outubro de 1947, se tenha sentado no café A Mexicana, na praça de Londres, não imaginaria que estava a assistir ao momento inaugural surrealismo português. Mas quem imaginaria que aqueles rapazes burgueses, filhos de “boas famílias” eram na verdade criaturas algo extravagantes, alienígenas nas ruas da Lisboa salazarista, onde nada acontecia, descontentes, que passavam a tarde a jogar bilhar n’A Cubana ou a praticar “actividades paradadístas de literatura, arte e boutade“, como contou O’Neill, estavam a começar umas das aventuras artísticas que mais profundas consequências teve na arte portuguesa da segunda metade do século XX. Não obstante todas as tentativas, então como agora, de o recalcarem.

Em 2017, não obstante, o lançamento da obra completa de Mário Cesariny, ninguém comemorou os 70 anos da fundação do que ficou conhecido como o 1º Grupo Surrealista de Lisboa. Perfecto Quadrado disse ao Observador “que a comemoração de datas não é algo que interesse aos surrealistas”, no entanto, não pode deixar de ser notado, que no ano em que Cesariny é canonizado por um tomo de capa dura e artigos hagiográficos nos jornais, se esqueça esta data. Afinal se há alguém que foi produto e produtor do surrealismo foi Mário Cesariny.

Lisboa surrealista

Em 1947, Lisboa já não é a cidade futurista e futurante de Cesário Verde e de Álvaro de Campos, não pode fingir-se a Babilónia que Baudelaire reinventou em Paris. Lisboa era agora pura abjecção, a Elsinore, como lhe chamou Cesariny lembrando o castelo de Hamlet, um reino tão podre quanto o da Dinamarca, a Cidade de Palguin, de Carlos Eurico da Costa, a cidade onde não caberia o amor de Alexandre e Nora Mitrani

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver” (Um Adeus Português, Alexandre O’Neill)

Tudo terá começado com a amizade entre Cesariny e O’Neill feita nas tardes de bilhar na Cubana e a leitura de ambos do livro A História do Surrealismo, de Maurice Nadar. Note-se que em França o movimento já começara há mais de 20 anos e já se estendera a outros países da Europa.

No café Herminius, na Almirante Reis, juntavam-se a eles Vespeira, António Domingues, João Moniz Pereira, Fernando de Azevedo, amigos desde o tempo em que frequentavam a escola António Arroio e alguns integrantes do MUD juvenil. Quem vivia também em Lisboa era o escritor e pintor António Pedro, que tinha regressado a Lisboa em 1946 depois de ter estado mais de um ano a trabalhar como repórter da BBC, na Inglaterra aliada. Pedro que já tinha vivido em Paris e em Londres, tinha participado em exposições Surrealistas. Nesses anos passava algumas dificuldades, pois os jornalistas portugueses nunca lhe perdoaram ter-se juntado aos aliados durante a 2ª Guerra, consideravam-no um traidor e chamavam- lhe “lord haw haw português”, como conta ao Observador José-Augusto França que, com 95 anos, é o único sobrevivente do 1.º Grupo Surrealista e um dos seus membros mais polémicos.

Segundo França, foi António Pedro quem teve a ideia de formar um grupo depois de saber da existência, em Lisboa, de um grupo de jovens interessados no Surrealismo e pediu-lhe que os contactasse para uma reunião. De entre os já referidos, França e Cesariny sugerem ainda a inclusão de outro artista Cândido Costa Pinto (cuja obra tinha sido considerada obscena pelos surrealistas franceses). Foi assim que na noite de 17 de outubro de 1947, com Cesariny e Moniz Pereira presentes apenas em espírito (estavam em Paris), se juntam na Mexicana O’Neill, França, Fernando Azevedo e Costa Pinto para seguirem depois para a casa de António Pedro onde foi a reunião propriamente dita. Destes dias, O’Neill, com o seu sarcasmo, evocará apenas o “bom e abundante whiskey que se bebia na casa do pintor”.

(Em cima) Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira; (Em Baixo): António Pedro, Alexandre O’Neill (com um osso a sair do casaco) e João Moniz Pereira

Apesar de sentirem o Surrealismo como “exaltante e libertador” e de partilharem, como diz Maria Antónia Oliveira, uma recusa primordial”que era o Neorealismo, estes rapazes também partilhavam personalidades fortes, cultivavam o sarcasmo, a intolerância total para com a cobardia e as auto-complacências (dos outros) face ao regime. Assim, logo desde a primeira noite houve embirrações, desagrados, zangas que acabaram por dar aos seus detratores pretextos para alimentarem uma imagem do grupo como um bando quezilento e autofágico. Imagem que, apesar de redutora e injusta, ainda hoje persevera.

António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira, Moniz Pereira juntos em “Cadavre Exquis”, 1948, uma das obras saídas do coletivo surrealista

Ao longo de 1947 e 48, a par das as atividades artísticas do grupo, ficaram conhecidas as primeiras expulsões. O’Neill redige uma espécie de manifesto intitulado Porque Aderimos ao Surrealismo:

Porque perdemos o medo de nos surpreender

Porque deixámos de usar a moeda Bem-Mal

Porque ultrapassámos a questão de saber se a porcaria deve ser de porcaria ou deve ser de ouro

Porque o surrealismo é um velho coberto de estanho antes da invenção do garfo

Porque não queremos o amor mesa-de-família-cama-de-casal

Porque a poesia deve ser feita por todos e não por um

Porque o automatismo leva-nos à destruição anti-dialéctica forma-conteúdo, abstração em que assenta toda a arte reaccionária

Porque quanto mais fundo se vai(automatismo) mais colectiva é a descoberta

Porque lutamos pela objectivação do sujeito e não pela sujeição do objecto

Porque preferimos o abuso ao uso (…)

Deixamos pelo menos indicado que para tal esclarecimento e tal conduta, será preciso, antes de mais, reconhecer que o medo e a violentação existem não apenas de uma ou de outra maneira organizada ou exterior ao indivíduo, mas também nele, por ele, em espantoso contágio e asquerosa herança.”

Para averiguar do grau de pureza

Como conta França, ao longo de 1948 reuniam-se todas as quartas-feiras em casa de António Pedro. Nesses anos frequentavam um atelier na avenida da Liberdade, elaboravam Cadáveres Esquisitos e outros automatismos em pinturas coletivas, escreviam poesia pelos cafés, O’Neill fazia esculturas com ossos, Fernando Lemos fazia fotografia, entre elas as famosas imagens de Alexandre e a surrealista francesa Nora Mitrani.

Mas a primeira ação pública do grupo foi a publicação, a 4 de Agosto de 1948, no jornal Diário de Lisboa de uma homenagem ao poeta Gomes Leal, que era também uma crítica à forma como tinham decorrido as comemorações do centenário do nascimento deste poeta que morreu louco e na miséria (Maria O’Neill, avó de Alexandre, foi uma das pessoas que várias vezes ajudou este poeta que os surrealistas adotaram como uma espécie de percursor).

Homenagem ao poeta Gomes Leal, pelo 1º Grupo Surrealista, publicada no Diário de Lisboa, e, 04/08/1949

Nesse mesmo ano o grupo tenta participar na exposição Terceira Geral de Artes Plásticas, organizada pelo MUD. Mas, como, conta J.A. França, “o impensável aconteceu”: a direção do evento aceitou censura prévia, e acatou as ordens da polícia do regime. Posto isto, o grupo protesta junto da direção e retira as suas obras. Mas, como lembra o escritor e crítico de arte “este acontecimento criou poços insuperáveis entre os artistas da minha geração”. Entre os que aceitaram a situação e os que a rejeitaram, arcando com os custos houve cortes de relações pessoais, ataques clandestinos…”

O grupo decide então avançar sozinho para uma exposição. Realizam, no mês de Janeiro de 1949, em plena campanha para as presidenciais, que opunha Norton de Matos a Carmona, uma corajosa exposição num obscuro terceiro andar, que só tinha acesso através de uma escada em caracol, na rua Nova da Trindade, em Lisboa. Na capa do catálogo a frase Depois de 22 anos de medo…

Capa do catálogo da 1ª exposição do grupo, em Janeiro de 1949

O facto é que apesar de várias ameaças do governo civil a exposição se realizou para os olhos lisboetas que nunca tinham visto tais coisas e no dia 14 de Fevereiro desse ano o grupo dá a sua primeira entrevista ao diário de Lisboa, pela voz de José-Augusto França, como pode ser lido aqui.

Ser Surrealista no Portugal dos anos 40 e 50 implicava sobretudo uma ética contra o “medo perfilado”, contra o poder que corrompe, contra o miserabilismo neorealista, contra esta maneira “mansa e quase vegetal” de viver. Implicava “o nosso dever de falar”. Como lembra Perfecto, “os Surrealistas criaram pequenas ilhas de resistência dentro da cidade, que eram os cafés”. Nos cafés criava-se, conspirava-se, aplicava-se implacavelmente a lei surrealista conta todos aqueles que, querendo entrar para o grupo, não pareciam suficientemente independentes, impolutos e capazes de cumprir o difícil caminho de uma liberdade radical.

O’Neill era dos mais implacáveis nesse campo. A carta que escreve a Cesariny a propósito de Cândido Costa Pinto e depois a António Pedro mostram a sua dureza (mas também a sua ingénua crença na possibilidade de pureza). Tudo começará quando, num concerto promovido por Fernando Lopes-Graça, um grupo de Neorealistas aplaudira efusivamente uma composição de Prokofiev e se deixaram ficar em silêncio perante uma composição do modernista alemão Honneger. Perante isto, Cesariny, O’Neill e Moniz Pereira procedem a uma pateada contra o que chamam “a gritaria estalinista” de Prokofiev. Cândido Costa Pinto não terá participado nesta manifestação surrealista o que desgostou bastante os outros, por ele não ser capaz de tomar uma atitude desafiadora.

Já antes, Costa Pinto não fora capaz de assinar uma carta-manifesto contra as tentativas de Adolfo Casais Monteiro entrar para o grupo. Como conta Maria Antónia Oliveira, nessa carta o grupo pedia a Casais Monteiro que ele “se mantivesse a uma distância pelo menos tão prudente como a que os surrealistas manteriam em relação a Casais Monteiro”. Assim, depois de afastarem Casais Monteiro, o grupo afasta Cândido Costa Pinto, logo em 47.

Sexo, mentiras e máquinas fotográficas

Uma visão surrealista de Fernando Lemos, O´Neill e Nora Mitrani

Entre zangas, desencontros, o primeiro grupo surrealista português durou oficialmente entre 1949 e 1952, o que não quer dizer que as suas emanações, contágios, doenças e amores, gargalhadas e truculências não tenham corrido através do leito dos anos seguintes.

No outono de 48 Cesariny desvincula-se do grupo. Esta saída está cheia de mistérios mas, segundo contaria mais tarde o escritor Mário Henrique Leiria, o verdadeiro motivo foi o facto de António Pedro ter denunciado a homossexualidade de Cesariny. O poeta da Pena Capital tinha sido preso por atentado ao pudor e recorreu a António Pedro para que este lhe pagasse a fiança. Pedro ajudou Cesariny, mas depois terá publicitado o acontecido. De resto O’Neill também já tinha manifestado a sua falta de fé no pintor que considerava “uma velha mula muito conservador e formalista”.

Em 49, já pesava sobre o grupo um enorme desanimo. Saem Moniz Pereira e depois, “algo envergonhados”, Vespeira e Fernando de Azevedo afastam-se também.

Muito mais tarde Alexandre O’Neill há-de recordar assim a dissolução do grupo:

Depois, segundo a boa tradição dos grupos surrealistas, começaram as cisões, as desautorizações, os manifestos contra isto e aquilo; tudo em nome de uma ortodoxia e de uma pureza que, no plano teórico, não se sabia bem o que era, mas que no plano prático não era difícil de formular. Na verdade, o reaflorar da mais detestável literatura continuava a fazer-se sentir na obra dos mais ‘respeitáveis cultores’ do surrealismo, ainda que camuflada sob as vestes, nas quais o bizarro, o exótico, o desconexo, o maravilhoso, o objectivo-encontrado-por-acaso estavam a tomar cada vez mais o aspecto de tiques, de maneiras. Até entre nós o academismo surrealista começava a despontar e a organizar-se.”(Alexandre O’Neill, Uma Biografia Literária, Maria Antónia Oliveira)

Em janeiro de 1949 sai o primeiro livro de O’Neill, Ampola Miraculosa, ainda no rescaldo da exposição na Rua Nova da Trindade, naturalmente, alvo de muita crítica e chacota de um público pouco dado às coisas da liberdade, não obstante fosse, supostamente, um apreciador de arte. Como lembra José-Augusto França, Lisboa ganhou uma nova palavra “surrealista capaz de classificar tudo o que até então a palavra ‘futurista’ designava”.

Ainda nesse ano dá-se “o caso da máquina fotográfica”, que mais uma vez envolve António Pedro: O’Neill, sempre com faltas de dinheiro, tinha colocado no prego uma máquina fotográfica emprestada por Pedro e não tinha como reavê-la. A vergonha pesava-lhe, pois o poeta não se sente já suficientemente livre para discordar dos outros como gosta de fazer, sobretudo da literatura produzida “para generosa compreensão” em que via os outros mergulhados. Escreve uma carta ao grupo em que explica a situação. Permanece no grupo para o qual a sua obra será sempre um dos momentos maiores.

É curioso que os desencontros, saídas, expulsões não acontecem por polémicas teóricas ou práticas relativas ao surrealismo, mas por questões banais, humanas, demasiado humanas, daquelas que talvez só o surrealismo possa explicar não explicando.

Ainda em 49 forma-se, em torno de Cesariny, um novo grupo surrealista e até 1952, quando se dissolve definitivamente o grupo em torno de António Pedro, os dois grupos vão abrir trincheiras um em relação ao outro, com alguns momentos de tréguas pelo meio. Em 51 O’Neill abandona o grupo. Restam três aventureiros. A noite inaugural de outubro de 1947 termina em 52.

António Pedro abandonou então a pintura, passando a dedicar-se ao teatro e, durante breve tempo, à fabricação de cerâmicas e porcelanas. A sua obra mais importante será o Teatro Experimental do Porto, que fundou e dirigiu. Mais sobre esta figura esquecida da cultura portuguesa ler aqui.

“Infelizmente”, afirma Perfecto E. Quadrado, “o movimento Surrealista português costuma ficar fora dos estudos internacionais, das antologias, dicionários, exposições, porque há uma série de ideias erradas sobre este movimento” a que o poeta Ernesto Sampaio chamou ‘a única real tradição viva’. Mesmo em Portugal estas ideias erradas circulam e fazem escola e dá como exemplo. Diz-se que “nunca foi um movimento mas apenas um grupo”, que foi “tardio”, “anacrónico”, mas sobretudo não se valoriza a sua importância para a cultura portuguesa dos anos 40 e 50, nomeadamente na sua versão Abjecionista, que sendo uma reação ao Neorealismo e à situação política de Portugal, se constitui também como uma das especificidades do surrealismo português.