O Bloco de Esquerda considera “esgotadas todas as vias” para “chamar à razão” a Câmara de Lisboa no processo de privatização do Teatro Maria Matos e por isso vai apresentar na Assembleia Municipal uma proposta de referendo local sobre o futuro daquela sala de espetáculos. A intenção foi conhecida há algumas semanas e será formalizada nesta sexta-feira, o que obriga a uma discussão em plenário nos 10 dias seguintes.

Os bloquistas já têm pergunta para o plebiscito: “Concorda com a entrega à gestão privada da programação cultural do Teatro Maria Matos, designadamente através do arrendamento desse equipamento para o efeito?”

PAN e PPM são favoráveis à iniciativa, mas a rejeição é uma forte hipótese – se se mantiver o sentido de voto conjunto que PS, PSD, CDS e MPT têm vindo a expressar na Assembleia Municipal relativamente ao Maria Matos. Questionada pelo Observador, a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, não quis comentar.

Para já, prossegue o concurso público que pretende selecionar um projeto de gestão artística privada. O caderno de encargos, enviado aos interessados, estipula que o vencedor pagará uma renda mensal de três mil euros, sem adiantamento de rendas ou depósito de cauções. No site do Maria Matos foi entretanto publicado um texto, sem data, que dá como certa a alteração a partir de setembro.

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O concurso é promovido pela EGEAC, empresa municipal de cultura, e teve início a 13 de abril, com termo a 14 de maio. A cedência tomará a forma de contrato de arrendamento por um período de cinco anos, renovável, assumindo-se a EGEAC como senhoria.

Teatro Maria Matos com futuro indefinido

O deputado municipal do Bloco de Esquerda Tiago Ivo Cruz disse na quarta-feira ao Observador que considera “incompreensíveis” os critérios utilizados para estabelecer uma renda de três mil euros e sublinhou que “não se trata de uma concessão, como a vereadora da Cultura tem dito, mas sim de um arrendamento, o que do ponto de vista jurídico é muito mais frágil”. O mesmo deputado criticou a inexistência de uma “política de bilhetes e preços”, na lista de obrigações do futuro arrendatário, e de um serviço educativo, dirigido a jovens e adolescentes.

Sobre o valor da renda, a EGEAC disse ao Observador nesta quinta-feira que não presta esclarecimentos “por forma a não perturbar” o concurso que está a decorrer.

Quem se candidata?

Uma das entidades que ponderam concorrer é a Força de Produção, responsável por espetáculos como “Deixem o Pimba em Paz”, de Bruno Nogueira, ou “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, encenado por Diogo Infante.

A produtora UAU, proprietária do Teatro Tivoli desde 2011, ainda não decidiu se participa. “Tenho genericamente muitas reticências em relação a este tipo de concessões, o Teatro Capitólio é um bom exemplo de como estes acordos não fazem muito sentido”, comentou Paulo Dias, diretor-geral da UAU. “Existem no Capitólio atividades comerciais que nada têm a ver com espetáculos, criando uma concorrência desleal para com o Tivoli”, criticou.

A Sons em Trânsito, que explora o Capitólio e pelo qual paga uma renda mensal de dois mil euros, não pretende concorrer. O mesmo é verdade para a Academia de Produtores Culturais, associação cultural lisboeta responsável pela gestão artística do Maria Matos entre 1999 e 2004.

São jurados do concurso a jornalista Pilar del Rio; a presidente da EGEAC, Joana Gomes Cardoso; a atriz e encenadora Natália Luiza; o dramaturgo e crítico Jorge Louraço Figueira; e o jornalista e escritor Nuno Galopim. Terão de avaliar as candidaturas com base em dois critérios:

  • Qualidade: “pertinência” do projeto, “programação pluridisciplinar e parcerias” e “estratégias de captação de público e de comunicação” (vale 70%);
  • Sustentabilidade do projeto: “capacidade técnico-artística e financeira” do concorrente e “adoção de boas práticas ambientais” (vale 30%).

A sala será arrendada “no estado em que se encontra” com todos os equipamentos técnicos hoje existentes, diz o caderno de encargos. O mesmo documento indica que a entidade vencedora terá de abrir o Maria Matos ao público nos dois meses seguintes à assinatura do contrato de arrendamento, estando obrigada a utilizar a sala “exclusivamente” para um “projeto cultural”, sendo que “o desenvolvimento do projeto cultural inclui a exploração da cafetaria”.

“O arrendatário deverá desenvolver atividades de natureza cultural que contribuam para manter o Maria Matos como um equipamento-âncora, devendo a futura programação passar por um projeto artístico de reconhecido mérito, com identidade própria, vocacionado para o grande público”, lê-se.

A EGEAC organiza nesta sexta-feira de manhã uma “visita técnica” ao teatro da Avenida de Roma, mas não permite a participação de jornalistas. A visita dirige-se a entidades com potencial interesse na concessão e será guiada por Andreia Cunha, atual diretora executiva do Maria Matos.

Seria o primeiro referendo lisboeta

O deputado municipal Tiago Ivo Cruz sustenta que esta  concessão é um ato “pouco transparente”, “contra o interesse público” e “sem qualquer respeito democrático” pelo “ato eleitoral”, uma vez que o PS, que lidera o executivo, não apresentou o tema na campanha para as autárquicas de outubro do ano passado. O Bloco entende também que está a ser desrespeitada a vontade de quem subscreveu a petição Por Uma Gestão Pública do Maria Matos, entregue em janeiro na Câmara e na Assembleia Municipal.

Se o referendo fosse aprovado, a Câmara estaria obrigada por lei à imediata suspensão do concurso, entendem os bloquistas. Seria a primeira consulta pública local em Lisboa. Dados da Comissão Nacional de Eleições mostram que até hoje em Portugal houve apenas cinco referendos locais. O primeiro, em abril de 1999, teve lugar em Viana do Castelo e perguntou aos eleitores se concordavam com a construção de um campo polidesportivo na freguesia de Serreleis. O mais recente, em setembro de 2012, levou a freguesia de Milheirós de Poiares a decidir pela integração no concelho de São João da Madeira, mas não teve caráter vinculativo devido à abstenção.

A cedência a privados da gestão artística do Maria Matos foi anunciada a 17 de dezembro por Catarina Vaz Pinto, em entrevista ao jornal Público, e é justificada como resultado da saída, em outubro do ano passado, de Mark Deputter, diretor artístico da sala nos oito anos anteriores. A vereadora decidiu ao mesmo tempo reabrir o Teatro Luís de Camões, em Belém, e tornar-se arrendatária do Teatro do Bairro Alto/Cornucópia, no Príncipe Real.