O festival Alkantara “teve até hoje muito mais oportunidades de acabar do que de continuar”, porque é um evento de artes performativas que “acredita que não tem de corresponder a expectativas”, afirmou o ator e encenador Tiago Rodrigues na terça-feira à tarde, durante um debate em Lisboa .

“Não estou a fazer um elogio romântico da pobreza ou a apelar a esse termo abominável, resiliência, estou a dizer que o Alkantara sabe que não tem de funcionar em torno da eficácia, sabe que a pesquisa artística se chama pesquisa artística e é necessária” no processo de criação de novos espetáculos, acrescentou o também diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II.

Conduzido pela curadora Liliana Coutinho, o debate decorreu na sede da associação cultural que organiza o Alkantara – um edifício degradado, na zona de Santos, cedido pela Câmara de Lisboa em 2008. Tema: os 25 anos do festival, que agora se assinalam. Pouco antes do início, cantaram-se os parabéns, à volta de um bolo de aniversário.

Em tempos artista residente do Alkantara, através da estrutura teatral Mundo Perfeito, Tiago Rodrigues defendeu que este evento “tem influenciado as instituições culturais, o modo de funcionar de várias gerações de artistas e o modo de o público percecionar a criação”. “Muito do que é hoje” o teatro português deve-se à “contaminação do movimento da dança” em torno do Alkantara.

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“Senti-me muitas vezes desafiado como espectador. Não é, e nunca foi, um festival com escolhas evidentes”, descreveu Tiago Rodrigues. “Criou a sua identidade como laboratório, nunca quis ser um festival eficaz e essa foi a grande eficácia do Alkantara. Foi muito transformador.”

Além de Tiago Rodrigues, participaram no debate Mark Deputter (antigo diretor do Alkantara e do Teatro Maria Matos e atual diretor artístico da Culturgest), Thomas Walgrave (diretor cessante do Alkantara), Carla Nobre Sousa e David Cabecinha (próximos responsáveis pelo festival) e a dupla de bailarinos Sofia Dias e Vítor Roriz. Estiveram ainda presentes os bailarinos Vera Mantero, João Fiadeiro e Aldara Bizarro, ligados à génese do Alkantara e convidados a participar este ano com novas criações.

Fundado em 1993 pela bailarina e coreógrafa Mónica Lapa (1965-2001), o festival começou por se chamar Danças na Cidade, em formato anual e centrado na dança portuguesa. Passou por um período de falta de financiamento no início dos anos 2000, até que se tornou bienal e ganhou a designação atual. A 15ª edição começou a 23 de maio e termina neste sábado. “From Afar it Was an Island”, de João Fiadeiro, e “Quarta-Feira: O Tempo das Cerejas”, de Cláudia Dias, são duas das propostas destes últimos dias.

Quase todos os oradores evocaram a memória de Mónica Lapa. João Fiadeiro disse que o Danças na Cidade “conseguiu materializar uma força latente que estava numa comunidade identificada como a Nova Dança Portuguesa”, de que ele próprio fez parte. “Naquela época, um conjunto de artistas, programadores e críticos soube, com este festival, criar uma nova forma de estar com o corpo, de pensar o corpo e a comunidade”.

Vera Mantero recordou as primeiras edições como “uma grande festa da dança portuguesa”, com “muita proximidade” entre os criadores, e sugeriu que nos próximos anos o Alkantara volte a centrar-se mais na dança, ideia da qual discordou Tiago Rodrigues.

Thomas Walgrave dirigiu o Alkantara na última década e lembrou que quando Mark Deputter saiu, em 2008, “várias pessoas foram convidadas para a direção e ninguém queria”, relato logo confirmado por Deputter.

“Desde 2012, a questão sobre se vamos ou não fazer uma próxima edição tornou-se a questão principal. Se não fizéssemos, dávamos razão a quem tinha cortado os apoios. Foram dilemas muito grandes”, confessou o diretor cessante.

Figura tutelar do Alkantara, e talvez por isso sentado precisamente ao centro do painel deste debate, Mark Deputter defendeu que o Governo liderado por António Guterres e o Ministério da Cultura de Manuel Maria Carrilho “abriram a possibilidade de o festival crescer” a partir de 1995. Sublinhou que o alargamento da programação a artistas de fora da Europa e à criação teatral foram duas decisões acertadas que tomou nos anos 90. “Não inventámos nada, apenas sentimos o que estava a acontecer na comunidade artística”, notou.

A assistir ao debate esteve Paula Varanda, afastada do cargo de diretora-geral das Artes no início de maio, que não quis prestar declarações ao Observador.